. Joana Torres - “as desigualdades são alimentadas por desequilíbrios de poder"

Joana Torres Entrevista a Joana Torres

. P&D Factor: Educação Sexual Compreensiva (ESC), em que consiste e qual o papel que desempenha?

Joana Torres: O conceito de Educação Sexual Compreensiva (ESC) compreende uma abordagem multidimensional (física, psicológica, emocional, social, relacional...) da sexualidade, que engloba as questões reprodutivas, comportamentos sexuais, riscos e prevenção de IST’s, as questões do prazer, da identidade de género e de orientação sexual, entre outras. E, portanto, oferece uma leitura da sexualidade holística, que compreende o desenvolvimento do ser humano a nível físico e emocional ao longo do seu ciclo de vida. A meu ver, esta perspetiva é especialmente competente na sua abordagem por todos os aspetos já mencionados, mas também por contemplar as relações interpessoais e trabalhar a importância das outras pessoas no nosso próprio processo, assim como a responsabilidade afetiva que detemos sobre estas, abordar a definição de limites, a empatia, o amor e as diferentes relações que as pessoas podem escolher ter.

Não podemos continuar a investir numa educação sexual redutora, conservadora e de raiz opressora, que se foca em questões essencialmente de desenvolvimento físico, de reprodução e de IST’s. Temos de adotar estratégias interseccionais, sensíveis as questões de género e que abracem todos os eixos que medeiam as nossas vidas, como é o caso dos fatores sociais, económicos, culturais ou outros que podem agir sobre a expressão e vivência da sexualidade, gerando vulnerabilidade, desigualdades de género e de poder. Além disso, esta será a forma que, a meu ver, nos aproximara de diferentes realidades e que se mostra mais aberta a incluir diferentes realidades na construção dos conhecimentos sobre a sexualidade.

. P&D Factor: O que é ser feminista?

Joana Torres: Bem, confesso que estou numa fase de alguma reflexão sobre o meu posicionamento enquanto feminista, então não me sinto confortável nos dias que correm em apresentar prontamente uma conceção do que é para mim ser feminista, principalmente porque não gosto de clichés e o movimento merece muito mais do que isso, pelo menos aos meus olhos. E por isso, talvez uma das primeiras coisas que me ocorrem dizer é exatamente que para mim ser feminista é estar num processo de desconstrução e construção constantes. Costumo dizer que, como todos/as nós nascemos e crescemos no planeta Terra, temos tanto do sistema patriarcal em nós que é extremamente desafiante desmontá-lo, logo ser feminista não é ser perfeita, nem é agir sempre da forma mais justa socialmente. Ser feminista é tentar, com honestidade e humildade, ter esta consciência da nossa bagagem, dos nossos privilégios e ter vontade de fazer um processo de desconstrução, de questionamento, de exposição a diferentes realidades e de escuta. E no final, depois de tudo isto, aceitar que ainda pouco saberemos das vidas de outras mulheres, e que na verdade nunca saberei a verdadeira realidade delas, por mais empática que seja. Contudo, não posso também deixar de dizer que para mim o feminismo é também companheirismo, solidariedade, empatia é uma relação de apoio entre mulheres, da muito falada sororidade, mesmo para com as mulheres que apresentam crenças e atitudes misóginas. E este último aspeto que referi vejo com alguma preocupação nos últimos tempos, principalmente porque há uma tentativa social de resistência patriarcal, reacionária às conquistas feitas pelos movimentos feministas e a emancipação da mulher, que parece tentar a todo o custo destacar e instrumentalizar todos os episódios de misoginia protagonizado por mulheres, exatamente para minar o nosso caminho emancipatório. Por outro lado, temo-nos também defrontado com uma linha que defende que os homens também podem ser feministas e que eu penso que não trouxe tantos benefícios ao movimento quanto eu mesma cheguei a acreditar que fosse possível. Nos dias de hoje considero que os homens são importantes no processo, mas o que sinto é também que na hora da verdade, a balança pende sempre para os privilégios e o poder tornando-os, em última instância, um entrave à emancipação. Neste sentido, penso que os homens devem ser sim apoiantes, mas que há uma questão de lugar de fala que tem de ser respeitado e tenho a certeza que os homens que genuinamente querem lutar por um mundo mais justo não terão qualquer resistência a assumir esse lugar, o de apoiantes. Paralelamente a isto, posso ainda mencionar que, apesar de tudo, há para mim pressupostos basilares nos feminismos e sobre os quais não vejo possibilidade de levantar questões, como é o facto de se tratar de um movimento de luta pelos direitos humanos e uma questão de justiça social, que carece de um trabalho individual e coletivo em torno da consciencialização dos privilégios e das estruturas de poder que nos controlam, oprimem e subjugam.

. P&D Factor: De que falamos quando falamos de Igualdade em Portugal?

Joana Torres: Falar de igualdade em Portugal ainda é falar de brandos costumes. Obviamente que fizemos muitos avanços, fomos muito recetivos ao grande projeto que se constitui a ratificação da Convenção de Istambul, temos instrumentos políticos muito interessantes, um ordenamento jurídico igualmente competente, mas falta tudo o resto. Falta, sem dúvida, abandonarmos a nossa tendência social do fatalismo, do conformismo, do desenrasque... E falta essencialmente assumirmos desde um nível individual até a um nível macro sistémico que somos machistas em desconstrução, racistas em desconstrução, homofóbicos em desconstrução... Porque é somente quando assumirmos todo esse trabalho de desconstrução, de questionamento da estrutura e das nossas próprias raízes de crenças e atitudes, que caminharemos para o passo seguinte, que é o de construir um caminho sólido para a justiça social. O que sinto muito é que neste momento assumimos politicamente e mesmo socialmente valores que não temos introjetados. E, portanto, sinto que em Portugal apesar de se falar muito de igualdade de género e mesmo de interseccionalidade, ainda estamos na corrida por atingir a compreensão alargada do que é a igualdade de género e preocupa-me o tempo que demorarei a dizer que estamos no caminho de compreendermos o que será a interseccionalidade.

. P&D Factor: Tem experiência de voluntariado internacional, como começou e o que traz consigo no regresso?

Joana Torres: Comecei a ter contacto com a comunidade PALOP quando fiz a minha tese de mestrado, onde acabei por focar nas violências e representações sociais de género entre jovens imigrantes cabo-verdianos/as. Quando terminei a tese fui para Cabo Verde porque queria ver tudo o que me falaram, sentir tudo o que me tinham descrito, ouvir as pessoas.... Integrei um projeto e trabalhei nas questões da sexualidade, de um ponto de vista compreensivo, num centro de saúde e numa maternidade. Entretanto queria sair do registo de voluntariado numa lógica de experiência e fazer trabalho mais estrutural, contínuo e organizado e apresentei uma proposta de intervenção a uma ONGD, a HumanitAVE para trabalhar a violência contra mulheres na Guiné-Bissau. Desde então houve já uma primeira fase de estudo, onde fiz um levantamento de necessidades e recursos, assim como um trabalho de auscultação de grupos de mulheres sobre as questões das violências de género e de diferentes profissionais envolvidos nestas temáticas (e.g., professores/as; agentes de saúde comunitária; parteiras e outros profissionais de saúde; policias...). E seguimos com ações de capacitação de profissionais e de grupos de jovens para as questões dos direitos humanos, das violências de género e das práticas nefastas, sempre em equipas que tenham mulheres guineenses e que assegurem o trabalho sobre as práticas nefastas em primeira linha. As comunidades já reconhecem o trabalho que está a ser feito, procuram-nos.... Sendo mulher e branca consigo reunir com todos os chefes de tabancas e há abertura para esse trabalho conjunto, apesar de todas as resistências que sabemos que existem, principalmente nas questões com as quais trabalho. E isto é muito positivo e enche-me de alegria porque há um respeito mútuo e um processo de confiança que foi sendo construído, ainda que obviamente eu saiba que há toda uma base de privilégio a mediar a situação. Eu tento que o trabalho que tenho realizado passe por pôr os meus privilégios ao serviço de pessoas, especialmente de mulheres que de outra forma muitas vezes não teriam voz, enquanto tento que este trabalho seja acompanhado por medidas de empoderamento. Há uma lógica de mapear, conhecer e ouvir as pessoas, para depois juntá-las e envolvê-las na definição de necessidades e caminhos a trilhar, apoiando de alguma forma o seu projeto de empoderamento. Assim sendo, o que acabo por trazer de lá é sempre uma dívida para com as pessoas que confiaram em mim e que partilharam comigo as suas vulnerabilidades, as suas histórias... Por isso, sendo académica, tento de alguma forma fazer algum advocacy informado e validado pelas pessoas que participam do processo, sendo minha pretensão num futuro breve trabalhar com os/as colegas académicos/as deste país para que não tenha que ser eu a publicar a partir de uma Universidade portuguesa, mas que sejam eles/as a construir e trazer a conhecimento a sua própria realidade, e eu ficarei muito feliz se me continuarem a querer como colaboradora. A um nível mais pessoal acho que recebi já muito mais do que o que dei, sou muito mais ponderada no meu trabalho e nas minhas leituras do mundo, permito-me tecer mais ponderações sobre as prioridades na minha vida, sobre os meus privilégios.

. P&D Factor:  Quem e que assuntos não podemos deixar para trás quando se fala de Saúde, Igualdade, Educação e Desenvolvimento?

Joana Torres: Lembro-me imediatamente de empoderamento. Em todas estas dimensões sinto que o empoderamento está a ser deixado de parte e na minha opinião deveria ser um eixo estrutural do trabalho a ser desenvolvido. Para que consigamos quebrar ciclos de desigualdades e violência, mostra-se crucial empoderar mulheres e raparigas, agindo preventivamente. Caminhar para um desenvolvimento sustentável, como aliás advoga a agenda 2030, implica necessariamente atuar ao nível da saúde, igualdade, educação, entre outras dimensões, numa lógica empoderadora, articulada, inclusiva e efetivamente comprometida por parte dos Estados, da sociedade civil e do próprio setor privado e da sua responsabilidade social. E a verdade é que não se pode falar de saúde, desenvolvimento ou educação sem que exista também justiça no acesso a estes eixos. E este é outro aspeto bastante desafiador que temos de enfrentar com seriedade porque, se quisermos ser honestos, facilmente verificamos que a justiça social não serve propósitos capitalistas sobre os quais sustentamos o mundo que conhecemos, então não podemos ter duas forças a agir em sentidos contrários sob pena de vermos sempre a evolução e o desenvolvimento a serem travados por questões de poder. Já sabemos que as desigualdades são alimentadas por desequilíbrios de poder, mas temos estagnado os discursos nesta parte teórica e conceptual, exatamente porque a sua operacionalização exige compromissos de diluição de posições dominadoras a vários níveis e de perda de privilégios.

. P&D Factor: A Alta Comissária das Nações Unidas para os direitos humanos afirmou que a alteração da lei do aborto nos Estados Unidas corresponde a um retrocesso de 50 anos nos Direitos das Mulheres e que terá impacto no resto do mundo. Concorda? O que tem a dizer sobre o assunto?

Joana Torres: Este é um assunto que me tem inquietado especialmente, exatamente porque me parece que estamos na iminência de materializações do conservadorismo que já se vem a anunciar nos Estados Unidos e, também contando aqui com algum efeito cascata, em outras partes do mundo. Na verdade, se quisermos ser rigorosos estamos a falar de um assunto que nunca deixou de ser um ataque à vida das mulheres em muitas partes do mundo. O acesso a cuidados de saúde sexuais e reprodutivos ainda está longe de ser algo estável e igualitário, muito pelo contrário, mas esta situação ao passar-se nos Estados Unidos, ganhou espaço na comunicação social e tornou-se tema de discussão entre a opinião pública. Contudo, este é um tema que mesmo dizendo respeito às mulheres, porque em última instância estamos a falar sobre as suas próprias vidas, evidencia a ideia enraiada de que há o direito a decidir sobre os nossos corpos e apercebermo-nos desta realidade e extremamente cruel porque a mensagem que passa é de que o corpo com o qual eu nasci e que eu considero casa, afinal não é casa, não é meu; a minha materialização não é minha. Além desta questão dos Estados Unidos, em Portugal também tivemos recentemente a questão dos indicadores de saúde, que penalizavam profissionais de saúde cujas utentes recorressem a prática da interrupção voluntária da gravidez e que me parece que foi desvalorizada logo depois de um pedido de desculpa emitido pela DGS, mas que não vejo suficiente para a questão que levantou, a meu ver de forma mais evidente, e que se trata da falta de transversalização política que esta situação demonstrou. Em Portugal temos a Estratégia Nacional para Igualdade e Não-Discriminação, que tem como um dos seus pilares o mainstreaming de género e que verte os pressupostos da Convenção de Istambul, que considera a resposta de saúde de extrema importância para o seu projeto de obtermos uma Europa livre de violência contra as mulheres. Ora, não será difícil de depreender que, com equipas de trabalho que apresentarem soluções julgadoras das opções das mulheres e que mostram desconhecimento da lente de género e das obrigações do Estado Português na formulação de política pública, o mainstreaming de género advogado pela estratégia está a falhar e as mulheres não estamos a caminhar para um sistema de respostas de cuidados de saúde mais esclarecido em relação às violências de género. Um pedido de desculpa nada me diz sobre a competência das pessoas que estão a pensar como construir política pública para me responder a mim, que sou mulher, e a tantas outras pessoas que se enquadram em minorias.

Quem é Joana Torres?

Joana TorresJoana Torres, jovem mulher, feminista, humanitária e ativista.
Licenciada em Criminologia e em Psicologia, mestre em Psicologia da Justiça e Pós-graduada em direitos humanos. Doutoranda em Criminologia, como um projeto de investigação intitulado: “Análise política e institucional da aplicação da Convenção de Istambul em Portugal: a violência de género na intimidade em foco”.
É docente na Licenciatura de Criminologia e facilitadora de processos de educação não formal no Conselho Nacional da Juventude. Ao longo do seu percurso académico e profissional trabalhou essencialmente sobre a área da Vitimologia, através de uma perspetiva feminista e interseccional.
Nos últimos anos esteve ligada ao associativismo e ao trabalho de intervenção humanitária, focado nas violências contra as mulheres.