Entrevista

. A representação de mulheres na política e economia é insuficiente

teresafragoso2 150x180A pretexto dos 40 anos da CIG, Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Teresa Fragoso faz uma retrospetiva do trabalho da organização a que preside desde agosto de 2016. Diz que as conquistas na área da igualdade de género são imensas – basta olhar para a evolução de alguns indicadores da situação e das condições de vida das mulheres - mas, reconhece, “até à igualdade” plena há ainda muitas batalhas a travar.

Entrevista: Carla Amaro
Fotografias: Tiago Lopes Fernández

A CIG comemora este ano o 40.º aniversário desde a sua institucionalização. Que balanço faz do trabalho da comissão na promoção da cidadania e igualdade de género?

Se se pensar na evolução da situação das mulheres portuguesas desde o 25 de Abril de 1974 até aos dias de hoje, percurso esse para o qual a CIG muito contribuiu desde a sua institucionalização, em 1977, o balanço só pode ser positivo. Desde logo, o princípio da igualdade de género está claramente firmado na nossa Constituição e em todo o sistema jurídico nacional, garantindo a proteção em casos de discriminação e determinando a promoção da igualdade entre mulheres e homens.

Olhando ainda para a evolução de alguns indicadores da situação das mulheres em Portugal, podemos perceber as grandes mudanças que tiveram lugar, muitas delas acompanhando as iniciativas da CIG.

Quais as que destaca, a título de exemplo?

Destaco várias situações: a taxa de analfabetismo feminino, que passa de 31% em 1970 para 7% em 2011; as mulheres com ensino superior completo, que eram apenas 0,5% da população feminina total em 1970, passam para 17% em 2011, sendo que do total da população com ensino superior, em 2015, 60% eram do sexo feminino; a atividade profissional das mulheres, embora tradicionalmente elevada, não parou de crescer nas últimas décadas sendo atualmente de 67,4% face a 74,2% de atividade profissional dos homens (dados de 2016); e quanto à participação política, a representação de mulheres passa de 1,9% no I Governo Constitucional para 30,5% no Governo atual, e de 8,9% na Assembleia Constituinte para 33% na atual Assembleia da República. Mas, apesar dos resultados otimistas, muito há ainda para fazer. Daí que o lema dos 40 anos seja: “Até à Igualdade!”

Há 40 anos, os desafios eram diferentes dos de agora?

Sim, eram bastante diferentes. A CIG, então designada de CCF – Comissão da Condição Feminina, começou por proceder ao conhecimento da situação real das mulheres através de um levantamento estatístico (demografia, educação, trabalho, desemprego, salários, participação na vida cívica e política, etc.) e também da situação em termos de imagens, estereótipos e papeis sociais atribuídos às mulheres (nomeadamente nos manuais escolares e na publicidade). Foi preciso proceder à alteração de toda a legislação necessária para cumprimento dos princípios estabelecidos no texto da Constituição, aprovada em 1976. A Comissão participou nesse processo através da apresentação de propostas e de participação em grupos de trabalho, em áreas como o direito de família, publicidade, nacionalidade, igualdade no trabalho e emprego, etc.. Foi uma alteração global da legislação que permitiu que, em 1980, Portugal fosse um dos primeiros países do mundo a ratificar, sem reservas, a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), adotada pela Assembleia Geral, em 1979.

Promoveu-se a criação de serviços para o público, designadamente: um Gabinete de informação jurídica, mais tarde complementado pela linha verde de informação a mulheres vítimas de violência doméstica (SIVVD). E um Centro de Documentação, iniciado a partir de 1975, que ao longo de vários anos foi o único em Portugal nesta área, constituindo-se como um recurso importante para a fundamentação de políticas. E já na década de 1990, surgem os primeiros Planos nos domínios da Igualdade entre Mulheres e Homens e do combate à Violência de Género.

“Os problemas que têm sido mais resistentes à mudança são o desequilíbrio dos usos do tempo de homens e de mulheres, que têm reflexo na participação das mulheres na atividade profissional, cívica e política e na sua qualidade de vida.”

Depois, a CIG alargou as suas competências…

Sim, desde o início deste século, a CIG passou a incorporar as questões relativas ao Tráfico de Seres Humanos, com particular enfase no tráfico de mulheres para exploração sexual; e passou, igualmente, a ter a responsabilidade de coordenação do combate à discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de género (LGBTI).

Imagino que há desigualdades que são (ou foram) mais difíceis de combater do que outras. Hoje, se tivesse que elencar dois ou três casos, quais estão a dar mais luta em Portugal?

Num plano macro, os problemas que têm sido mais resistentes à mudança são o desequilíbrio dos usos do tempo de homens e de mulheres, que têm reflexo na participação das mulheres na atividade profissional, cívica e política e na sua qualidade de vida. Ou seja, as mulheres ainda trabalham, em média, mais 1h45 min/dia do que os homens nas tarefas domésticas e de cuidado das crianças, trabalho este social e economicamente muito relevante mas que não é nem remunerado, nem reconhecido; a desigualdade salarial, que em Portugal ronda em média os 16,7% e que tem múltiplas consequências, nomeadamente na independência económica das mulheres e na feminização da pobreza; a persistência do fenómeno da violência contra as mulheres, com custos económicos e sociais elevados, quer a nível individual, quer para toda a sociedade; e, ainda, a representação de mulheres ao nível da tomada de decisão, seja na política, seja na economia.

O trabalho de diagnóstico que a Comissão tem desenvolvido ao longo das últimas décadas tem permitido dar visibilidade a fenómenos ainda hoje a necessitar de aprofundamento do seu conhecimento?

Sim e os exemplos que dá, apesar de se revelarem situações que atingem populações menos numerosas, não têm sido descurados pela CIG, que lhes reconhece a maior gravidade e lhes tem dado igual atenção.

Por essa razão, desde 2009, temos coordenado a execução de Programas de Ação no combate à Mutilação Genital Feminina (MGF). Trata-se de uma realidade muito complexa, que requer respostas ponderadas que passam por um equilíbrio entre as abordagens punitiva e preventiva. Ou seja, foi muito importante que esta prática passasse a ser um crime tipificado no nosso código penal, mas é ainda mais importante trabalhar com as comunidades, sensibilizando-as para as consequências negativas da MGF na vida destas raparigas e mulheres, promovendo o abandono das práticas por parte das próprias comunidades.

Podemos dizer que se têm dado passos muito grandes, nos últimos anos, no combate a esta prática tradicional nefasta?

Sem dúvida. Especialmente, com o envolvimento de todo o tipo de organizações, incluindo organismos públicos e ONG, numa abordagem intersectorial e interdisciplinar. A MGF passou a ser um tema com visibilidade, quer na comunicação social e nas artes, quer no debate público sobre direitos humanos, saúde sexual e reprodutiva, violência de género, proteção de menores, etc.. E entrou, também, definitivamente na agenda política nacional.

“A campanha O Direito a Viver sem Mutilação Genital Feminina visa alertar para as consequências desta prática, uma violência física e psicológica, uma violação dos direitos humanos, punível com pena de prisão, mesmo quando realizada fora de Portugal.”

As férias de verão são um período do ano que para algumas crianças de comunidades migrantes, em vez de descanso e brincadeira, podem significar horror. Há famílias que as levam para os países de origem para aí serem submetidas a Mutilação Genital Feminina. Como é que a CIG pretende impulsionar o abandono desta prática?

Em 2016 deu-se início a um novo formato de campanha que teve um grande impacto e, por essa razão, estamos a relançá-la nesta altura. Trata-se de uma campanha intitulada “O Direito a Viver sem Mutilação Genital Feminina” e visa alertar para as consequências desta prática, sublinhando que se trata de uma violência física e psicológica, uma violação dos direitos humanos que é punível com pena de prisão, mesmo quando realizada fora de Portugal. A campanha tem lugar nos aeroportos nacionais, com enfoque nos períodos de férias escolares (Páscoa e Verão), porque, dos estudos realizados, verificou-se que, nestes períodos, muitas famílias das comunidades afetadas viajam com as crianças para os seus territórios de origem, o que aumenta o risco de muitas destas meninas serem vítimas de MGF.

Em que consiste esta campanha?

No sentido de reforçar a prevenção junto das famílias, são distribuídos folhetos informativos sobre a MGF na zona das partidas e, em especial, na zona de embarque dos voos com destino aos territórios de risco. São também afixados cartazes nessas áreas dos aeroportos de Lisboa, Porto e Faro.

O Comité Nacional para o Abandono das Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e Criança, da Guiné-Bissau, tem-se associado a esta iniciativa? De que forma?

Promovendo igualmente uma campanha no aeroporto de Bissau, no mesmo período. Portanto, nesses períodos, a mensagem é veiculada intensamente para as pessoas em trânsito, cá e lá. A campanha de Verão deste ano teve o seu início precisamente no último dia do ano letivo (23 de Junho) e irá decorrer até à 1ª quinzena de setembro.

E que impulso Portugal pode dar no combate à erradicação da MGF noutros países?

Destaco uma iniciativa de Alto Nível levada a cabo pela Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, durante a 60ª Comissão do Estatuto das Mulheres – ONU, que teve lugar em Nova Iorque em Março deste ano. Esta iniciativa contou com o apoio da CIG, de altos representantes de Estados Membros da ONU, particularmente ativos no combate à MGF, contou ainda com a presença de altos representantes da UNICEF, do UNFPA e da sua Embaixadora para a Boa Vontade, Catarina Furtado.

Destaco ainda um projeto de cooperação que acabou de arrancar, promovido pela P&D Factor e com o apoio da Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, e que terá intervenções em Lisboa e em Bissau. Genericamente, este projeto tem como objetivo capacitar para a igualdade e empoderamento de agentes chave das comunidades e bairros para o fim da MGF e dos casamentos infantis e forçados na Guiné-Bissau e Diáspora. Este projeto terá como parceiro estratégico, na Guiné-Bissau, o Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e Criança – CNAPN, e em Portugal, a CIG e o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.

Quais são as principais iniciativas da CIG previstas para o futuro próximo?

Uma nota de fundo nas comemorações dos 40 anos da CIG tem sido a de homenagear e dar a devida visibilidade e reconhecimento do papel da Engª Maria de Lourdes Pintasilgo, não apenas como tendo sido a primeira Presidente da CIG (então CCF como referido), mas também enquanto mulher de pensamento inovador, promovendo uma cultura inclusiva e do cuidar; uma mulher que se destacou em áreas tradicionalmente masculinas, como as engenharias e a política, tendo sido a primeira – e única – mulher a exercer o cargo de Primeiro-ministro em Portugal.

Assim, tivemos um primeiro momento de homenagem, no evento de lançamento da celebração dos 40 anos, que teve lugar no Teatro da Trindade, no dia 7 de março, conjugado com as comemorações do Dia Internacional das Mulheres, iniciativa que contou com a parceria das Capazes. Está prevista para Outubro uma iniciativa na Assembleia da República, que incluirá uma exposição, retratando também a sua vida e obra. Estão ainda previstas outras duas iniciativas, das quais prefiro neste momento levantar apenas uma pequena ponta do véu – uma dirigida a um público mais jovem e outra junto de escolas secundárias um pouco por todo o país, no sentido de promover a participação das raparigas nas engenharias e tecnologias.

Quem é Teresa Fragoso?

teresafragoso 220x220Licenciada em Relações Públicas e Publicidade, mestre em Género e Media e a frequentar o doutoramento em Políticas Públicas, foi adjunta da Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade entre novembro de 2015 até agosto de 2016, ano em que assumiu a presidência da CIG. Tem 42 anos.