Entrevista

. “A escola devia ter uma disciplina de educação sexual”

Conceição CatalãoDefensora incondicional da Educação sexual e Reprodutiva nas escolas, Conceição Catalão trocou o ensino de História pela Educação Especial, porque a massificação do ensino, com turmas de 30 alunos, não lhe permitia olhar para cada um de acordo com a sua individualidade e necessidade. Foi essa vontade de ensinar de um modo diferente que esta professora no Agrupamento de Escolas Daniel Sampaio, em Almada, a aprofundar os conhecimentos sobre a Mutilação Genital Feminina e a tirar uma especialização em multi e interculturalismo. Porque para agir e ajudar as meninas vítimas desta prática nefasta, é preciso conhecer os meandros culturais das comunidades que a praticam.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández

Em Portugal, os temas e conteúdos de direitos humanos, de saúde e educação sexual e reprodutiva são abordadas nas escolas?

A partir do momento em que a educação sexual foi implementada nas escolas, podemos dizer que é abordada nas escolas, não acredito é que o seja de forma efetiva, ou seja, conforme é necessário ser abordada. De um modo geral, penso que os temas são falados na disciplina de Cidadania, com o/a diretor/a de turma, e, de uma forma transversal, noutras disciplinas quando os alunos apresentam questões.

Qual é (ou deve ser) o papel da escola nestas matérias? Qual é a importância de responder a estas lacunas na educação?

É muito importante. A escola tem o papel de formar, de informar, de esclarecer, porque age em múltiplas vertentes. Tem de ser a escola, em paralelo com a família e a sociedade, a formar os alunos para uma cidadania plena, interventiva, ativa, consciente e de respeito pelos direitos humanos. A escola não pode formar exclusivamente sob o ponto científico.

Os diferentes governos têm apoiado, através de diferentes mecanismos e organizações, a formação de professores. Idealmente seriam conteúdos a assegurar na formação inicial e contínua de professores. Há recursos pedagógicos e manuais de formação? O que falta fazer?

Tenho algumas dúvidas de que o governo apoie a formação de professores, porque diz-me a experiência que os professores, quando querem fazer alguma formação, quando sentem necessidade de aprofundar os seus conhecimentos em determinados conteúdos, têm de a procurar e pagar do seu bolso. Pontualmente, haverá uma ou outra formação, de curta duração, que é dada aos professores.

Alguma vez participou em iniciativas de formação? Qual foi o resultado?

Sim, quando era coordenadora de educação para a saúde, mas não no sentido da certificação ou da creditação. No âmbito dessa função, tentei implementar na escola onde lecionei há uns anos, em Albufeira, algumas formações destinadas a professores, encarregados de educação e alunos. Uma era sobre hábitos salutares, quer ao nível da saúde e educação sexual, quer ao nível da alimentação (por exemplo, a importância do pequeno-almoço para o desenvolvimento cognitivo). Relativamente à educação sexual, comecei por criar um gabinete no espaço que me cederam, recuado, nas traseiras da escola (de lembrar que naquela altura falava-se de educação sexual de uma forma subliminar, escondida). Três anos depois cederam-me um gabinete num local mais central na escola, onde os alunos iam de uma forma mais descontraída e sem preconceitos. Na mesma altura, em 1998/99, fiz também uma parceria com o centro de saúde local, que consistia na deslocação de uma enfermeira à escola para informar e tirar dúvidas aos alunos sobre contraceção, doenças sexualmente transmissíveis, etc.. Mais tarde, fiz uma formação na APF (Associação para o Planeamento Familiar) sobre a implementação da educação sexual nas escolas e fiquei entusiasmada, porque queria levar aquele modelo para a minha escola.

Como é que entende que os governantes, legislatura após legislatura, continuem a persistir neste erro, quando todos os estudos revelam as suas consequências desastrosas. Só um exemplo: Uma das conclusões do estudo “Aventura Social & Saúde: A Saúde dos Adolescentes Portugueses. Relatório do Estudo HBSC 2010”, que inquiriu 5050 pessoas com uma média de idades de 14 anos, os jovens revelaram algum desconhecimento face a temas de saúde sexual e reprodutiva e alguma ineficácia pessoal a nível das atitudes, como comunicar “e negociar” as relações sexuais com preservativo, e embaraço na aquisição e porte de preservativos.

Não sei, mas sei que deixou de haver um investimento nessa área, sobretudo com o governo de Passos Coelho. Foi uma altura em que deixou de se dar tanta atenção à educação sexual nas escolas. O desinvestimento nessa área foi a tal ponto que deixou de haver aquela sinergia que era promovida pelos gabinetes de educação sexual nas escolas, através da realização de debates e palestras sobre comportamentos de risco, hábitos nocivos (como recurso às drogas e ao tabaco). De repente, silêncio quase absoluto sobre esses temas.

A prevenção do VIH/SIDA está a acontecer nas escolas que conhece?

Eu não ouço falar de VIH/SIDA, o que me deixa preocupada. Se a educação sexual não está a ser abordada como deveria, se não se fala de VIH/SIDA como uma doença ainda existente, é possível que os comportamentos de risco aumentem entre os jovens. Sabe o que acontece, por exemplo, nas aulas de cidadania? Em vez de os professores abordarem estes assuntos, falam de questões disciplinares, enviam recados aos pais, conversam com os alunos sobre as suas necessidades mais emergentes Se querem que os professores falem de educação sexual como deve ser, é necessário dar-lhes tempo e espaço - entre outros aspectos – já que é uma acção que requer preparação e tempo de qualidade.

E a violência no namoro, a violência com base no género ou os diferentes discursos de ódio, são abordados em contexto escolar?

Do que tenho conhecimento, são abordados pontualmente em várias disciplinas, desde que se cruzem transversalmente.

“Atualmente, como documento orientador, o Referencial para a Saúde pretende dar continuidade ao que já anteriormente se tentou implementar na escolas: auxiliar os nossos alunos a criar um projecto de vida que os encaminhe para boas escolhas sob as diferentes vertentes da saúde”

Faz ideia se esta necessidade de implementar a Educação sobre Direitos e saúde sexual e reprodutiva é recorrentemente tema de discussão na Assembleia da República?

Tenho a ideia de que há partidos, como o Bloco de Esquerda, que apresentam de vez em quando propostas de lei, mas que não passam disso mesmo, de propostas. Atualmente, como documento orientador, o Referencial para a Saúde pretende dar continuidade ao que já anteriormente se tentou implementar na escola: auxiliar os nossos alunos a criar um projecto de vida que os encaminhe para boas escolhas sob as diferentes vertentes da saúde (mental, física, comportamentos, sexual, escolhas diversas…). Enfim, escolhas responsáveis.

A abordagem dos Direitos e saúde sexual e reprodutiva nas escolas passaria, no seu entender, pela introdução de uma nova disciplina, por exemplo de Educação para a Saúde, Cidadania e Igualdade, ou bastava que estes temas fossem transversais a todas as disciplinas com conteúdos específicos para cada programa e ano ou fosse integrado na disciplina de Ciências Naturais (por exemplo, na matéria relativa ao aparelho reprodutor)?

A educação sexual merecia uma disciplina própria. Embora seja uma área de especialização como a educação especial, não o é no sentido efetivo. Do meu ponto de vista, devia criar-se uma disciplina de educação sexual que acompanhasse todos os anos letivos escolares.

Acha que o grande travão é exclusivamente político? A percepção que tenho é que há pais e mães a quem não agrada a abordagem destas temáticas nas escolas. Ou acha que esta é uma percepção que resulta da visibilidade de alguns movimentos junto da comunicação social e poderes políticos?

Não, os obstáculos não são exclusivamente políticos. Há muitos pais que acham que a educação sexual é competência das famílias e não das escolas. Não concordo, obviamente, porque nas escolas estamos a formar indivíduos que têm de fazer prevenção ao nível da saúde e desenvolver conceitos morais de respeito pela dignidade e direitos humanos. A escola não deve, não pode demitir-se desse papel.

Qual é a realidade no agrupamento de escolas Daniel Sampaio, em Almada, onde leciona?

Sei que fez parte dos projetos da diretora atual a educação para a saúde sexual. Está a (re)organizar uma equipa para dar continuidade ao que já se fez no Agrupamento.

“Os obstáculos não são exclusivamente políticos. Há muitos pais que acham que a educação sexual é competência das famílias e não das escolas”

A partir de que idade as crianças em contexto escolar deveriam começar a familiarizar-se com estas questões, a começar pela Igualdade de género?

Quando todos nós olharmos para a sexualidade de uma forma natural, ultrapassarmos os nossos mitos internos, as nossas frustrações, as nossas complicações, quando soubermos estar com nós próprios, estaremos aptos a encarar a sexualidade como uma componente naturalíssima daquilo que somos. A partir do momento em que olhemos para a sexualidade dessa forma, iremos olhar as crianças como indivíduos a crescer dentro de uma sexualidade que deve ser sadia. À medida que vão crescendo, deve-se ir introduzindo informação de acordo com seu o patamar cognitivo e evolutivo. Portanto, estes assuntos devem ser falados a partir do momento em que a criança manifeste curiosidade.

E com que idade deveriam receber, também em contexto escolar, informações sobre saúde sexual e reprodutiva?

À semelhança do que referi anteriormente, a educação para a saúde deveria imprimir-se de acordo com o crescimento do ser humano, dos alunos. Em contexto escolar, no 1º ciclo já se pode (e faz-se) tratar deste assunto. À medida que os alunos vão passando por fases de aprendizagem mais complexas, é natural que esta abordagem se possa fazer. Por exemplo, o programa das Ciências Naturais está elaborado de acordo com o patamar cognitivo dos alunos, já permite complexificar conteúdos sobre a reprodução e o aparelho reprodutor. Da experiencia que tive com o gabinete de educação para a saúde e educação sexual, apercebi-me que cada vez mais cedo, em idade, os alunos manifestam necessidade de conhecimento e de desconstrução (digo eu!) de certas conversas, imagens, etc.

Em situações de crise, de violência quer na família, quer entre pares, as crianças e jovens sabem onde e como pedir ajuda? Há esta atenção nas escolas?

Hoje os jovens já sentem à-vontade para pedir ajuda aos diretores de turma, se tiverem empatia com estes. É claro que se existir nas escolas um gabinete de educação para a saúde, vai facilitar a denúncia de situações violentas e o pedido de ajuda, porque nesse espaço podem desabafar e exporem-se sem serem julgados.

Os gabinetes de informação e apoio previstos na legislação estão a funcionar? Como acontece nas escolas onde ensinou /ensina?

Onde dei aulas durante quase 13 anos, no Algarve, existiu, funcionou e penso que a situação se mantém, até porque a professora que me substituiu estava fortemente motivada para a área da saúde sexual e reprodutiva. Quando vim para Almada constatei que as temáticas sobre a saúde sexual e reprodutiva saiu da sala de aula para começar a ser falada em palestras com pessoas de fora, o que não favorecia o envolvimento dos professores. O ideal, repito, seria criar um espaço para a educação sexual nas Escolas, mas, atenção, sem sobrecarregar os professores.

No 2º Encontro Regional para a Intervenção Integrada pelo Fim da MGF, em Fevereiro, a professora defendeu a educação para a Pedagogia dos Afetos. Quer explicar?

É a pedagogia da diferenciação, é o olhar para o outro na sua individualidade. Sempre procurei olhar para os meus alunos como pessoas, dizer-lhes que eu estava ali para os ajudar e não apenas para ensinar conteúdos. O problema é que temos uma escola massificada, turmas com 20 e 30 alunos. Pergunto: como é que os professores podem dedicar-se à pedagogia dos afetos se têm tantos alunos, fora as reuniões e o trabalho extra curricular? É impossível. Talvez tenha sido isso que me levou a trocar o ensino de História pela Educação Especial. Na Educação Especial tenho menos alunos, com problemáticas que carecem de muita atenção, mas que me permitem olhar para eles o tempo que cada um necessita. A Pedagogia dos Afetos é reconhecer que o outro tem importância para mim, que é, também ele, um agente influenciador do meu dia-a-dia, que a sua evolução me permite evoluir, que o seu bem estar me permite ser mais feliz.

Embora a gravidez na adolescência esteja a diminuir em Portugal, temos a 8ª maior taxa da UE de gravidez entre adolescentes. A violência no namoro está a aumentar (o número de participações à PSP e à GNR aumentou 6% entre 2015 e 2016, uma tendência de crescimento que se verifica desde 2013). Acha que estes dados são consequências diretas da falta de projetos educativos sobre Direitos, Educação, saúde sexual e reprodutiva e igualdade de género nas escolas?

Não sei se são uma consequência direta. Existem múltiplas vertentes a influenciar esses fatores. Existe uma cultura de facilitação, que emerge quase de forma indelével no todo que compõe a nossa existência, há múltiplas chamadas ao culto físico, ao que é rápido, às sensações e à necessidade em sobreviver. Nem sempre os nossos jovens crescem sadiamente, com uma linha moral que, de uma forma assertiva, delimite fronteiras a diferentes níveis. A escola tem a sua responsabilidade, sim, porque se houvesse educação sexual efetiva, estes números talvez fossem menores. Só a partir da operacionalização, e da (re) continuidade da educação para a saúde, nas suas múltiplas vertentes, após algum tempo (anos) poderemos aferir a importância da mesma para a formação dos alunos e do seu contributo no tecido social.

“A escola tem a sua responsabilidade, sim, porque se houvesse educação sexual efetiva, talvez fossem menores este números [Portugal tem a 8ª maior taxa da UE de gravidez entre adolescentes e a violência no namoro está a aumentar]”

A Mutilação Genital Feminina é talvez uma das expressões máximas da violência de género. Teve ou tem alunas vítimas desta prática nefasta?

Sim, tive uma aluna da Guiné Bissau de onze ou doze anos quando lecionava em Albufeira. De vez em quando surgia com um ar muito triste. Decidi olhá-la com mais atenção. As auxiliares comentavam que os familiares dela queriam obrigá-la a ir à Guiné Bissau fazer o “corte”, mas, vim a saber anos mais tarde, que ela já tinha sido excisada. Foi o caso desta menina que me levou a estudar mais aprofundadamente a Mutilação Genital Feminina. Ainda há pouco tempo, pois somos amigas, me confidenciou que se recorda do “momento como sendo um sonho que a persegue” e que procura esquecer o que foi aquela dor, uma dor que, ainda não terminou pois está presente de todas as vezes que o prazer lhe é negado, por não o sentir enquanto mulher, por, evidentemente, ter sido excisada.

E no que respeita aos casamento infantis, forçados ou arranjados/combinados?

Não conheço nenhum caso.

Qual deverá ser o papel dos professores e da escola quando se deparam com estas situações?

Devem trabalhar em rede, com as diferentes instituições, entre elas a CPCJ, os Centros de Saúde, e denunciar.

Estes temas de violência sobre meninas e jovens começam a ser mais presentes na narrativa de diferentes responsáveis e ONG em Portugal. De que forma chegam às escolas e o que podem estas fazer para a sua prevenção?

Não chegam declaradamente, devo dizer. A prevenção faz-se pela Educação de uma sociedade, nas escolas e nas famílias. Há organizações, por que se trata de temas muito sensíveis, pouco verbalizados (em voz alta), que fazem formação para professores, despertando nestes outros olhares e sentires. O próprio conceito de Educação começa a ser mais abrangente, os professores, com as diferentes nacionalidades em sala de aula, começam a tecer discursos, práticas educativas diferentes. É um assunto vastíssimo!

Como é que a MGF e suas consequências na saúde física, sexual e psicológica das vítimas pode ser abordada em contexto escolar?

O tema pode ser abordado pelos professores nas disciplina de Ciências Naturais, na parte da matéria referente ao aparelho reprodutor, podendo exemplificar com aspetos culturais de outros países. E em História os professores podem falar das questões culturais em vários pontos da matéria, por exemplo, relativa aos Descobrimentos e permutas culturais. No entanto, deixe-me dizer-lhe que considero que a Mutilação Genital Feminina, como prática nefasta, deve ser trabalhada com vista ao seu fim junto das comunidades praticantes, em ambiente mais privado. Na escola apenas podemos reiterar e informar os alunos de que a MGF é um crime em Portugal e em vários países e que tem riscos, muitas vezes fatais, para a saúde das vítimas.

Participou no 2º Encontro Regional para a Intervenção Integrada Pelo Fim da Mutilação Genital Feminina. Que conclusões tirou desta iniciativa?

Só estive presente na primeira parte e verifiquei que existe uma grande necessidade de comunicar. Estamos todos a dizer o mesmo, queremos todos o mesmo, que é encontrar uma solução para acabar com a MGF, mas estamos todos a falar com códigos pessoais, o que impede muitas vezes que haja uma convergência na comunicação. Poderia também dizer, que dali deveriam ter emergido conclusões – e é possível que tenham emergido - que divulgadas, poderiam ser trabalhadas pelos seus intervenientes, em grupos de trabalho.

Considera que eventos como esse são importantes contributos para o fim da MGF?

São de importância fulcral, mas deviam ser mais divulgados para chegarem às escolas, à academia, à comunicação social. Sobretudo deveriam ser trabalhadas as conclusões e a partir daí promover noutras iniciativas…

Em seu entender, as escolas em Portugal e os professores estão preparados para a desconstrução de práticas nocivas à saúde e direitos das meninas, jovens e mulheres ou ainda estão no patamar do “respeito pela identidade cultural” e do “ isso é uma prática de outros países”?

Para se falar desses assuntos ao nível da educação há que ter primeiro uma noção básica do que é a interculturalidade e a multiculturalidade. É um assunto complexo, os professores não estão preparados para lidar/falar de práticas nefastas como a MGF, os casamentos infantis, precoces e forçados, entre outras, e era fundamental que estivessem, pois, como sabe, em Portugal os cenários escolares são cada vez mais multiculturais. Ainda assim, não existe da parte da tutela uma preocupação de integração dos alunos que vêm de outras culturas. Os alunos chegam às escolas, legalmente são integrados, é-lhes atribuído o português língua não materna… mas falta ainda todo um trabalho de efetiva integração, melhor, de inclusão.

Quem é Conceição Catalão?

Conceição Catalão

54 anos, licenciada em História (disciplina que lecionou durante 25 anos), tem uma especialização e pós-graduação em Educação Especial, um mestrado em Observação e Análise da Relação Educativa e um doutoramento em Educação multicultural e Intercultural. Hoje dá aulas a alunos entre os 12 e os 17 anos com necessidades educativas especiais no Agrupamento de Escolas Daniel Sampaio, em Almada.