Entrevista

. “Milhares de meninas não podem ir à escola por falta de água e casas de banho”

Catarina de AlbuquerqueSão direitos humanos, universais, consagrados, mas milhões de pessoas não têm acesso a eles. E as consequências são gravíssimas, sobretudo para as mulheres e raparigas. São elas que têm que ir buscar água ao poço ou ao rio que fica longe de casa, roubando-lhes tempo para trabalhar ou ir à escola. Catarina de Albuquerque , antiga relatora das Nações Unidas e atual diretora executiva da pareceria Saneamento e Água Para Todos, da ONU, conhece bem esta realidade e assegura que o problema existe, não por escassez de recursos, mas por falta de sensibilidade política para um tema “pouco sexy”.

Entrevista: Carla Amaro

Está a decorrer em Paris a Cimeira do Clima para acordar medidas que minimizem os efeitos das alterações climáticas, que têm como principais vítimas as mulheres e as crianças. Por que razão estes grupos são os mais vulneráveis?

Antes de mais, porque as vítimas da falta de acesso às políticas de desenvolvimento são sempre as pessoas mais excluídas e vulneráveis, e as mulheres e as crianças estão na linha da frente, porque, se em situações de ‘normalidade’ são elas as mais desfavorecidas, é óbvio que em situações de crise (de catástrofes naturais, por exemplo), são elas as mais afetadas e as menos preparadas para fazerem face aos extremos provocados pelas alterações climáticas, que se traduzem em períodos de seca cada mais prolongados alternados com períodos de chuva muito intensa. É importante que se consiga protege-las nas alturas de ‘normalidade’ para melhor resistirem às crises.

Mas como, se são as mulheres e as raparigas que, em muitas culturas, são responsáveis por abastecer a casa de água, tendo que se deslocar quilómetros para a ir buscar? E também são elas que trabalham a terra e sem água para regar…

É verdade. Em 70% dos casos são as mulheres e as raparigas que são responsáveis por essa tarefa quando não têm uma torneira com água em casa. Vão buscar a água a fontes, a poços e a rios. E as dificuldades tendem a agravar-se porque, por causa das alterações climáticas e dos períodos de seca, elas vão ter que percorrer cada vez mais quilómetros a pé. Simplesmente porque é muito provável que o poço ou o rio que estava perto de casa secaram e têm que se deslocar a outra fonte de água mais longínqua.

Por que é que assumiu o direito à água e ao saneamento como causas?

Não os acho nem mais, nem menos importantes do que outros direitos, como o direito à educação, à proteção contra a tortura, à liberdade de expressão. Acho que todos os direitos humanos são interdependentes, estão interrelacionados e devem ser tratados em pé de igualdade. Se só focarmos a nossa atenção num direito não dá bom resultado, porque os direitos estão todos interligados. No entanto, penso que o acesso à água e ao saneamento é muitas vezes a pré condição para a realização de outros direitos, como à saúde, à educação, à igualdade entre mulheres e homens, à habitação e ao trabalho. De certa forma, é um passaporte para uma série de outros direitos.

Como assim?

Um exemplo muito simples, já aqui falado. Se uma mulher gasta uma percentagem muito significativa do seu tempo a ir buscar água, não pode ir trabalhar, não pode participar na vida pública do seu país. E as filhas, não podendo ir para a escola porque também têm esse encargo, não terão um futuro muito brilhante. Portanto, se tivessem acesso à água, a mãe poderia ter acesso ao trabalho e as filhas à educação. Por isso digo que o direito à água é um passaporte para outros direitos, sendo que todos, sublinho, estão relacionados e nenhum é mais importante que outro.

Como é que aconteceu ser relatora especial da ONU do direito à água e ao saneamento?

Comecei por trabalhar na área dos direitos da criança, depois na área dos direitos económicos, sociais e culturais e presidi, nas Nações Unidas, às negociações de um tratado, que está em vigor, que permite às pessoas apresentar queixas junto da ONU contra os seus países em caso de violação dos direitos económicos, sociais e culturais. Tinha um grande interesse por esta área. A dada altura, o embaixador belga desafiou-me a candidatar-me ao lugar de relatora especial. Também os embaixadores da Alemanha e de Espanha perguntaram-se se eu podia ser candidata apoiada pelos seus governos na corrida ao mandato de relatora especial do direito à água e ao saneamento. A ideia pareceu-me interessante. Fui relatora de 2008 a 2014.

O que é que faz um relator?

Estuda e escreve relatórios sobre o tema, faz recomendações aos pares, sugere aos países medidas para melhorar as situações relatadas, recebe queixas de pessoas e atua em conformidade. Digamos que um relator é uma voz para um determinado direito. No meu caso, o direito à água e saneamento.

Quantas pessoas no mundo não têm, atualmente, acesso a água potável? Quantas pessoas não têm água para beber e cozinhar?

Não se sabe quantas pessoas não têm água potável em casa, porque esse dado não está a ser medido a nível global. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), apesar de referirem o acesso à água potável como meta – aliás, está no título da respetiva meta -, os indicadores que foram desenvolvidos não medem a qualidade, o que medem é o acesso a uma fonte de água melhorada – quer dizer, as pessoas usam a água mas não podem bebê-la. Refiro como exemplo o Egipto, onde as pessoas abrem as torneiras em casa para proceder á higiene doméstica, mas não podem beber aquela água. No entanto, aquela água contou para que o Egipto se tornasse uma espécie de herói dos ODM.

Mas há estimativas?

Sim, há. Estima-se que entre dois mil milhões e três mil milhões de pessoas não têm acesso a água potável. Mas, permita-me a repetição, não há estudos, não há dados muito fidedignos.

E quantas não têm saneamento? Quantas não podem fazer a sua higiene pessoal e doméstica? Quantas têm de fazer as suas necessidades a céu aberto?

À volta de mil milhões de pessoas. Isto, se considerarmos aquelas que fazem lias suas necessidades a céu aberto, literalmente, quer dizer, baixam as calças ou levantam a saia e fazem a um canto. Mas, se olharmos para o saneamento de um modo mais abrangente, esse número sobre para três mil milhões de pessoas.

Porquê?

Porque, apesar de, em muitas situações, as pessoas até terem uma latrina onde fazem as suas necessidades, quando chove muito em certas zonas do Planeta, fica tudo inundado. Resultado: os dejetos humanos acabam por circular no ambiente, a céu aberto. Portanto, na prática, em termos de saúde pública, os efeitos são os mesmos da defecação ao ar livre.

Ao contrário do que se imagina, essas situações não acontecem só nos chamados países em desenvolvimento, pois não?

Não, nem pensar. Aliás, não conheço nenhum país do mundo, desenvolvido ou em desenvolvimento, em que toda a gente tenha acesso a água e a saneamento. Quer exemplos em Portugal? Os sem-abrigo, a comunidade cigana e as pessoas que não têm dinheiro para pagar a conta da água. Nos Estados Unidos da América, concretamente no estado da Califórnia, há milhões de pessoas sem acesso a água potável, como os homeless, as minorias étnicas, os migrantes, etc., são milhões de pessoas em países ditos desenvolvidos e ditos ricos e que têm os meios económicos necessários para tornar a água acessível a toda a gente.

E não tornam porquê?

Porque as pessoas a quem falta água e saneamento são que praticamente não têm voz e, por isso, são irrelevantes ou invisíveis para os detentores do poder político.

Acha que a maioria dessas pessoas desconhece que a água e o saneamento são direitos humanos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2010?

O acesso à água e ao saneamento já eram reconhecidos e consagrados como direitos humanos em alguns tratados antes de 2010, por exemplo na Convenção sobre os Direitos da Criança, na Convenção para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres, na Convenção para os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas, sim, é verdade que o primeiro reconhecimento tão explícito e de uma maneira tão genérica foi em Junho de 2010. A resposta à pergunta é não, as pessoas não fazem ideia que se trata de um direito humano. Na Califórnia, onde falei com emigrantes mexicanas que tinham que gastar 15% do orçamento familiar para a conta da água, ficaram muito espantadas quando lhes disse que é um direito. Aliás, uma parte do problema tem precisamente a ver com isso, com a falta de informação. Nas escolas, as crianças deviam ter informação na área dos direitos humanos. Não quer dizer que têm direito a um T20 com vista para o mar nem a água para encher a piscina, estamos a falar de um conteúdo mínimo de água a que toda a gente deve ter direito.

Qual é o mínimo diário?

É o suficiente para beber, cozinhar e fazer a higiene pessoal e doméstica. É muito difícil contabilizar em litros a necessidade diária de água, porque depende dos hábitos de cada um. Num país muçulmano, em que a pessoa tem que se lavar antes de cada oração, se calhar o consumo de água é maior do que na Finlândia, por exemplo, em que está menos calor. Depende do clima, dos hábitos culturais, e naturalmente do género, porque uma rapariga que está menstruada necessita de mais água para a sua higiene pessoal do que um rapaz.

Visitou quinze países durante o tempo em que foi relatora especial das Nações Unidas, de 2008 a 2014. Viu realidades muito diferentes. Onde é que encontrou as situações mais graves?

Eu não gosto de dizer “mais graves”, porque se considerarmos os casos individualmente, um sem-abrigo na Califórnia ou uma pessoa que vive num bairro da lata no Bangladesh consideram as suas situações tão graves como a de uma mãe, que eu conheci em Detroit, nos EUA, a quem quase tiraram os filhos por não ter água em casa. Portanto, cada um sente e vive a sua ‘crise’ com dor.

“Estive numa ilha do pacífico e achei escandalosos os preços dos pensos higiénicos. Perguntei a uma mãe com poucos recursos financeiros como é que ela fazia e ela respondeu “ou gasto dinheiro no autocarro da escola ou gasto em pensos higiénicos.”

Quer contar uma ou outra história a que tenha assistido?

São, infelizmente, imensas. Por exemplo, raparigas que deixam de ir à escola porque estão com o período, porque as casas de banho na escola não estão separadas (para rapazes e para raparigas), porque não têm forma de se limparem e de se lavarem na escola; e os pais não têm dinheiro para lhes comprar pensos higiénicos. Portanto, durante uma semana por mês, essas meninas, ficam em casa. Isto, as que moram longe da escola. As que moram perto, vão a casa, mudam-se e voltam para a escola. Outras situações, de que já falamos: mulheres e crianças que todos os dias percorrem quilómetros para ir buscar água e que por causa disso não trabalham, no caso das mulheres, e não vão à escola, no caso das raparigas. Jovens que são violadas quando se afastam um pouco das suas aldeias para ir fazer as suas necessidades com alguma privacidade.

Em que países é que isso acontece?

Em África e na Ásia, quer em zonas rurais, quer urbanas. Estive numa ilha do pacífico e achei escandalosos os preços dos pensos higiénicos. Perguntei a uma mãe com poucos recursos financeiros como é que ela fazia e ela respondeu “ou gasto dinheiro no autocarro da escola ou gasto em pensos higiénicos”. E se compra os pensos, a miúda tem de ir a pé para a escola. E é claro que não vai, a escola fica longe, a miúda fica em casa.

Não acha que a cooperação devia também passar pela distribuição desses bens? Dá a sensação que não se liga muito a isso, mas um penso higiénico pode ser tão importante como um pacote de arroz ou um copo de água.

Sim, é verdade e a propósito vou contar-lhe uma história. Eu fui a um campo de refugiados sírios, na fronteira entre a Síria e a Jordânia, onde as mulheres e as raparigas tinham pensos higiénicos. Mas julgo que quem fez a encomenda dos pensos higiénicos deve ter sido um homem, porque os pensos que distribuíram às mulheres e às raparigas são muito fininhos, como aqueles que se usam na fase final do período. É óbvio que as miúdas quando estavam menstruadas não iam à escola, porque sujavam a roupa e tinham vergonha de os rapazes gozarem com elas. Acho que se deve trabalhar com os governos e todos os doadores no sentido de reconheceram a água e o saneamento, a higiene pessoal incluída, como direitos humanos.

Como é que a água potável e o saneamento básico podem ser acessíveis, ter qualidade e estar disponíveis para toda a gente, sem discriminação? Como é que isso se consegue?

Consegue-se com governos que deem prioridade política ao setor, com governos que percebam a importância de investir no saneamento e na água, com ministros das Finanças que estão sensibilizados para esta matéria e que percebem a importância de cada euro, de cada dólar investido em água e saneamento - por cada euro investido em água e saneamento, o retorno é no mínimo 5 euros, muitas vezes é de 20 ou 30 euros em termos de produtividade que é ganha. Como disse há pouco, se as raparigas puderem ir à escola e as mulheres puderem ir trabalhar, são ganhos de produtividade e é menos gente doente (em África, as camas hospitalares estão ocupadas com pessoas que sofrem de doenças contraídas devido à má qualidade da água e à falta de saneamento.

Não é então um problema de falta de água, é um problema de falta de vontade política, é isso?

É. Sabe, a água e o saneamento é um tema pouco sexy. Ninguém gosta de falar de cocó e de menstruação e de pensos higiénicos. Ficam todos corados e pouco à-vontade. Portanto, se há assuntos que são tabu na área do desenvolvimento global, são estes, e para mim é óbvio que essa é uma das razões da falta de investimento neste setor. E quando não se fala sobre o assunto, não se conhece o assunto.

Mas essa não é a função da parceria a que preside, a Sanitation and Water For All, da ONU?

É. Organizamos a cada dois anos reuniões com o secretário-geral da ONU, com o presidente do Banco Mundial, com os ministros das Finanças e com os ministros do sector, no mundo inteiro, para os sensibilizar para a importância de investir no setor.

E que resultados têm tido essas reuniões de alto nível?

Por exemplo, aumentos nos orçamentos nacionais dedicados à água e ao saneamento. Mas o dinheiro não é tudo, é preciso também investir bem, ter a coragem política para investir nas zonas dos países onde existem pessoas mais desfavorecidas, mais negligenciadas, mais vulneráveis, mais pobres. Porque são pessoas, como disse, ‘invisíveis’, sem voz, muitas vezes preteridas na tomada de decisões por parte dos governos.

Nota alguma evolução nesta matéria?

Evolução é para mim uma palavra difícil. Digamos que há melhorias pontuais aqui e ali, algumas mudanças importantes na política dos governos e na vida das comunidades. Por exemplo, na Eslovénia, com a população cigana; nos EUA, com os migrantes hispânicos; na Namíbia, com as crianças e as mulheres. São impactos diretos do trabalho que eu fiz.

Mas em termos globais, e se compararmos os ODS com os ODM, a diferença é notória.

Sim, é verdade, em termos de ambição que os países espelharam nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, há uma diferença enorme entre os ODM e os ODS. Os ODM satisfaziam-se com uma redução em 50% do número de pessoas sem acesso a água e saneamento, os ODS querem que todos tenham acesso. Em termos de ambição as coisas melhoraram imenso.

Quem é Catarina de Albuquerque?

catarina albuquerque

Entre 2008 e 2014, foi relatora especial das Nações Unidas para o direito à Água e Saneamento. Agora, preside à parceria da ONU Sanitation and Water for All. Apesar de licenciada em Direito, não foi nos tribunais que encontrou a vocação. Começou por abraçar a defesa dos direitos das crianças e, mais tarde, juntou a essa outra causa: fazer com que todos tenham acesso à água e ao saneamento. Missão que acumula com o trabalho na área dos direitos humanos no Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República.

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