Entrevista

. “Todos os casamentos precoces conduzem à emancipação”

rosario farmhouse 150x180A poucos dias do Encontro Nacional entre a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens e as Comissões de Proteção das Crianças e Jovens, que vai decorrer entre 21 e 23 de maio, falamos com Rosário Farmhouse sobre os grandes desafios que se colocam à instituição que dirige desde novembro do ano passado. Para a diretora da CNPDPCJ, a protecção dos direitos das crianças é uma área “em que nunca estará tudo feito.”

A sensibilização que tem vindo a ser feita para proteger e defender as crianças e jovens de qualquer tipo de maus tratos é hoje muito maior.”


Entrevista: Carla Amaro
Fotografia: Tiago Lopes Fernández


O que se entende por crianças e jovens em perigo?

Em termos gerais, uma criança está em perigo quando os pais ou cuidadores não asseguram as condições essenciais relativas à saúde, higiene, educação, bem-estar emocional, crescimento harmonioso, entre muitas outras.

Como é que funcionam as CPCJ e qual o âmbito em que atuam?

Depois de sinalizada uma situação de perigo, as CPCJ atuam apenas e só com consentimento expresso dos pais e/ou cuidadores. Procedem à avaliação da situação e, caso seja de perigo, aplicam medidas de promoção e proteção. Estas medidas são aplicadas através dos acordos de promoção e proteção. Estamos a falar de um acordo que contempla coisas como por exemplo: limpar a casa, fazer comida apropriada, medicar corretamente e a horas (é preciso termos consciência de que há cuidadores que não sabem ver as horas ou ler um calendário, não conseguem manter a casa nas condições mínimas de limpeza). Outro aspeto muito importante é assegurar a ida das crianças para a escola. Não esqueçamos que o absentismo escolar é um dos motivos que pode conduzir à sinalização. Isto, para não falar das situações mais noticiadas, como sejam a violência, os abusos, os comportamentos aditivos dos pais, entre muitas outras situações.

Como e onde podem ser contatadas as CPCJ?

É muito simples e fácil chegar ao contacto com as CPCJ. Basta procurar na internet, ou pedir ajuda nas juntas de freguesia, nas escolas, nas forças de segurança mais próximas. Hoje em dia, o sistema já é muito conhecido da sociedade e das instituições locais. Deve sempre ser contactada a CPCJ da zona onde reside a criança.

As CPCJ atuam em crianças até aos 18 anos? Nesta idade, quais as tipologias de sinalização mais frequentes?

Na verdade, atuam até aos 21 anos, desde que o jovem, antes de completar os 18 anos, peça a continuação do acompanhamento. Nestas idades, as tipologias mais frequentes são o abandono e absentismo escolar e consumos de substâncias aditivas. E aqui, é bom frisar que o consumo exagerado de álcool é um flagelo. Muitas vezes em idades muito, muito precoces: há crianças com apenas 10 anos, que são encontradas em coma alcoólico…

Qual é a atuação das CPCJ nos casos de bullying e ciber bullying?

As Comissões têm um importante papel de prevenção e esclarecimento nesta matéria. E fazem muito trabalho em articulação com as escolas, com entidades especializadas nessa matéria, com as forças de segurança…

E nos casos de Mutilação Genital Feminina e casamentos infantis e forçados?

Nestes casos, as comissões são obrigadas a comunicar ao DIAP, uma vez que se trata de um crime. São situações em que, raramente, as comissões podem intervir porque os pais não dão consentimento. Acresce que, por razões culturais, estas crianças são completamente isoladas e remetidas ao silêncio. É muito difícil que peçam ajuda porque sabem que as retaliações a que ficam sujeitas podem ser muito complicadas.

Quantas crianças/jovens com menos de 18 anos, e para que efeitos, obtiveram a “emancipação” em Portugal?

A Comissão não dispõe desses dados. O que sabemos é que todos os casamentos precoces conduzem à emancipação, do ponto de vista jurídico.

Que papel desempenha a prevenção na missão das CPCJ e da Comissão Nacional?

A CNPDPCJ e as CPCJ têm uma dupla função: preventiva e protetiva. Ao mesmo tempo que trabalham no dia-a-dia para dar resposta e resolver as situações que surgem a cada momento, tanto as CPCJ como a Comissão Nacional canalizam muito do seu trabalho e do seu esforço na prevenção. E nem pode ser de outra forma, porque esse é o caminho que todos temos que continuar a construir. Sem essa aposta na prevenção, dificilmente baixamos o número de casos problemáticos que envolvem as nossas crianças e os nossos jovens.

Em 2016, o número de crianças sinalizadas como estando em perigo e que foram acompanhadas nas 309 comissões em todo o país baixou, pela primeira vez, desde 2011. A que se deve esta inversão?

Não se trata propriamente de uma inversão. O que se passa é que as entidades com competência em matéria de infância e juventude cada vez fazem uma intervenção mais atenta e rigorosa, evitando assim que muitas situações cheguem às comissões. Isto também significa que a comunidade está mais sensibilizada para estas questões e a evoluir num sentido mais protetor das nossas crianças. E isso não será alheio ao esforço que tem sido feito nos últimos anos, no sentido de insistirmos na chamada de atenção para a importância da promoção e proteção dos direitos dos mais novos.

Nesses casos (Mutilação Genital Feminina ) em que, raramente, as comissões podem intervir porque os pais não dão consentimento. Acresce que, por razões culturais, estas crianças são completamente isoladas e remetidas ao silêncio. É muito difícil que peçam ajuda porque sabem que as retaliações a que ficam sujeitas podem ser muito complicadas.”

No entanto, apesar de o nr de crianças sinalizadas ter diminuído, continuou acima dos 70 mil (cerca de 71.016), o que não deixa de ser preocupante. Como é que analisa as tendências de evolução relativas às situações de perigo das crianças e jovens em Portugal, diagnosticadas e sinalizadas pelas CPCJ?

É de facto um número preocupante, mas acredito e creio que estes valores tendam a baixar, pelas razões de que já falei anteriormente. E o maior esforço da Comissão Nacional é no sentido de que esses números vão baixando cada vez mais. Sabemos que não é fácil e, por isso mesmo, estamos a apostar muito na formação parental e a promover projetos de prevenção junto das Comissões.

As principais situações de perigo sinalizadas pelas CPCJ são transversais a todo o tipo de famílias, de todos os extratos socioeconómicos e culturais, ou existem perfis-tipo de famílias em que as crianças estejam mais expostas a situações de perigo específicas?

São transversais, como diz. Mas, de facto, a imagem que a opinião pública tem sobre este tema é que as comissões atuam quase exclusivamente junto de famílias mais desprotegidas socioeconomicamente. O que acontece é que, do sistema privado (escolas, hospitais, condomínios fechados) chegam poucas sinalizações. No entanto, quando há o conhecimento de algum caso, acaba por se abrir uma espécie de “caixa de pandora”.

Qual é a caracterização social das crianças acompanhadas pelas CPCJ e também dos respetivos agregados familiares?

Reforço que os maus tratos são transversais às classes sociais. Da informação que possuímos as famílias acompanhadas pelas CPCJ são essencialmente oriundas das classes média e baixa, sendo que, como sabemos o conceito de classe média é muito amplo.

Todos os relatórios anuais de avaliação da atividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) mostram que o problema que continua a afetar mais as crianças e jovens é a exposição à violência doméstica. A que atribui este comportamento dos pais, das famílias?

A sensibilização que tem vindo a ser feita para proteger e defender as crianças e jovens de qualquer tipo de maus tratos é hoje muito maior. Isto faz com que também se tenha mais conhecimento e noção da realidade existente dentro das famílias.

O governo estava a preparar no ano passado uma proposta no sentido de as crianças em risco, em vez de irem para uma instituição, fossem acolhidas temporariamente por uma família enquanto a situação da família de origem não estivesse resolvida, e, em troca, atribuía um subsídio a essas famílias. Como é que está este processo?

A resposta de acolhimento familiar carece de regulamentação e criação de estruturas que permitam a formação e o acompanhamento destas famílias que acolhem temporariamente crianças e jovens em perigo.

Colocar as crianças numa família que só as recebe em casa mediante pagamento não é, por si só, também um risco? Nada garante que não sejam negligenciadas, quanto mais não seja, pela falta de afeto.

Os estudos conhecidos apontam num sentido muito claro: os benefícios para as crianças e jovens que são colocados em famílias de acolhimento são muito superiores, se comparados com uma instituição. Mas obviamente que não se pode falar de forma simplista sobre estes temas: cada caso tem que ser muito bem analisado, estudado e, acima de tudo, acompanhado. Ou seja, uma vez acolhida uma criança numa família, é preciso criar mecanismos de monitorização.

As CPCJ não “retiram” as crianças às famílias, tentam encontrar uma solução para a vida das crianças quando todas as outras respostas falharam. O mito em torno dessa atuação das CPCJ pode ter como consequência que, alguém que tenha conhecimento de abusos ou maus-tratos, não comunique o caso, por temer essa alegada “retirada”.

O desempenho das CPCJ tem sido criticado ao longo dos anos, ou por falta ou por excesso de zelo, nomeadamente na retirada de crianças às famílias biológicas. Como é que pretende melhorar o desempenho das CPCJ, neste e noutros campos de atuação? Já terá certamente definido algumas linhas orientadoras…

Ainda bem que formula assim a pergunta, e não me leve a mal, mas tenho que fazer uma correção: as CPCJ não “retiram” as crianças às famílias, tentam encontrar uma solução para a vida das crianças quando todas as outras respostas falharam. O mito em torno dessa atuação das CPCJ pode ter como consequência que, alguém que tenha conhecimento de abusos ou maus tratos, não comunique o caso, por temer essa alegada “retirada”. As CPCJ são órgão não judiciários. A decisão de separar as crianças dos pais é sempre uma decisão dos tribunais. Gostava que isto ficasse claro e que fossemos conseguindo desconstruir este mito. Quanto à segunda parte da sua pergunta: claro que é sempre possível melhorar. E estamos a fazê-lo, apostando muito na formação. Os técnicos da Comissão Nacional estão a fazer esse trabalho com as CPCJ e esse reforço na formação está no centro das nossas preocupações e faz parte das tais linhas orientadoras.

De que maneira se pode alargar e tornar mais eficaz a intervenção preventiva, melhorar e qualificar a intervenção de proteção em prol da restauração dos direitos da criança?

De algum modo já respondi, mas o que é importante termos presente é que estamos numa área em que nunca estará tudo feito. E a causa dos direitos da criança, sendo a missão da Comissão Nacional e das CPCJ, não pode deixar de ser uma causa nacional, que a todos diz respeito, tanto a nível da sociedade civil como a nível do poder político.

Que balanço faz dos projetos MPMTI (Mês de Prevenção dos Maus-Tratos na Infância) e PTP (Projeto Tecer a Prevenção)? Que lições se devem retirar da sua implementação?

Como sabe, estou na presidência da Comissão Nacional há poucos meses, mas há já um histórico muito interessante e rico dos últimos anos no que tem que ver com a campanha do Mês da Prevenção. Neste ano em particular, o lema que adotámos foi “Cuidar e Proteger Ajuda-nos a Crescer”. E devo dizer que foi um mês extraordinário, com um trabalho fantástico da grande maioria das CPCJ, de norte a sul, Açores e Madeira, envolvendo milhares de crianças em iniciativas muito criativas e diversificadas. Tendo por símbolo um laço azul, a campanha terminou com a formação de dezenas de laços azuis humanos em todo o país, no dia 27 de abril. O Projeto Tecer a Prevenção, sendo um projeto comunitário que envolve todas as Comissões Alargadas das CPCJ, dado o seu sucesso, vai ter uma nova fase, através de fundos europeus para poder potenciar e continuar a criar compromissos locais de promoção e proteção de crianças e jovens.

Considera positiva e eficiente a articulação entre as CPCJ, o Ministério Público e os Tribunais e, também, a colaboração com as ECMIJ (Entidades com competência em matéria de infância e juventude) ou existem falhas? Quais?

As relações institucionais são muito boas. Claro que tratando-se de instituições constituídas por pessoas, a sua eficácia e articulação é melhor ou pior consoante os recursos humanos envolvidos. Há um caminho que pode ainda ser melhorado e tenho sentido que é um desejo comum a todos os envolvidos.

 

Os quatro maiores perigos

As principais situações de perigo sinalizadas em 2016 às CPCJ foram as mesmas que no ano de 2015 e mantiveram a mesma ordem de sinalização:

1) Exposição a Comportamentos que Possam Comprometer o Bem-Estar e o Desenvolvimento da Criança (ECPCBEDC), com 12 851 sinalizações (32,8% do total);

2) Negligência, com 7654 sinalizações (19,5%);

3) Situações de Perigo em que esteja em causa o Direito à Educação (SPDE) tiveram 6235 sinalizações (15,9%);

4) Criança/Jovem Assume Comportamentos que Afetam o seu Bem-Estar e Desenvolvimento (CJACABED), resultou em 5939 sinalizações (15,2%).

No âmbito dos maus-tratos à criança, os dados foram os seguintes:

1) Os maus-tratos físicos: 1887 sinalizações (4,8% do total);

2) Os maus-tratos psicológicos: 832 sinalizações (2,1%);

3) O abuso sexual: 658 sinalizações (1,7%).

 
Quem é Rosário Farmhouse?

rosario farmhouse 220x220Nasceu em Lisboa, em 1968. É licenciada em Antropologia (especialização em Antropologia Social) pela Universidade Lisboa (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas). Entre 1996 e fevereiro de 2008 trabalhou no Serviço Jesuíta aos Refugiados de Portugal, tendo assumido as funções de Diretora desse serviço entre janeiro de 2003 e fevereiro de 2008. A sua experiência nesta vertente justificou a publicação do livro “Começar de Novo – passo a passo com refugiados e deslocados” em Junho 2002. De 8 de fevereiro de 2008 a 30 de junho de 2014 foi Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural. De setembro de 2014 a novembro de 2017 foi responsável pelo Gabinete de Formação Humana do Colégio S. João de Brito, em Lisboa. Tomou posse como Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens em novembro de 2017. O seu trabalho tem vindo a ser reconhecido publicamente com vários prémios e condecorações, quer a nível nacional, quer internacional.