Entrevista

. “A intervenção preventiva passa pela Educação para a Saúde”

João GoulãoReforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas e o uso nocivo do álcool é umas das metas do Objetivo 3 dos ODS. Mas como é que Portugal a vai alcançar, depois de um paradigma proibicionista de que foi pioneiro, ao descriminalizar o uso de todas as substâncias ilícitas? João Goulão, diretor geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), diz que é altura de considerar a mudança para o paradigma da regulação, aplicada a todas as drogas. Com regras, como no tabaco e no álcool.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández

Quando se fala de substâncias ilícitas, fala-se de quê?

De um conjunto muito alargado de substâncias, sendo que nem todas elas têm uma grande expressão em Portugal. A mais consumida em Portugal é, de longe, a cannabis. Há uns anos, o consumo era muito marcado pela heroína, depois também ganhou uma expressão significativa a cocaína, o ecstasy e algumas anfetaminas, e, uns ‘furos abaixo’, um conjunto alargado de outras substâncias, algumas são bastante recentes e aparecem a um ritmo alucinante no mercado europeu, inclusive em Portugal.

Quais?

As chamadas substâncias psicóticas, uma infinidade delas, que pertencem basicamente três grandes grupos: o maior é o dos canabinóides sintéticos; o segundo, as catinonas; e o terceiro, as de tipo anfetamínico. Depois ainda há um grupo, onde se encontram, digamos, uma miscelânea de substâncias.

No passado recente, umas eram consideradas ‘pesadas’ e outras ‘leves’. Ainda se mantém essa distinção?

Não, é uma designação que abandonámos, porque faz muito pouco sentido, do ponto de vista científico, essa distinção. Estamos a falar de substâncias psicoativas, com características diferentes, provocam diferentes tipos de efeitos na perceção da realidade, têm um potencial aditivo diferente, mas não podemos estabelecer uma escala de ‘gravidade’. Aliás, a legislação portuguesa – e nisso somos também pioneiros -, descriminalizou o uso de todas essas substâncias, mas manteve a possibilidade de aplicar penalidades administrativas no quadro das contra ordenações. Com isso, fomos ao limite do paradigma proibicionista.

Acha que estamos, hoje, perante a emergência de um novo paradigma?

Sim, penso que temos de considerar a mudança para um paradigma regulador, que passa por conferir a estas substâncias, até agora consideradas ilícitas, um estatuto que podemos comparar ao do tabaco ou do álcool, em que o Estado interfere em todas as fases desses produtos, desde a produção até à distribuição, e arrecada as correspondentes taxas. Trata-se de um novo paradigma que não corresponde aquilo que está consagrado nas convenções vigentes nas Nações Unidas.

Ou seja, no tal paradigma proibicionista fomos até ao limite. Agora, aquilo que se discute é se essas convenções devem ou não ser revistas e adequadas a alguns movimentos no sentido da tal regulação.

Exatamente. Portugal deu uma ‘pedrada no charco’ no paradigma proibicionista ao descriminalizar o uso de todas as drogas – essa medida foi aprovada em 2000 e entrou em vigor em 2001 – e, por isso, fomos e continuamos a ser objeto de enorme curiosidade internacional. Constituímos um laboratório vivo, tivemos uma experiência social e, quinze anos depois, penso que podemos olhar para trás e dizer que essa experiência foi globalmente bem-sucedida.

E quais são os países que mais se debatem por esse novo paradigma regulador?

São os países mais fustigados pela violência entre gangues e entre ‘polícias e ladrões’, que resulta da atual proibição e clandestinidade com que todos os processos decorrem. Por exemplo alguns estados latino-americanos, muito marcados pela produção destas substâncias, nomeadamente a cocaína.

É favorável à despenalização do consumo de alguma droga?

Sou mais favorável à regulação, que, na prática, implica uma despenalização, mas com regras estabelecidas, que passam pela identificação de pontos de venda, pela definição de uma idade a partir da qual se pode consumir, etc. (tal como acontece com o tabaco e com o álcool).

E a pensar numa regulação, a que substâncias se aplicaria?

A todas. E mais uma vez rejeitaria a tal distinção entre drogas ‘leves’ e drogas ‘duras’.

Ao nível da produção e do consumo de substâncias ilícitas, que evolução houve ao longo dos anos, em Portugal?

Considerando o uso das substâncias psicoativas, o fenómeno de massas ocorreu depois do 25 de Abril. Foi uma coisa que veio com a liberdade, porque até aí não tínhamos acesso, fomos mantidos afastados de alguns fenómenos sociais; passámos mais ou menos ao lado do movimento hippie, tivemos apenas alguns ecos do movimento estudantil em França no final dos anos 60, porque a censura [do Estado Novo] manteve-nos um tanto arredados desses acontecimentos. Por outro lado, não éramos um destino muito sexy para sermos visitados por estrangeiros e aqui vivíamos tristemente isolados. Portanto, enquanto outros países se foram habituando à presença de drogas e foram aprendendo a conviver com elas, para nós foi uma aprendizagem forçada, porque foi uma coisa repentina, que se deu sobretudo a partir do fim da guerra colonial e da descolonização.

Com o regresso das pessoas que vieram das antigas colónias?

Exatamente. Nas colónias, o uso era tolerado ou mesmo incentivado para manter as pessoas com a cabeça cheia com alguma coisa. O whiskey era capaz de ser mais barato do que a água e a cannabis circulava sem problemas. O regresso dos soldados e dos colonos à metrópole, com os seus hábitos e quantidades apreciáveis de cannabis, deu origem a uma súbita acessibilidade e a um boom de experimentação num País completamente impreparado e desconhecedor desse produto.

E como é que da cannabis o consumo se estendeu a outras substâncias?

Porque algumas organizações criminosas de tráfico de droga aproveitaram-se do boom de experimentação e tentaram explorar um mercado emergente, introduzindo no País a cocaína, a heroína, e outras substâncias. Até então, o consumo estava confinado à cannabis e a alguns medicamentos em circuitos clandestinos. Cocaína e heroína não eram substâncias com uma grande expressão na nossa sociedade. Muito importante, do meu ponto de vista, foi que esta difusão súbita foi completamente transversal aos vários grupos sociais, não foi uma coisa que aconteceu apenas entre os mais marginalizados. De tal maneira que houve uma altura em que era difícil encontrar numa família portuguesa alguém que não tivesse problemas com drogas.

A situação era de tal maneira grave que, ainda nos anos 70, lançou-se a primeira e grande campanha contra o consumo, chamada “Droga, Loucura, Morte”.

Que, a meu ver, se não foi completamente ineficaz, foi contraproducente. Era uma campanha terrorista. O que aconteceu foi que noutros países, na curva de prevalência, a dos utilizadores problemáticos era muito mais curta do que a dos utilizadores que não manifestavam problemas, ou seja, havia um diferencial significativo entre o número total de utilizadores e aqueles que desenvolviam dependência. Em Portugal, este diferencial foi muito ténue, às tantas era quase como se toda a gente que experimentasse se transformaria num utilizador problemático dependente. Isto teve um impacto brutal na nossa sociedade. Temos estimativas dos anos 80, não muito rigorosas, que apontam para a existência de 100 mil utilizadores problemáticos de heroína (1% da população atual). Uma brutalidade.

Foi por causa disso que a abordagem deste tema passou da Justiça para a Saúde?

Sim, mas, antes disso, a transversalidade do consumo foi também muito importante para o desenvolvimento de um determinado sentimento ‘progressista’ na abordagem deste tema em Portugal. Julgo que teria sido muito diferente se estes problemas se tivessem confinado às margens e que o facto de termos um número significativo de utilizadores das classes média e alta, de termos mães a discutir com o padre a dizer “o meu não é um criminoso, é um doente que precisa de ajuda” é uma ideia que fez o seu caminho na sociedade portuguesa de uma forma facilitada relativamente às realidades vividas noutros países, em que o uso problemático estava muito confinado às margens. Ainda hoje vemos países como o Brasil, por exemplo, em que o uso problemático é muito conotado com a favelas e os movimentos de integração de pessoas com problemas relacionados com drogas esbarra no não desejo do resto da sociedade de integrar essas pessoas. Portanto, cá, o padrão de desenvolvimento repentino e transversal acabou por permitir uma janela de oportunidade para deslocar a centralidade da abordagem deste tema da Justiça para a Saúde, o que foi fundamental para o sucesso do desenvolvimento das nossas políticas. E a descriminalização, que veio a acontecer muito tempo depois, consagrou isso.

“Felizmente posso garantir que a toxicodependência está a diminuir, mas não é o mesmo que dizer que o consumo de drogas está a diminuir.”

Quais são hoje as tendências no consumo?

Segundo o relatório anual sobre "A situação do país em matéria de drogas e toxicodependências 2014", a cannabis, o ecstasy e a cocaína foram as substâncias ilícitas preferencialmente consumidas em Portugal entre os 15 e os 64 anos. Se avaliarmos as tendências nos últimos cinco anos, notamos uma permanência da cannabis no top em termos de utilização e um decréscimo da importância da heroína, que se traduz, sobretudo, por uma menor entrada de novos consumidores. Há menos jovens a aderir à heroína.

Sabe-se porquê?

Julgo que é porque a heroína é uma droga que se auto desprestigiou pelos efeitos físicos muito visíveis. Daí que seja muito associada às pessoas mais andrajosas (por exemplo, aos arrumadores de carros). No discurso das drogas, falamos muito dos riscos e raramente abordamos a questão do prazer e, do meu ponto de vista, as pessoas usam drogas por três motivos: para potenciar o prazer (e nesse caso usam cannabis, álcool, estimulantes como o ecstasy e a cocaína), para aliviar o desprazer (álcool, heroína, tranquilizantes, sedativos e outros medicamentos), e para aumentar a performance, seja no ambiente escolar, laboral, desportivo e sexual (estimulantes). A utilização de substâncias para obter estes objetivos tem variado ao longo do tempo. Da presença muito marcada da heroína, que depois começou a decrescer, passou-se a um aumento do consumo de estimulantes em contexto recreativo.

Com tantas variáveis, é possível dizer se o consumo de drogas está a diminuir ou a aumentar em Portugal?

Perguntam-me muitas vezes isso, mas é difícil responder. Felizmente posso garantir que a toxicodependência está a diminuir, mas não é o mesmo que dizer que o consumo de drogas está a diminuir. Há muitas pessoas que usam episodicamente substâncias de uma maneira, passo o pleonasmo, utilitária, recreativa, para um determinado fim – é um consumo esporádico, não significa que seja uma dependência.

Acha que as pessoas estão alertadas para os perigos da cannabis, cujo consumo tem aumentado em Portugal? Tem dito, nos últimos tempos, que esta droga já não é o que era, é hoje mais potente e tem desencadeado episódios de urgência, psicoses agudas e esquizofrenias. As pessoas têm noção disto?

Acho que não. Há uma enorme complacência social relativamente ao uso da cannabis e uma desvalorização dos potenciais riscos que envolve. Penso que para isto tem contribuído também uma certa confusão entre o uso medicinal da cannabis e o seu uso recreativo. À boleia de uma eventual utilização terapêutica da cannabis em determinadas patologias muito bem estabelecidas, em que parece haver, de facto, evidência de alguns benefícios, tem-se assistido à introdução de alguma confusão, o que revela até falta de seriedade intelectual. Gostaria que houvesse uma discussão séria sobre estes dois assuntos, mas em sede própria. A questão do uso terapêutico de cannabis é uma matéria médica e devia ser debatida com a Agência do Medicamento, o INFARMED; o seu uso recreativo é uma outra discussão, igualmente legítima, mas que passa pelo devolver ao cidadão a capacidade de fazer as suas escolhas informadas, em nome da liberdade individual.

Essa discussão ainda não foi feita de forma séria?

Creio que não. Se me disserem assim: vamos legalizar, vamos permitir ou vamos despenalizar porque estes consumos não têm importância nenhuma, direi que não é verdade. Agora, apesar disso, se as pessoas devem ser livres de decidir, de usar ou não usar, essa é a grande questão que levanta uma outra: que tipo de interferência deve o Estado ter nas escolhas individuais dos cidadãos?

“Há um maior consumo de bebidas espirituosas por parte das raparigas do que dos rapazes (estes bebem mais cerveja). A chegada das raparigas ao consumo de substâncias como a heroína e a cocaína acontece mais precocemente do que nos rapazes.”

No estudo que referiu, a análise por sexo evidenciou prevalências de consumo mais elevadas nos homens, para todas as drogas, apesar de alguns consumos no grupo feminino terem aumentado. Por que é que a drogas atraem mais os homens? Isso está estudado?

A razão não está estudada, é uma constatação. Aquilo que se constata também é que a chegada das raparigas ao consumo de substâncias como a heroína e a cocaína acontece mais precocemente do que nos rapazes. Uma leitura possível para isto: as raparigas são iniciadas neste tipo de consumos por namorados, companheiros e amigos mais velhos. Elas têm 18 e as pessoas com quem consomem têm 22, 24 anos. Estou a especular, mas é uma constatação que vou tendo através de outros estudos.

Também se verificam diferenças de género nos consumos de álcool entre jovens?

Sim. Na semana passada apresentamos um estudo feito em meio escolar, com jovens entre os 13 e os 18 anos, que diz que há um maior consumo de bebidas espirituosas por parte das raparigas do que dos rapazes (estes bebem mais cerveja). O que vou dizer é pura especulação: será que o facto de a cerveja ser um diurético poderoso é a razão pela qual as raparigas não bebem tanta cerveja como os rapazes, para não passarem a vida a ir à casa de banho, passar tempo na fila de espera, numa discoteca ou noutro ambiente recreativo? Nas casas de banho masculinas não há essa dificuldade. Estou a especular, mas há condicionantes que podem ter alguma importância para serem investigadas.

Esse estudo em meio escolar mostra também diferenças de género no uso de medicamentos sem prescrição, com as raparigas a recorrerem mais a essas substâncias dos que os rapazes...

É verdade, mas não é só nos jovens que essa diferenciação existe. Nos adultos, também as mulheres usam mais sedativos e tranquilizantes do que os homens.

O consumo de drogas é cada vez mais precoce ou há uma reversão?

O estudo nas escolas apresentado aponta para alguma reversão do uso precoce. Nas idades dos 13, 14, 15 e 16 há uma reversão. Em relação ao uso de heroína, por exemplo, a predominância hoje está muito mais à direita nos gráficos de barras, ou seja, nos grupos dos 40, 50, 60 anos - são os antigos consumidores, que vão envelhecendo e mantendo os seus hábitos. Isto tem também consequências no desenho das políticas. Ficamos muito contentes porque ajudamos estas pessoas a sobreviverem a inúmeros riscos inerentes ao consumo de heroína, mas, muitos deles, estão agora nesses grupos etários mais avançados, transportando consigo doenças físicas, como VIH, Sida, hepatites e doença mental.

Já falaremos das doenças associadas. Voltando à questão anterior: relaciona a reversão no consumo precoce com as campanhas de prevenção nas escolas?

As campanhas são razoavelmente eficazes, uma vez que assistimos a algum retardar no início dos consumos. O trabalho nas escolas é importante, mas o trabalho nas famílias é fundamental. A cannabis, que é, de longe, a substância mais consumida, e o álcool gozam de uma enorme tolerância social. A cannabis, para além de ser transgeracional (encontramos pessoas que começaram o seus consumos nos anos 70 e continuam hoje a fumar os seus charros, as suas ganzas), é também inter-geracional (vemos famílias onde avô, pai e filho consomem cannabis juntos, sem que isso seja valorizado no sentido depreciativo). Por outro lado, a cannabis é uma espécie de livre-trânsito no acesso a determinados ambientes; Há jovens que têm que ter qualquer ‘coisa’ para conseguirem entrar em grupos em que querem integrar-se e esta substância (cannabis) é o seu salvo-conduto. Mesmo que não adiram a outras (felizmente, muitos ficam-se pela cannabis), é preciso usarem qualquer coisa ilícita para serem admitidos em determinados ambientes.

“Há jovens que têm que ter qualquer ‘coisa’ para conseguirem entrar em grupos em que querem integrar-se e esta substância (cannabis) é o seu salvo-conduto.”

Os resultados do Flash Eurobarometer –Young People and Drugs, realizado em 2014 entre os jovens europeus de 15-24 anos, vão ao encontro do que acaba de dizer. É um estudo sobre as perceções do risco para a saúde associado ao consumo de drogas e mostra que a cannabis é a droga ilícita a que os jovens portugueses atribuem em menor proporção um risco elevado para a saúde.

É verdade. Com o desvanecer da centralidade do problema ocasionado pelo consumo de outras substâncias, restam problemas que até agora pareciam secundários. Fenómenos como a difusão da infeção pelo VIH ofuscou durante muitos anos, quase completamente, o que era a difusão do vírus da hepatite C. Isto, mesmo nas estruturas de tratamento. Só agora, que se vai desvanecendo a importância do VIH, em boa medida também pelo aparecimento de novas respostas terapêuticas comprovadamente eficazes, salta para a ribalta esta epidemia. Contra mim falo: lembro-me de quando fazia consulta a toxicodependentes de os felicitar dizendo qualquer coisa do género “Parabéns, não tens Sida, só tens Hepatice C”. Estivemos muito focados na heroína e nos problemas que ocasionou (as mortes por overdose, as infeções por HIV, que estão felizmente a desvanecer-se) e agora estamos a olhar para aquilo que estava na segunda linha.

“Os utilizadores de drogas são os que contribuem menos para as infeções por VIH, o que está diretamente relacionado com a campanha de troca de seringas e com os programas de metadona de baixo limiar de exigência.”

Que outras doenças estão frequentemente associadas ao consumo de drogas?

Hepatice C (uma bomba relógio que está por estoirar, com consequências a longo prazo), Hepatite B (com uma prevalência bastante mais baixa), tuberculose e doenças do foro mental. No caso da infeção por VIH e Sida ainda temos uma prevalência alta, mas o número de novos casos associados tem vindo consistentemente a baixar. Se considerarmos três contingentes – heterossexuais, homossexuais/bissexuais, e utilizadores de drogas por via injetável -, neste momento os utilizadores de drogas são os que contribuem menos para as infeções por VIH, o que está diretamente relacionado com a campanha de troca de seringas e com os programas de metadona de baixo limiar de exigência.

Tendo-se conhecimento sobre a realidade do consumo de substâncias psicoativas, comportamentos aditivos e dependências em Portugal, neste momento, quais são as necessidades de intervenção?

Hoje em dia temos uma intervenção muito alargada, não apenas no combate às substâncias heroíticas, mas também no combate às substâncias lícitas e outros comportamentos de toxicodependência. O foco agora tem de ser na pessoa e não na substância. Por que é que uma determinada pessoa, numa determinada fase da sua vida desenvolve comportamentos potencialmente aditivos? Qual é o lugar que esses comportamentos assumem na sua vida (isto, dependendo do grupo etário, do contexto em que se movimenta)? O que estamos a tentar fazer é minorar a necessidade de comportamentos aditivos. Parece um objetivo muito ambicioso, mas é essa a nossa missão.

Mas isso implica uma intervenção em várias frentes. Como?

Temos de intervir em todos os tipos de comportamentos aditivos, como a dependência do jogo, da internet, enfim, de uma série de nichos na vida das pessoas que estão a ser ocupados por este tipo de comportamentos. Temos de acorrer a estas necessidades da forma mais satisfatória possível e já há estratégias de prevenção em prática, algumas dirigidas a cada uma delas. Por exemplo, na questão do álcool, para além da última lei que ‘subiu’ para os 18 anos a idade a partir da qual as pessoas podem adquirir bebidas alcoólicas, existe uma estratégia de reforço da autoridade parental, ou seja, a fiscalização não tem de estar a cargo só da polícia e da ASAE, os pais têm de aplicar a lei, reforçando a sua autoridade como pais. Como? Dizendo por exemplo aos filhos, quando estes saem à noite, “não podes beber álcool porque é proibido e porque faz-te mal.”

Educação para a saúde, portanto…

Claro, porque a educação para a saúde é o pano de fundo para toda a intervenção preventiva, depois da informação relativa aos efeitos das substâncias (esta é apenas uma componente da prevenção). Acredito também no reforço da capacidade de resiliência, na capacidade de a pessoa se autodeterminar, de resistir à pressão dos pares, enfim, acredito numa série de estratégias adequados a determinados grupos.

Está satisfeito com o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências, para o período 2013 – 2020 (é a terceira estratégia nacional para os problemas da droga e da toxicodependência). É o Plano possível ou podia ser mais ambicioso?

Estou satisfeito, porque é um plano realista e tem-se traduzido em ganhos significativos. Basta dizer que os problemas da droga e da toxicodependência foram sentidos pela população portuguesa como o grande problema da sociedade portuguesa nos anos 80 e 90. Claro que não é um problema resolvido, mas já não é o que falta.

Não falta criar sala de consumo assistido? Em que pé está esse processo? Vai mesmo avançar?

Têm sido ventiladas notícias sobre localizações [em Lisboa] e datas de abertura que não correspondem à verdade. No início do século, em 2000/ 2001, foi consagrada na lei que regula as respostas de redução de danos a possibilidade de abrir salas de consumo assistido, o que pressupõe a iniciativa de ONG e dos municípios e a aceitação das estruturas do governo central (na altura era o IPDT, depois o IDT e agora o SICAD). O que aconteceu é que andámos desencontrados: a Câmara Municipal de Lisboa tinha uma visão e o governo outra. Até que, em 2008, houve convergência para que se avançasse nesse sentido. Na altura, enquanto presidente do IDT, consultei as pessoas do terreno para saber como e onde abrir a sala e o que me disseram foi que não era a melhor altura.

Porquê?

Porque de 2001 até 2008, através do desenvolvimento de outro tipo de aproximações, com equipas de rua, abrigos, programas de substituição com metadona, tínhamos conseguido baixar tanto o consumo por via injetada que criar uma sala de consumo assistido, na opinião desses colegas, podia ser sentido como um sinal em contraciclo

Sendo assim, e uma vez que o consumo de heroína continua a baixar, fará sentido abri-la?

Pois, essa é a grande dúvida atualmente. Há propostas apresentadas no sentido de dar outros usos à sala, nomeadamente o consumo por via fumada (crack, por exemplo, que embora não tenha uma grande expressão, encontra alguns consumidores em Lisboa) para evitar a partilha dos cachimbos e uma vez essa partilha é passível de ocasionar a transmissão de infeções virais. Mas, de acordo com o diagnóstico que temos da cidade, essas propostas não se justificam muito. Portanto, não é certo que a criação da sala de consumo assistido vá avançar. Há uma série de fatores a considerar.

“A fiscalização não tem de estar a cargo só da polícia e da ASAE. Os pais têm também de aplicar a lei, reforçando a sua autoridade como pais: “Não podes beber álcool porque é proibido e faz-te mal.”

Considera que o País está devidamente dotado de estruturas da rede pública direcionadas para o tratamento de comportamentos aditivos? E tem dado as respostas adequadas?

Sim, creio que a rede é bastante sólida, mas falta implementar a rede de referenciação com a definição dos níveis de intervenção dos diversos tipos de cuidados. Nos últimos anos houve alterações no sentido de deslocar as respostas de primeira linha de tratamento do IDT [antigo Instituto da Droga e Toxicodependência] para a ARS [Administração Regional de Saúde] e seria expectável que essa mudança proporcionasse uma maior aproximação aos cuidados de saúde primários e à rede de cuidados hospitalares, permitindo uma real implementação da rede de referenciação que temos desenhada há bastante tempo, mas, na prática, isso não aconteceu. Portanto, diria que uma das questões prioritárias nesta área é a efetiva implementação dessa rede de referenciação.

A crise teve algum impacto no consumo de drogas?

Teve. Segundo os tais dados de 2014 de que falou há pouco, o número de readmissões (recaídas) por consumo de droga suplantou o número de novos utentes. Ou seja, houve antigos utilizadores que se reaproximaram dos serviços e, pensamos, muito em consequência da crise. Não podemos estabelecer uma relação de causa/efeito inequívoca, mas penso que é de senso comum fazer alguma associação.

Em matéria de combate, tem havido cooperação com outros países lusófonos?

Há cooperação, mas podia haver mais. Promovemos reuniões com os países da CPLP (a última foi no ano passado), existem declarações e um protocolo assinado multipartido no sentido de aprofundar a nossa colaboração. Na prática, aquilo que de mais efetivo temos neste momento é a colaboração com Cabo Verde, que já se traduz na utilização de alguns utensílios que temos e na deslocação de técnicos de saúde que têm trabalhado na formação de profissionais em Cabo Verde. Existem intercâmbios com outros países, que têm consistido basicamente num conhecimento mútuo crescente, com visitas aos países da CPLP. No próximo mês, no Congresso do SICAD (de 5 a 7 de Abril), iremos ter a participação de um grupo de brasileiros que vem cá expressamente para esse encontro e para visitar alguns dos nossos serviços.

Para as redes de tráfico, Portugal é um importante mercado?

De per si, não é um importante mercado, é uma das faces do mercado europeu. Espanha é significativamente mais importante como porta de entrada, mas Portugal também será um país situado nas rotas naturais de entrada de substâncias para o mercado europeu. E alguma percentagem desses produtos fica por cá. Diria que não somos um País sede de organizações criminosas de tráfico internacional, mas temos algumas ramificações de organizações baseadas noutros países.

Quem é João Goulão?

João GoulãoDiretor geral do SICAD e coordenador nacional para os Problemas da Droga, das Toxicodependências e do Uso Nocivo do Álcool, licenciou-se em medicina e ingressou na carreira clínica geral no Centro de Saúde de Faro, em 1983. Poucos anos depois, foi convidado para preparar a equipa e organizar o Serviço de Prevenção e Apoio a Toxicodependentes (SPAT) de Faro, assumindo a direção deste Serviço e, partir daí, esteve sempre ligado à área da prevenção e tratamento da toxicodependência. Em 1992, como presidente da Comissão Instaladora do Centro de Atendimento a Toxicodependentes do Algarve; em 1995, presidiu à Direção Regional do Algarve do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (SPTT) e dois anos depois foi nomeado presidente do Conselho de Administração deste organismo, cargo que desempenhou até 2007, data da extinção do SPTT, dando lugar ao Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT). Foi eleito duas vezes presidente do Conselho de Administração do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) e galardoado (com o SICAD) com o Norman E. Zinberg Award for Achievement in the Field of Medicine 2013, da Drug Policy Alliance, como reconhecimento internacional da Política Pública portuguesa na área das Drogas e da Toxicodependência.