Entrevista

. “Não diga à sua filha como vestir-se, diga ao seu filho como comportar-se”

katja iversenQuando se investe nas meninas, o mundo ganhará mulheres saudáveis, instruídas, produtivas e competitivas. Todos ganham: as raparigas e as mulheres, a sua família, a sua comunidade e a economia do seu país. É esta equação simples que Katja Iversen, CEO da organização norte-americana Women Deliver, tenta ‘ensinar’ aos países que têm cortado o investimento em áreas tão vitais como a saúde sexual, reprodutiva e materna das raparigas e mulheres. Porque elas não são um fardo, são uma força de trabalho.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández

Uma das mensagens-bandeira da Women Deliver é esta: “Quando o mundo investe nas raparigas e nas mulheres, toda a gente ganha”. Quer ser mais explícita?

Sim, claro. Com essa frase, pretendemos dizer que investir nas questões transversais da saúde, economia, educação e igualdade para meninas e mulheres cria uma espécie de ‘efeito cascata’ de resultados positivos em todas as sociedades. Não é apenas positivo para as raparigas e mulheres individualmente, é também positivo para as suas famílias, comunidades e sociedades onde estão inseridas. Um dólar, um euro investido nas raparigas e mulheres volta várias vezes, ou seja, o retorno do investimento é muito maior. Por isso, toda a gente ganha.

O mundo ainda não percebeu que as mulheres e as raparigas dão à sociedade muito mais do que bebés?

Uma importante parte do mundo não percebeu isso, não. Mas devia, porque elas contribuem com saúde, com trabalho, com produção, com riqueza. Elas são parte do mundo, são parte da economia, mas quando a sua saúde e os seus direitos estão comprometidos, o que podem dar também está comprometido. Todas as investigações que desenvolvemos em parceria com outras instituições, entre as quais o Banco Mundial e a McKinsey, demonstram que quando as mulheres são saudáveis, têm acesso à educação e ao trabalho, toda a família e sociedade beneficiam com isso. Uma mulher investe 90% do seu rendimento na família, enquanto um homem investe apenas entre 30% e 40%.

Está a falar especificamente de algumas regiões do mundo ou no geral?

No geral. É uma média a que chegamos através de alguns estudos. Esses estudos mostram que as mulheres investem mais na saúde e na educação dos filhos e filhas do que nelas próprias, porque sabem que a educação e a saúde são as ferramentas que podem quebrar o ciclo da pobreza. Por exemplo, há 225 milhões de mulheres nos países em desenvolvimento que não têm acesso a métodos contracetivos e gostariam de ter. Se nós satisfizéssemos essa necessidade, estaríamos a salvar vidas e a incrementar a produtividade. Nesta questão em particular do investimento no planeamento familiar, tudo indica que gastar um dólar em serviços de contraceção reduz o custo nos cuidados durante a gravidez na ordem dos 1,47 dólares. É só um exemplo. Dou-lhe outro: se as mulheres agricultoras tivessem o mesmo acesso aos recursos que os homens, haveria menos 150 milhões de pessoas com fome.

Ia perguntar-lhe se os países estão a tratar as raparigas e as mulheres bem, mas sendo assim, parece descabido…

Não está a tratar suficientemente bem. A cada dois minutos, uma mulher morre de parto. Todos os dias, trinta e nove mil meninas são forçadas a casar antes de completarem 18 anos. Por ano, 266 mil mulheres morrem de cancro cervical, a maioria das quais vive em países em desenvolvimento. Se o mundo as tratasse bem, não teríamos Meninas e Mulheres com os genitais mutilados, não teríamos violência doméstica contra mulheres. Como seres humanos devemos ser iguais e embora esse direito esteja garantido na lei, na prática, não se concretiza.

Porquê?

Porque requere investimento. Portanto, o que na Women Deliver tentamos fazer é reunir argumentos, é dizer que o investimento nas raparigas e nas mulheres é a coisa certa a fazer, quer do ponto de vista dos direitos humanos, quer do ponto de vista económico.

Mas o investimento na saúde sexual e reprodutiva e nos direitos tem sido cortado. Que mensagem gostaria de dar aos países que têm priorizado outras áreas?

Antes de mais, a minha organização é uma organização de advocacy, com um trabalho direcionado para a defesa da saúde, direitos e bem-estar das raparigas e das mulheres em geral, mas particularmente na área da saúde materna, saúde sexual e reprodutiva e direitos. Trabalhamos para angariar investimentos, quer políticos, quer financeiros. A evidência, os dados dos estudos, mostram que quando se investe nas raparigas e nas mulheres, os ganhos são enormes. Portanto, a nossa mensagem para os países que estão a cortar o investimento nestas matérias é que estão a ter uma visão curta, antieconómica, pouco esclarecida e estúpida.

Sendo assim, por que razão desinvestem nessas áreas?

Bem, há muitas razões, entre as quais a dispersão do investimento noutras áreas. O que vemos neste momento na Europa é que muitos governos estão a cortar as ajudas ao desenvolvimento no exterior para fazer face à afluência de refugiados. Os países estão a dar prioridade à situação presente, ao aqui e agora.

Mas os cortes começaram antes da crise de refugiados…

Sim, é verdade, mas tem sido um corte à ajuda ao desenvolvimento no geral e não especificamente na área da saúde sexual e reprodutiva e dos direitos. O investimento na saúde materna e no planeamento familiar subiu, portanto, depende dos indicadores de análises que usamos. É difícil dizer que tem havido um corte transversal nestas matérias.

Onde é que o desinvestimento se sente mais?

Não tenho esses dados neste momento, não de cabeça. Mas vemos que algumas áreas em que atuamos têm sido afetadas, mas, como lhe disse, está relacionado com os cortes na ajuda ao desenvolvimento no geral.

É fácil uma organização como a Women Deliver funcionar nessas condições? Onde é que vão buscar o dinheiro?

Nós não trabalhamos particularmente nos países europeus. Trabalhamos a um nível global, com outras organizações nos países em desenvolvimento. Os nossos fundos provêm de governos europeus, sobretudo nórdicos (e esses têm cortado o apoio), de fundações, de algumas agências das Nações Unidas, e do setor privado. Temos uma fonte de financiamento muito diversificada.

O trabalho da Women Deliver não está, então, comprometido?

Não. Estamos a trabalhar a 100%. Mas, atenção, somos uma organização pequena e não fazemos serviço humanitário direto, não entregamos bens alimentares, fazemos advocacy, o que nos permite enfrentar melhor os altos e baixos. Neste momento temos projetos e temos dinheiro. Estamos a crescer.

Conhece a realidade das raparigas e mulheres em muitos países. Em que regiões observou as situações mais difíceis em termos de saúde materna e neonatal e de saúde sexual e reprodutiva?

Na África subsariana e no sul da Ásia. Particularmente na Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh. No Bangladesh temos visto progressos, porque o país investiu no planeamento familiar e na formação de parteiras, tendo como resultado, entre outros, a diminuição do índice de mortalidade materna.

“É preciso um investimento muito maior na saúde e na educação/escolaridade das meninas, no acesso das mulheres à terra, à água, a uma conta bancária, enfim, ferramentas que permitam o seu empoderamento.”

A violação dos direitos das mulheres e das raparigas não se confina à área da saúde sexual e reprodutiva. Desde forçadas a casar à mutilação dos seus genitais, passando por outras violências de género, elas são de facto um grupo muito vulnerável. O que é preciso fazer para acabar com estas violações dos direitos humanos das raparigas e mulheres? Mais dinheiro?

Pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, precisamos de uma mudança da mentalidade (na política, nas empresas, nas famílias), que veja as mulheres não apenas como vítimas mas também como iguais, como ativos, como forças produtivas. Em certas sociedades, celebra-se o nascimento de um rapaz e não de uma rapariga, porquê? Porque nessas sociedades, as mulheres e as raparigas são um fardo. Em segundo lugar, precisamos de um investimento muito maior na saúde e na educação/escolaridade das meninas, no acesso das mulheres à terra, à água, a uma conta bancária, enfim, ferramentas que permitam o seu empoderamento.

No geral, as estatísticas dizem que as mulheres são o grupo mais vulnerável, mas quando eu conheço mulheres, mesmo as mais pobres, eu não vejo vítimas, vejo agentes de mudança, vejo mulheres que tomam conta das famílias, que se levantam da cama às cinco da manhã e trabalham até à meia-noite para melhorarem as condições de vida das suas famílias. Não são vítimas, são lutadoras.

Dizer que as mulheres são vítimas tem efeitos negativos?

Digamos que se se sentirem vítimas, agem como vítimas. Precisamos de ver as mulheres como poderosas, com recursos e com forças, que precisam de oportunidades, de investimento, de um empurrão, de uma base.

De quem é a culpa?

Penso que é algo que está enraizado. Porque é que corremos como raparigas? O que é que isso significa? De onde é que isso vem? Não sei. Quando olha para os grandes casos de estupro na Índia, aquilo que aprende é: não diga à sua filha como deve vestir-se, diga ao seu filho como deve comportar-se.

Qual é a mensagem mais importante que os governos (e todos nós) devemos apreender?

Investir nas raparigas e nas mulheres não é uma despesa a longo prazo, é um ganho a longo prazo. É a coisa certa a fazer. É uma aposta inteligente do ponto de vista económico, já para não falar de direitos humanos.

Como é que se pode investir nas raparigas e nas mulheres em regiões como a África subsariana e o sul da Ásia, onde têm que ocupar grande parte do seu tempo a ir buscar água longe de casa? Construindo um poço mais perto?

É uma questão de prioridades. Quando se investe em infraestruturas num país, mesmo num país pobre, investe-se em estradas, em saneamento básico, em água canalizada, em eletricidade. E ou faz-se como sempre se fez ou tenta-se fazer as coisas de forma a beneficiar as raparigas e as mulheres, para que não tenham que perder tanto tempo a ir buscar água, tempo que deviam ocupar a trabalhar ou a estudar na escola. Se se construir um poço perto de casa, o que é que elas podiam fazer durante as três horas que antes ocupavam a ir buscar água? As mulheres podem trabalhar, tomar conta da família, ser produtivas, e as raparigas podem ir para a escola e, no futuro, contribuir para a riqueza do país. Portanto, tem que se olhar para a economia numa larga escala. As mulheres transportam a água na cabeça, em enormes recipientes. Se lhes derem um carrinho de mão para carregarem o balde ou um transporte que faça a distribuição de água, faz toda a diferença. Mas, atenção, água limpa. A água inquinada, imprópria para beber, é responsável por um número elevado de doenças, de internamentos hospitalares e de mortes.

Em maio do próximo ano (entre os dias 6 e 19) terá lugar em Copenhaga, Dinamarca, a Conferência Women Deliver, a maior conferência mundial na última década sobre saúde, direitos e bem-estar de raparigas e das mulheres. O foco desta reunião é descobrir como fazer destas áreas uma prioridade nas questões do desenvolvimento. Tem uma resposta para esta pergunta?

Por acaso tenho. Certamente já ouviu falar dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A nossa análise mostra que se começarmos a realizá-los colocando as raparigas e as mulheres no centro e investindo em algumas daquelas áreas, isso irá acelerar a sua implementação. Quais são as soluções para que as raparigas e as mulheres possam retribuir com todo o seu potencial o investimento que foi feito nelas? Durante quatro dias, em Copenhaga, iremos focar-nos em soluções, soluções, soluções, não problemas, problemas, problemas, não vítimas, vítimas, vítimas. Precisamos de soluções. O que é que pode ser feito? O que é que está provado que funciona? Qual é o melhor investimento para promover a saúde das mulheres e raparigas? Qual é o programa internacional com mais e melhores resultados no planeamento familiar? Como é que podemos travar a violência de género? Como é podemos ter a certeza de que se vai empoderar economicamente as mulheres e raparigas (por exemplo, tendo uma conta bancária ou sabendo ler um orçamento)? Os problemas estão identificados, agora temos é que encontrar as soluções. É isso que vamos tentar fazer em Copenhaga.

O Secretário-Geral das Nações Unidas, Baan ki Moon, vai lá estar?

Espero que sim. Ele e mais umas quantas pessoas influentes, como por exemplo o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, pessoas da realeza e ministros das Finanças, da Saúde, da Educação e da Igualdade de vários países, para além, claro, de representantes da Sociedade Civil, ONGD, entre as quais a portuguesa P&D Factor [que tem uma parceria com a WD para a produção de algumas das infografias e outros materiais de advocacy, disponíveis no site da organização; Inês Fernandes, da direção da P&D Factor, será uma das participantes/bolseiras na Conferência de Maio, em Copenhaga].

Está otimista quanto aos resultados da conferência. Quais são as suas expetativas?

Vejo a conferência como uma espécie de bomba de gasolina, que nos permite encher o depósito para podermos seguir viagem, para podermos ir mais longe e mais depressa.

Quem é Katja Iversen?

katja iversen

Aos 46 anos, esta reputada especialista em comunicação e desenvolvimento é, há ano e meio, CEO da Women Deliver (WD), uma organização de advocacy, com um trabalho direcionado para a defesa da saúde, direitos e bem-estar das raparigas e das mulheres, particularmente na área da saúde materna, saúde sexual e reprodutiva e direitos. Com um extenso trabalho reconhecido na área da saúde global e com mais de vinte anos de experiência em Organizações Não Governamentais e em agências das Nações Unidas, tudo indica que Katja será a próxima presidente da WD.