Entrevista

. “Direitos sexuais e reprodutivos devem ser tratados como direitos humanos”

Edite EstrelaCom uma larga experiência em debates no Parlamento Europeu e na Assembleia da República, Edite Estrela tem batalhado em várias frentes dos Direitos Humanos, em especial os Direitos Sexuais e Reprodutivos e as questões da maternidade, da igualdade e não discriminação. Os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm estes temas no centro da sua agenda, é certo, mas a deputada à AR pelo PS considera que deviam ser mais ambiciosos.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografias: Retiradas do facebook

Como se deu a incursão na política e no PS?

Pertenço à geração que entrou para a Universidade com a mensagem do Maio de 68 ainda nos ouvidos. Chegada à Faculdade de Letras de Lisboa, vivi, senti e participei na chamada crise académica de 69. O 25 de abril representou a realização do sonho há muito acalentado: viver em Liberdade e em Democracia. Em 1980, no dia a seguir à derrota da FRS [Frente Republicana e Socialista], em cuja campanha participei ativamente, decidi inscrever-me no PS. Até hoje.

O relatório sobre o direito à saúde sexual e reprodutiva, de que foi relatora, foi rejeitado no Parlamento Europeu. O que é que aconteceu para que aquele que ficou conhecido como “relatório Estrela” tivesse suscitado uma onda de protestos e acusações por parte de deputados conservadores, com o apoio da Igreja Católica e outros grupos cristãos?

O relatório não foi rejeitado. A sua votação foi impedida por uma moção subscrita por deputados conservadores, infelizmente, na sua maioria deputados portugueses do PSD. Ainda hoje não encontro explicação racional para tanta agressividade. Foram feitas duas manifestações junto do Parlamento Europeu (PE) em Estrasburgo, foram enviadas centenas de milhares de mensagens aos membros do PE, foram feitas pressões de todo o tipo. Em algumas igrejas alemãs, na fronteira com a França, foram feitas homilias contra o relatório. Em dez anos de eurodeputada, nunca vi nada parecido.

Acha que foi montada uma campanha agressiva de manipulação da opinião pública?

Foi uma campanha de manipulação da opinião pública, de pressão sobre os eurodeputados e de distorção do conteúdo do relatório, envolvendo recursos nunca vistos, materiais e de trabalho em rede com as organizações europeias ultraconservadoras, incluindo com ligações ao famigerado Tea Party. Campanha surpreendente, porque o meu relatório não acrescentava nada de especial em relação a outro aprovado pelo PE uns anos antes. Imagine que as propostas mais contestadas do relatório eram o acesso legal e universal à interrupção voluntária da gravidez nos sistemas de saúde pública dos Estados-membros e a obrigatoriedade da educação sexual nas escolas.

“Está provado que a educação sexual contribui para reduzir a gravidez na adolescência, as doenças sexualmente transmissíveis e o recurso ao aborto.”

Num plano ideal, como é que seria uma agenda de direitos sexuais e reprodutivos?

Não há planos ideais. Temos de trabalhar em função da realidade. Mas não tenho dúvidas de que os direitos sexuais e reprodutivos devem ser tratados como direitos humanos. Em nome dos direitos humanos, por exemplo, deve ser garantido o acesso à contraceção e a IVG deve ser legal e realizada em condições de segurança e higiene. E está provado que a educação sexual contribui para reduzir a gravidez na adolescência, as infeções sexualmente transmissíveis e o recurso ao aborto.

Em termos globais, quão longe estamos de alcançar esses pressupostos?

A crise tem servido de álibi aos governos da direita para reduzir direitos e dificultar o acesso a serviços públicos de qualidade. E, por razões ideológicas, em especial, a cuidados de saúde sexual e reprodutiva. Por isso também o combate ao VIH Sida não tem obtido os resultados desejados. E a gravidez precoce não tem diminuído, pelo contrário.

E em Portugal, em que ponto estamos nessa matéria? A saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos estão totalmente assegurados? Como passar de um quadro legislativo promotor e defensor da saúde dos direitos sexuais e reprodutivos para a criação de programas que acompanhem as pessoas ao longo da vida?

Portugal dispõe de legislação progressista e há da parte da população portuguesa uma grande abertura e compreensão em relação aos direitos humanos e mesmo em relação aos direitos das mulheres e das crianças. Mas pode haver sempre retrocessos. E houve, nos últimos quatro anos. O governo PSD/CDS não se inibiu de, em final de mandato, fazer aprovar alterações à lei da IVG para restringir os direitos das mulheres e que representavam uma humilhação para as portuguesas. Felizmente, o governo do PS com o apoio da nova maioria parlamentar de esquerda corrigiu essa situação.

Acha que em Portugal se assegura que os jovens têm a informação, a educação e os serviços de que precisam para fazerem escolhas informadas sobre a sua sexualidade e reprodução?

Há muita informação, mas nem toda é fiável. Os jovens recorrem muito à internet e aos meios audiovisuais onde nem sempre a informação veiculada é correta e/ou completa. Por isso, sou defensora da educação sexual nas escolas, ministrada por professores com formação específica. Nos países em que a educação sexual nas escolas é obrigatória tem-se verificado uma redução da taxa de gravidez adolescente. E, como referi, apesar do excesso de informação e talvez por isso, os jovens ficam confusos e nem sempre distinguem o essencial do acessório. Por exemplo, em relação às infeções sexualmente transmissíveis.

Nos países em desenvolvimento, a principal causa da morte de raparigas é a gravidez. Como é que se pode deter as taxas altíssimas de gravidez de adolescentes nesses países?

Com educação sexual nas escolas, com acesso e aconselhamento adequado nas consultas de saúde sexual e reprodutiva, com a legalização da IVG. Obviamente que o ambiente familiar também é muito importante.

Em 2014, num documento chamado “Uma agenda inacabada: direitos sexuais e reprodutivos no século XXI”, o Grupo de Alto Nível para a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento defendeu que a agenda de direitos sexuais e reprodutivos deve ser ajustada “às realidades do século XXI”. O que é que isto quer dizer, exatamente?

No domínio da saúde e direitos sexuais e reprodutivos como noutros, a realidade é hoje bem diferente do que era há vinte anos. Mudaram os usos e costumes. Mudaram as relações sociais e familiares. Mudaram as necessidades. As medidas têm de ser ajustadas ao nosso tempo. Não serve de nada meter a cabeça na areia. Há novos problemas que reclamam novas soluções. Os jovens começam cada vez mais cedo a sua iniciação sexual. Mudam frequentemente de parceiro/a. E apesar das facilidades de acesso a informação e apoio, não significa que estejam aptos a fazer escolhas informadas e livres.

Nesse documento, o grupo apelou aos líderes mundiais para apoiarem o “relatório visionário” do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, e a não perderem a “oportunidade” de assegurar que os direitos sexuais e reprodutivos estarão “no centro” da agenda para o desenvolvimento pós-2015. Acha que os ODS têm o tema como prioritário ou podiam ser mais ambiciosos nesta área em concreto?

Tratando-se de uma questão de direitos humanos e de saúde, tem de lhe ser dada a prioridade que o problema merece. Especialmente nos países em desenvolvimento, esta é uma questão crucial. Tem de se ir mais longe, sem dúvida. A experiência ensina-nos que a prática fica sempre aquém dos bons propósitos. É fundamental que as autoridades competentes sejam ambiciosas nas declarações de intenções, mas que as passem à prática com determinação e a urgência que a situação exige.

Tendo em conta a sua larga experiência em debates parlamentares - quer no Parlamento Europeu, quer na AR -, acham que existem assuntos difíceis de levar a debate ou muito difíceis de debater?

Os chamados assuntos fraturantes não são imutáveis. Vão variando. Os temas mais polémicos são os que contêm uma grande carga ideológica e que dividem a sociedade. Há temas que dividem a esquerda e a direita, mas também há temas transversais que são polémicos no seio dos partidos. Quando entra em cena a emoção que afasta a razão, o debate não é nada fácil.

"Não obstante a lei da parentalidade ser das melhores da Europa, muitas mães e muitos pais não usaram as licenças e benefícios que a lei lhes confere por receio de perderam o emprego ou serem postos de lado.”

Quais têm sido as principais dificuldades (e oportunidades) do PE para resolver as questões dos direitos reprodutivos e da saúde sexual e reprodutiva, incluindo as questões da maternidade e da igualdade?

No PE, como aliás na Comissão Europeia e no Conselho, tem havido, nas últimas décadas, uma maioria de direita que rejeita avanços nestas áreas de apoio às mulheres e às famílias. Por razões ideológicas, como já referi, mas também por razões financeiras. Para os governos de direita, a proteção social, os serviços públicos, a promoção da igualdade, designadamente, não são assuntos prioritários. Não por acaso, nos últimos quatro anos, em Portugal, o governo cortou no rendimento de inserção social e no complemento solidário para idosos. E, não obstante, a lei da parentalidade ser das melhores da Europa, muitas mães e muitos pais não usaram as licenças e benefícios que a lei lhes confere por receio de perderam o emprego ou serem postos de lado.

Dedicou grande parte da sua vida de deputada no PE e de vice-presidente da Comissão dos Direitos e Igualdade de Género à questão da licença de maternidade e venceu algumas batalhas no que respeita ao alargamento do período de licença. O que falta conquistar, nomeadamente ao nível das licenças de paternidade?

Infelizmente, o meu relatório de revisão da chamada Licença de Maternidade, aprovado pelo Parlamento Europeu por larga maioria, ficou bloqueado no Conselho Europeu. Alguns governos alegaram que as minhas propostas representavam encargos orçamentais elevados, outros refugiaram-se na urgência de resolver a crise e outros invocaram o princípio da subsidiariedade. A verdade é que poucos consideraram o assunto importante. Perdeu-se, assim, uma boa oportunidade de atualizar a Diretiva, que está claramente obsoleta (com mais de vinte anos), indo ao encontro das expetativas das famílias europeias, e de introduzir na legislação comunitária a licença de paternidade. O Conselho não tem estado neste, como noutros domínios, à altura das suas responsabilidades e das exigências dos cidadãos.

Que papel têm ou deviam ter os parlamentares nacionais e europeus nas questões dos direitos reprodutivos, da saúde sexual e reprodutiva e da igualdade de género?

Os parlamentos nacionais têm toda a liberdade de aprovar legislação que corresponda às necessidades das respetivas populações e que resolva os problemas existentes, de acordo com as respetivas Constituições. O Parlamento Europeu tem competências próprias, mais limitadas nestes domínios que os parlamentos nacionais, mas não se pode abster de tomar posição, melhorar a legislação e fazer recomendações aos Estados-membros.

Em termos europeus, de que modo a Comissão dos Assuntos Europeus monitoriza as principais iniciativas do governo e dos institutos públicos ao nível das negociações junto da Comissão Europeia sobre os temas de saúde sexual e reprodutiva e direitos reprodutivos?

A Comissão dos Assuntos Europeus só monitoriza as matérias que, de acordo com os Tratados, são de competência partilhada. Não é o caso da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. De qualquer forma, há o normal acompanhamento por parte da REPER (representação permanente de Portugal junto da União Europeia).

“As mulheres estão em maior número nas Universidades, têm mais qualificações, mas, quando se trata de aceder às instâncias de decisão, esbarram com o tal “teto de vidro” que as impede de subirem.”

Em matéria de igualdade e não discriminação, qual é o principal desafio que neste momento se coloca a Portugal, à Europa e ao mundo?

É difícil identificar o principal desafio. O empoderamento das mulheres é uma necessidade em todo o mundo. O combate à violência de género deve ser travado por todos os meios e sem qualquer tolerância. Na Europa e em Portugal, precisamos de mais mulheres na tomada de decisão política e económica, políticas que permitam a conciliação da vida profissional com a vida familiar e pessoal, medidas de incentivo à natalidade e ao envelhecimento ativo. As mulheres estão em maior número nas Universidades, têm mais qualificações, mas, quando se trata de aceder às instâncias de decisão, esbarram com o tal “teto de vidro” que as impede de subirem. Citando Hillary Clinton, “hoje há mais mulheres à frente de governos, empresas e ONG do que em gerações anteriores. Mas as mulheres continuam a representar a maioria da população do mundo que é pobre, tem fome e não vai à escola”. Infelizmente é assim. Por isso, há um grande caminho a percorrer para acabar com as múltiplas discriminações a que as mulheres são sujeitas.

Na qualidade de presidente da Comissão da Juventude, para quando uma iniciativa legislativa para criação de uma disciplina nas escolas que envolva temas de direitos humanos e cidadania?

Um esclarecimento prévio: nos termos da lei, a iniciativa legislativa compete aos deputados e aos Grupos parlamentares e não às Comissões especializadas. De qualquer modo, quer a Assembleia da República quer o Governo estão certamente atentos e farão uma avaliação aturada da eventual necessidade de introduzir alterações nos curricula, tendo em conta que a abordagem curricular para a cidadania pode assumir formas diversas, no respeito pela própria autonomia das escolas.

Quem é Edite Estrela?

Edite EstrelaEdite Fátima Santos Marreiros Estrela, 66 anos, de Carrazeda de Ansiães, é licenciada em Filologia Clássica, foi professora de Literatura Portuguesa no ensino secundário, vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Direção da Fundação Antero de Quental, presidente da Câmara Municipal de Sinta (entre 1994 e 2002) e deputada ao Parlamento Europeu. Dirigente do Partido Socialista desde 1983, é atualmente deputada à Assembleia da República pelo mesmo partido, cargo que também exerceu em várias legislaturas anteriores: IX, VIII, VI e V. Pertence à Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto (presidente), à Comissão de Assuntos Europeus, à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (suplente) e à Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação (suplente). Dúvidas do Falar Português, Gramática e Comunicação, Guia Alfabético de Linguística e Gramática da Língua Portuguesa e Lisboa Cidade dos Elevadores são alguns dos livros que publicou.

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