Entrevista

. «Trabalho igual, salário igual. Já!»

Fotografia de Sara Falcão CasacaO direito à igualdade de remuneração e de tratamento entre homens e mulheres continua a ser desrespeitado. Mesmo na Europa. E nesta matéria, Portugal fica muito mal no retrato, com as mulheres a ganharem menos 30 por cento do que os homens nos níveis de escolaridade superior. Para combater tamanha desigualdade, a investigadora Sara Falcão Casaca defende a implementação de quotas e de normas que vinculem as empresas à igualdade.

Fotografia de Bárbara Caldeira

 

Entrevista: Célia Rosa 

A crise económico-financeira tornou-se também uma crise social, com consequências graves ao nível do mundo do trabalho. Em termos de género, e nomeadamente, desemprego, salário, pobreza, que reflexos teve?
Desde 2008 que a situação laboral de mulheres e de homens está menos distante. Tradicionalmente, havia mais mulheres com contratos de trabalho precários e a tempo parcial, em situação de desemprego, no desemprego de longa duração mas, nos últimos anos, os valores entre mulheres e homens aproximaram-se. Na prática, isto significa houve uma degradação das condições laborais e de vida dos homens muito acentuada nos últimos anos. Não se trata de igualdade, obviamente, mas sim de nivelamento das condições laborais pelas piores razões – vulnerabilidade, degradação das condições materiais e de vida e maior risco de empobrecimento a que ambos estão expostos.

Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Este princípio é uma aspiração ou um preceito já instituído?
Mais do que um princípio, é um direito constitucionalmente consagrado. Mas entre o direito e a sua efetivação vai uma grande distância, como revelam os vários estudos que tenho feito. Sabemos que esse fosso persiste em todos os países, mesmo naqueles que mais cedo avançaram no plano das normas legais, das políticas públicas, dos apoios sociais, e que mais têm procurado estimular práticas favoráveis à igualdade entre mulheres e homens.

Isso significa que as políticas de igualdade não são eficazes?
Não, pelo contrário, esse foi um percurso valeu a pena. Quero dizer que igualdade não existe em nenhum país, mas há mais países mais e menos igualitários, mesmo na Europa. A Noruega, por exemplo, apresenta os indicadores mais igualitários, como demonstra o último Global Gender Gap Report, inclusive no que toca ao indicador «igualdade salarial», onde Portugal está claramente mal posicionado, com um elevado diferencial salarial entre homens e mulheres. Na tomada de decisão na esfera económica, a Noruega também se destaca. É o país com mais mulheres nos lugares de decisão (à volta de 40 por cento), enquanto Portugal está entre aqueles onde a presença feminina é mais baixa (nove por cento nas empresas do PSI-20). Neste capítulo, Malta apresenta um quadro verdadeiramente negro: as mulheres representam apenas três por cento dos membros dos conselhos de administração das maiores empresas cotadas em bolsa.

O tecido empresarial português é composto por muitas pequenas e médias empresas (PME). O que é que se sabe sobre a igualdade de género nesta área?
O caminho para a transversalidade da igualdade de género no seio empresarial passa precisamente pelas PME e, em particular, pelo micro empresas. Mas são muitas as dificuldades em alcançar estas empresas devido à sua pulverização ou escassa organização empresarial, à dispersão no plano geográfico, às dificuldades financeiras com que muitas actualmente se deparam, ao baixo nível de qualificação dos empresários, gestores e trabalhadores e aos tradicionais modelos de organização do trabalho. Estou neste momento a coordenar um projeto que visa também promover a igualdade nas PME, além de empresas do setor empresarial do estado e cotadas em bolsa. A nossa expetativa é que, com os instrumentos que vamos criar, a mesma metodologia possa ser replicada nas empresas de pequena dimensão. Este trabalho é feito em parceria com a Universidade de Oslo e o Centro de Estudos de Género.

Em funções idênticas, as mulheres são mais mal remuneradas do que os homens e o diferencial salarial é tanto maior quanto mais alto é o nível de escolaridade e qualificação. Como é que isto sucede?
De acordo com os dados estatísticos oficiais recolhidos a partir de informações (obrigatórias) prestadas pelas empresas, em Portugal as mulheres ganham, em média, menos 18 por cento do que os homens. Isto se observarmos apenas as remunerações de base porque, se considerarmos o total dos ganhos, verifica-se que auferem menos 21 por cento. E sim, esse diferencial é proporcional ao nível de qualificação e ao nível de escolaridade. Quando detêm um nível de escolaridade básico, as mulheres ganham menos 19 a 20 por cento do que os homens, mas quando se trata de um nível de escolaridade superior, um mestrado, por exemplo, as mulheres recebem menos 30 por cento do que os homens em situação comparável. Estamos, pois, perante a violação de um direito fundamental: o direito à igualdade de remuneração e à igualdade de tratamento para um trabalho de igual valor. É preciso saber se essas mulheres e esses homens estão a realizar trabalho igual ou trabalho, que embora diferente, deveria ter valor igual. Parte do diferencial remuneratório decorre da depreciação do trabalho realizado pelas mulheres.

A participação das mulheres nas estruturas dos trabalhadores (sindicatos e comissões de trabalhadores) também é reduzida…
Sim, as assimetrias de género são transversais a todos os setores. E, neste caso, é uma das razões pelas quais a igualdade de género não tem sido considerada uma área prioritária em sede de negociação coletiva e de diálogo social em geral.

Na prática, como é que os estereótipos de género se revelam nas empresas e organizações?
De várias formas. Por exemplo, através atributos que são tradicionalmente associados ao género masculino como independência, objetividade, orientação para o poder, ambição, competitividade, secundarização da vida familiar, precisamente as características que mais se colam à representação social em torno de um gestor eficiente e de um bom líder. Por outro lado, a representação social dominante em torno do género feminino continua a colar às mulheres atributos associados à sensibilidade e solidariedade, menor orientação para o poder e para a competitividade, ausência de ambição e priorização da vida familiar. Logo, a leitura socialmente dominante, é que as mulheres estão «naturalmente» menos vocacionadas para ocupar posições estratégicas e de liderança na vida económica e empresarial. Trata-se de estereótipos, mas muito ajudam a explicar a sub representação de mulheres em lugares de topo.

Pode identificar e desconstruir alguns mitos sobre as mulheres que contribuem para perpetuar a sua discriminação?
São tantos. Por exemplo, o mito de que não são ambiciosas em termos de carreira e que não competem pelos lugares de liderança. Na verdade, os estudos evidenciam que muitas mulheres altamente qualificadas, empenhadas e com elevadas expetativas de carreira acabam por limitar as suas aspirações quando integram contextos organizacionais onde os homens ocupam sistematicamente os lugares estratégicos, são os primeiros a ser promovidos e a beneficiar de oportunidades de carreira. Os constrangimentos organizacionais moldam as aspirações profissionais, obviamente.

Se tivesse o poder de decidir, o que mudaria na prática das organizações nacionais?
Defendo uma mudança que passe pelo abandono de modelos de organização de trabalho tradicionais, burocráticos, assentes em estilos de gestão centralizados, hierarquizados, que valorizam o controlo, a presença física e o número de horas passado na organização, com estruturas adaptadas ao modelo tradicional de trabalhador isento de responsabilidades familiares. Em seu lugar, privilegio a adoção de modelos de organização do trabalho humanistas e inclusivos. Estes pressupõem uma organização do trabalho favorável à integração e ao desenvolvimento profissional de mulheres e homens, potenciando a sua plena realização profissional, familiar e pessoal. Não podemos falar de conciliação trabalho-família sem falar da necessidade de integrar uma orientação para a igualdade de género. Em vez da ênfase no controlo, na rigidez das estruturas e da organização do trabalho, as empresas devem valorizar a autonomia (associada à descentralização das responsabilidades), a qualidade do resultado final do trabalho (output) em vez dos factores tradicionais (inputs), promover a flexibilidade do tempo de trabalho e a valorização interna da maternidade e da paternidade, da vida familiar e pessoal.

Defende a criação de quotas para a representação das mulheres nos CA das empresas?
Sim, com toda a convicção, incluindo no plano da tomada de decisão da esfera económica. Para quem se revê nos valores da igualdade entre mulheres e homens, assim como no desejo de habitar e legar uma sociedade socialmente mais justa, os principais avanços no plano normativo têm decorrido a um ritmo demasiado lento. A mudança que se impõe não se compadece com recomendações de apoio à autorregulação e resoluções de caráter não vinculativo ou voluntarista.

Como é que o nascimento dos filhos influencia a participação das mulheres e dos homens no mercado de trabalho?
Em praticamente todos os países da União Europeia, a taxa de emprego diminui entre as mulheres, com a maternidade, e aumenta entre homens, com a paternidade. Este indicador diz muito. A responsabilidade pelo cuidar e pelo educar recai ainda fundamentalmente nas mulheres. Por isso, em países como a Republica Checa ou a Hungria, as mulheres tendem a interromper a atividade profissional; nos Países-Baixos, Alemanha, Áustria e Reino Unido passam a trabalhar a tempo parcial. Em Portugal, as mulheres ficam normalmente no mercado de trabalho e, a meu ver, ainda bem, mas o conflito trabalho-família pesa consideravelmente nos seus quotidianos e tem implicações sérias do ponto de vista do seu bem-estar e da sua qualidade de vida.

Que avaliação faz da política e das políticas de igualdade desenvolvidas e implementadas nos últimos tempos?
Destaco o facto de a atual Secretária de Estado, Teresa Morais, se ter debatido, mesmo num contexto político conservador, para que as empresas se comprometam com a igualdade entre mulheres e homens. Não é o cenário ideal, mas é a ela que se deve o empenho que resultou na obrigatoriedade das empresas do setor empresarial do estado adotarem planos de igualdade tendentes a alcançar uma efetiva igualdade de tratamento e de oportunidades entre homens e mulheres, a eliminar discriminações e a permitir a conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional. Também o V  Plano Nacional para a igualdade de género, Cidadania e Não-discriminação – 2014-2017 apresenta uma medida inovadora no contexto nacional: a representatividade das mulheres nos CA das empresas (independentemente do sector) passa a ser critério de desempate na atribuição de fundos de coesão da União Europeia.

Porque é que faz sentido ser feminista?
Essa é uma pergunta que me é colocada muitas vezes. Ser feminista não é uma extravagância. Significa que nos indignamos com todas as formas de violência contra as mulheres, o infanticídio de meninas, as violações, o assédio sexual, a prática da mutilação genital feminina, o tráfico para fins de exploração laboral ou sexual. E que não desistimos de lutar por direitos fundamentais, como o direito à educação, à saúde sexual e reprodutiva, e de exigir o fim dos casamentos forçados e precoces. Persistem inúmeras desigualdades, que importa continuar a denunciar – como o diferencial salarial em desfavor das mulheres, a feminização da pobreza, da vulnerabilidade laboral, a discriminação laboral praticada contra grávidas, a ausência da voz das mulheres na esfera pública. Mas, mesmo num cenário de igualdade entre mulheres e homens, seria certamente feminista… em reconhecimento do percurso pelos direitos das mulheres e de todas as feministas que, no passado, travaram uma luta difícil, em condições frequentemente muito adversas e hostis, pela conquista dos nossos direitos cívicos, políticos, económicos e sociais.

 

Quem é Sara Falcão Casaca?

Fotografia de Sara Falcão CasacaInvestigadora e professora no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, tem-se dedicado ao estudo da igualdade e relações de género no mercado de trabalho e é coordenadora do projeto «Promoção da igualdade de género nos Lugares de Decisão e Redução das Assimetrias Salariais nas Empresas: do Diagnóstico à Ação». Foi presidente da Comissão para a Cidadania e igualdade de género (CIG). Tem 43 anos e acredita que está nas nossas mãos construir uma sociedade mais justa e digna, onde mulheres e homens saibam viver em igualdade e possam ser o que genuinamente desejam e não o que as convenções sociais lhes impõem.