Campanha “O direito a viver sem mutilação genital feminina” (MGF)
Texto e vídeo: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández
É uma violação dos direitos humanos, mas está presente em mais de 50 países de todos os continentes, com especial incidência no Egipto, Eritreia, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Somália e Guiné-Bissau. Apesar de na maioria dos países onde é praticada existirem leis que a criminalizam, a mutilação genital feminina (MGF) prevalece como uma prática corrente, escudada por falsos argumentos sustentados na identidade cultural e na religião. Falsos, porque é considerada uma tradição quando, na verdade, nas comunidades praticantes - maioritariamente islamizadas, mas também cristãs e animistas - os livros sagrados não a impõem. Há, aliás, registos de que a MGF é anterior ao próprio islamismo.
Um outro mito associado a esta prática que atenta contra o direito à liberdade, à igualdade, à saúde e à segurança pessoal das meninas e mulheres é o fato de a MGF ser vista como uma forma de preservar a virgindade, a pureza e a honra e de assegurar um bom casamento e uma boa aceitação social das Meninas e Mulheres. Ou seja, “uma mulher que não é submetida a essa prática não é pura, não é considerada limpa, é incompleta e, portanto, não pode casar e não pode participar de vários rituais da comunidade, sendo discriminada e votada ao isolamento”, esclareceu a presidente do Comité para o Abandono das Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança na Guiné-Bissau, Fatumata Djau Baldé, que com apenas nove anos de idade foi dada em casamento e submetida a um dos quatro tipos de MGF.
No entanto, se este atentado à dignidade das Meninas e Mulheres teima em sobreviver, é inegável também que o mundo começa a despertar e a tomar consciência para os efeitos negativos, muitas vezes fatais, na vida das Meninas e Mulheres vítimas de excisão. Disse Fatumata Djau Baldé que, além de “dores lancinantes”, a MGF provoca “hemorragias graves que se não forem travadas a tempo conduzem à morte”. Os riscos de infeção são enormes, “uma vez que a faca usada para fazer o corte é a mesma para várias Meninas e Mulheres e se uma pessoa está infetada com doenças, como o VIH/SIDA ou o tétano, poderá contaminar outras pessoas.” Os problemas não se ficam por aqui: “Se a menina mutilada for dada em casamento, pode engravidar e ficar sujeita a todos os perigos de uma gestação precoce.” O corpo de uma criança não está preparado para a gravidez e para o parto e, nessa altura, os problemas de saúde agravam-se: “Se o parto não for feito em condições adequadas, com assistência médica num centro hospitalar, pode causar fístula obstétrica”, alertou Fatumata.
É graças a campanhas contra a MGF como a que foi lançada ontem de manhã no aeroporto de Lisboa que se tem conseguido um despertar global para estes efeitos. Adotando o slogan O direito a viver sem Mutilação Genital Feminina, esta campanha prolonga-se até Setembro com cartazes e folhetos (português, francês e inglês) nos três aeroportos internacionais portugueses (Lisboa, Porto e Faro) e no da Guiné-Bissau, sobretudo nas saídas para a África Ocidental.
Não é tradição, não é cultura, é crime.
Promovida pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade e pela ONGD P&D Factor, em parceria com várias organizações portuguesas da sociedade civil, entidades oficiais e o CNAPTN da Guiné-Bissau, o objetivo desta iniciativa é repor a verdade sobre a MGF: não é tradição, não é cultura, é crime.
Mas a expansão desta mensagem exige “o envolvimento e o compromisso de todos, em especial das comunidades praticantes”, como sublinhou no arranque da campanha o ministro-Adjunto, Eduardo Cabrita. Salientando que a MGF “é uma prática residual em Portugal”, onde estão identificados cerca de 6.500 casos de Meninas e Mulheres com mais de 15 anos, de comunidades migrantes, Eduardo Cabrita reforçou a importância da adoção de leis que criminalizam a Mutilação Genital Feminina nos países onde existe, dando como exemplo a Guiné-Bissau: “Desde 2011 que a Guiné-Bissau tem legislação contra a MGF e os frutos já estão a ser colhidos”. Os “frutos” traduzem-se na redução, em 2015, de 55% para 44% de casos de MGF e na condenação de pessoas envolvidas na prática (neste momento, na Guiné- Bissau, doze pessoas estão a cumprir pena de prisão, entre as quais fanatecas - mulheres que fazem a excisão -, pais, mães e outros familiares de Meninas e Mulheres que foram submetidas à excisão).
Também a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade lembrou a importância das leis que ilegalizam a MGF e promovem o seu abandono, mas, admitindo que “por si só não bastam para mudar comportamentos e mentalidades”, Catarina Marcelino realçou o papel fundamental de iniciativas como esta no aeroporto de Lisboa: “Espero que a campanha tenha efeito junto das pessoas que viajam para os países onde existe MGF, mas gostaria também que toda a gente ficasse sensibilizada para um flagelo que afeta 200 milhões de Meninas e Mulheres no mundo. Esta é uma causa que temos todos que abraçar.”.
Abraçar, não apenas falar. A defesa dos direitos “exige mais do que discursos”, defendeu a diretora executiva da P&D Factor, Alice Frade, que em Portugal foi das primeiras pessoas a “agarrar” a causa para o fim da MGF. “É insuficiente falar em defesa dos direitos humanos, precisamos de promover uma cultura de apropriação e de exercício dos direitos fundamentais. É necessário trabalhar fortemente com as lideranças políticas, comunitárias e religiosas e com as novas gerações, para que promovam a construção de boas memórias individuais e coletivas e sejam também mobilizadoras e inspiradoras de novas tradições.”.
Alargar a todos os países o abandono e condenação da prática, o reconhecimento dos direitos das Meninas e Mulheres é um dos ideais preconizados na campanha O direito a viver sem Mutilação Genital Feminina, mas, se conseguir ‘tocar’ bem lá no fundo as comunidades praticantes, será dado um passo de gigante na luta global contra a Mutilação Genital Feminina. Porque mais eficaz do que a legislação é fazer com que a MGF seja rejeitada pelas pessoas.
Veja o vídeo do lançamento da campanha aqui.