"É preciso criar disciplina de Educação para a Saúde e Cidadania nas escolas"
- Data de publicação 27 maio 2016
Estudou para ser médico e especializou-se em doenças infeciosas, mas a política levou a melhor. Crítico de um Sistema Nacional de Saúde que premeia o número de consultas em vez de resultados e a melhoria da qualidade dos indicadores de saúde da população, Ricardo Baptista Leite, deputado à AR pelo PSD e vereador na Câmara Municipal de Cascais, defende uma mudança de paradigma com a criação de valor em Saúde. E isso passa por uma disciplina de Educação para a Saúde e Cidadania nas escolas, desde o primeiro ao último ano de escolaridade, e por um maior investimento na prevenção da doença.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández
Como chegou à política e ao PSD?
Sempre me interessei pelas questões políticas, o que se deve, por um lado, aos valores que me foram incutidos pelos meus pais e, por outro, ao sistema educativo do Canadá, onde nasci e vivi até aos onze anos, que estimula muito o pensamento cívico e de pertença à comunidade (ainda guardo cartas que escrevi ao primeiro-ministro canadiano). Em Portugal, esse chamamento continuou presente, mas não ia além do que fazia no âmbito das ações associações de estudantes a que pertenci, quer no 10º ano de escolaridade quer na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Aos 21 anos senti que tinha de ter um papel mais ativo, fora da vida associativa. Queria fazer mais pela comunidade e então comecei a estar mais atento à vida político-partidária, porque me parecia ser o instrumento mais eficaz para ter uma capacidade de intervenção macro na sociedade. Li todos os manifestos partidários, do PCP ao PP e identifiquei-me claramente com a visão social-democrata de Francisco Sá Carneiro, um homem de centro- esquerda que muito me inspirou.
Conhecia alguém da vida partidária ativa?
Não. Um dia, estava a minha mãe estava numa fila de um mercado em Oeiras e, atrás, também na fila, estava o professor Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha deixado de ser presidente do PSD há pouco tempo. A minha mãe disse-lhe: “Não imagina o quanto o meu filho gosta de si. Agora diz que é social-democrata”. O professor pediu-lhe a morada e uma semana depois recebi em casa uma ficha de militante assinada por ele. Assumi isso como um sinal e inscrevi-me no partido. Foi então, aos 21 anos, estava a terminar o curso de medicina, que tive a minha primeira incursão na vida política, começando a envolver-me ativamente na política local, em Cascais. Integrei as listas para a Assembleia de Freguesia de São Domingos de Rana, onde residia.
Esse foi o meu primeiro cargo público?
Foi e exerci-o conseguindo conciliar com a profissão de médico. Uns bons anos mais tarde, quando foi assinado o Memorando de Entendimento com a Troika, tivemos marcação de eleições, constituição de listas para deputados e o meu nome foi proposto pelas estruturas do partido para integrar as listas de candidatos a deputados do PSD de Lisboa. Aceitei o desafio.
Foi uma decisão difícil?
Foi, porque tinha a minha vida profissional na medicina em pleno andamento. Mas o sentido de missão, o poder colocar ao serviço do País a minha competência técnica falou mais alto. Sentia que o país ia viver um período difícil. De resto, era o que estava a acontecer noutros países que já estavam sob assistência financeira. Particularmente na área da saúde, olhava-se para a Grécia e percebia-se a tensão que lá se vivia.
E ao cabo de cinco anos, a formação em medicina tem sido uma ferramenta útil no exercício do trabalho na AR, em especial na Comissão Parlamentar de Saúde?
A formação em saúde, médica ou outra, dá-nos uma visão mais humanista da sociedade e uma maior sensibilidade social. Ter passado anos a lidar com pessoas com VIH e Sida, pelo estigma social de que eram alvo e pelos problemas sociais subjacentes, ver jovens infetados a morrerem sozinhos porque os pais e as mães recusavam-se a estar junto deles no momento da morte, ver pessoas a morrer sem que ninguém reclamasse depois o corpo, marcou e transformou a minha maneira de ver e estar no mundo. Sou mais tolerante e mais humanista.
Quais são os principais avanços no que respeita ao VIH/Sida?
Na década de 80, o tempo médio de vida era 18 meses. Hoje, e desde a década de 90, é uma doença crónica, as pessoas tomam um comprimido por dia e vivem até aos 70, 80 anos e plenamente ativos. Os avanços foram enormes, mesmo no campo da discriminação, onde a evolução é menor, estamos francamente melhor do que há 20 anos. Julgo que o que aconteceu há dez anos com um cozinheiro com VIH positivo [por causa da doença foi despedido] seria impensável agora. Há cada vez maior consciência social. Os decisores políticos sabem que manter as pessoas infetadas sob tratamento é um instrumento de saúde pública. Sabem que uma pessoa com infeção controlada não transmite a infeção a outra.
Houve algo, no entanto, na área da prevenção que correu menos bem na última década, particularmente nas camadas mais jovens. Quando a doença era fatal, nos anos 90, havia uma grande campanha de sensibilização para a saúde, de tal modo que a utilização de preservativos atingiu provavelmente o seu pico nessa época, mas, à medida que a doença se foi tornando crónica, controlável, não fatal, houve uma perda do ímpeto social para manter essa sensibilização.
“Apenas um terço dos jovens universitários do norte do País utiliza preservativo em contato sexual ocasional, o que mostra que ainda há muito para fazer”
Uma estrutura de educação para a saúde passaria pela integração, no sistema educativo, de uma disciplina dedicada aos temas da saúde?
Sim, era fundamental que houvesse uma disciplina de formação para a educação em saúde e cidadania que abordasse estes temas nas escolas, desde a pré-primária até ao 12º ano de escolaridade. Como não existe, estes e outros temas e a importância que têm junto da população dependem das modas. Prova disso são os resultados de um estudo publicado há dois anos, segundo os quais apenas um terço dos jovens universitários do norte do País utiliza preservativo em contato sexual ocasional, o que mostra que ainda há muito para fazer. Também me preocupam muito que os sistemas de saúde à escala global, a OMS em particular, estejam a dar cada vez menos importância às doenças infetocontagiosas e olhem apenas para as doenças transmissíveis ou não comunicáveis.
São esses os desafios, atualmente, para VIH/Sida?
Diria que sim, porque se formos eficientes na campanha contra o VIH/sida seremos eficientes contra todas as Doenças Sexualmente Transmissíveis. A solução sustentável a longo prazo, já o disse, é a criação de uma disciplina de Educação para a Saúde. Por outro lado, precisamos de um sistema de saúde que assuma querer cumprir os objetivos 90, 90, 90, com os quais Portugal se comprometeu junto da ONU [garantir 90% de casos diagnosticados, 90% de casos sob tratamento e 90% de casos sob supressão vírica], o exige o diagnóstico de todos os casos e o início imediato da terapêutica, já provado pela Direção Geral de Saúde (DGS).
Quer dizer que, em Portugal, todas as pessoas infetadas começam a terapêutica logo após o diagnóstico?
Agora sim, já o podem fazer, mas para isso é preciso identificar todos os casos.
E não são?
Não. Temos uma prevalência de infeção na população que ronda os 0,5%, 0,6%. Não é uma prevalência alta, o problema é que quando olhamos para populações específicas, como os trabalhadores de sexo comercial e os homens que fazem sexo com homens, verificamos que a percentagem de infeção é muito grande. Não podemos continuar a ignorar estes fenómenos, não tendo programas dirigidos a estas pessoas, programas que vão ‘atrás’ delas para que façam testes e iniciem tratamento o quanto antes. Isto se quisermos de facto quebrar a cadeia de infeção.
Mas dirigir uma campanha específica para os trabalhadores do sexo comercial e aos homens que fazem sexo com homens não é correr o risco de, como no passado, ‘colar’ a infeção a determinados grupos?
Não, considero ser uma medida muito importante para aumentar o diagnóstico em populações com elevada prevalência. De resto, são as próprias comunidades que pedem esses serviços dirigidos. Um trabalhador de sexo comercial, muitas vezes em situação ilegal no País, tem medo de se dirigir aos serviços de saúde convencionais, porque não tem documentação ou simplesmente não quer expor a sua situação.
É eficaz a ligação entre o Checkpoint – um espaço onde se realizam testes rápidos, anónimos e gratuitos de VIH a homens que têm sexo com homens - e os cuidados de saúde, em caso de teste positivo?
Não, é um inferno. As pessoas têm que procurar um médico de família – sendo que a maioria não tem – para depois serem encaminhadas para o serviço, irem ao hospital e terem uma primeira consulta. Todo este processo moroso e burocrático quebra a ligação aos cuidados de saúde, perdendo-se uma quantidade significativa de pessoas infetadas. As pessoas já estão psicologicamente frágeis, terem de passar por todas aquelas etapas fá-las desistirem. É neste linkage to care que identifico a maior fragilidade no Sistema Nacional de Saúde (SNS), para além da questão da discriminação, que é sempre muito difícil combater se não houver um investimento forte na Educação para a Saúde e Cidadania. Infelizmente, até hoje, não tivemos da parte de nenhum Ministério da Educação abertura nem visão para integrar esta vertente da educação para a saúde.
“É neste linkage to care que identifico a maior fragilidade no Sistema Nacional de Saúde (SNS), para além da questão da discriminação, que é sempre muito difícil combater se não houver um investimento forte na Educação para a Saúde e Cidadania”
Relativamente aos direitos e saúde sexual e reprodutiva, estão totalmente assegurados em Portugal ou falta fazer muita coisa do ponto de vista da ação e da criação e concretização de programas?
Julgo que temos um sistema relativamente bem equilibrado, mas preocupam-me os atrasos que existem nas consultas de fertilidade. Devíamos garantir o bom funcionamento do sistema como um todo e, nesta perspetiva, faria sentido eventualmente que as ONG fizessem um trabalho como observatórios. Temos tido vários relatos em vários grandes centros onde há atrasos sucessivos.
Por que as consultas de fertilidade estão a crescer?
Estão a crescer e os serviços não conseguem acompanhar a tendência por falta de recursos. Aliás, em todo o mundo ocidental há um incremento exponencial de casos de infertilidade. Portugal não é exceção. Os recursos são, de facto, mas neste caso particular é uma questão de prioridade política e de gestão.
E devia ser uma prioridade, agora que o índice de natalidade está longe dos 2,1 filhos por mulher, necessários para a renovação de gerações?
Devia. Esta foi uma das questões que levantei no debate sobre natalidade no final da legislatura passada.
No plano da saúde, estamos perante programas mais centrados na doença e no seu impacto na vida das pessoas do que na intervenção direta e na prevenção primária?
Acho que temos hoje um Ministério da Doença em vez de um Ministério da Saúde. Temos um sistema absolutamente reativo. O facto de estarmos sempre a falar nos doentes e não nos cidadãos demonstra que só estamos disponíveis para agir quando a pessoa já está doente. Devíamos era ter uma perspetiva centrada no cidadão, na promoção da saúde, na prevenção e na redução da carga da doença. Claro que o sistema de saúde deve ser capaz de reagir quando as pessoas ficam doentes, mas sucede que o momento de doença é antecipado por falta de intervenção de saúde pública. Gastamos 97% do nosso orçamento nos cuidados de tratamento agudo, porque não somos capazes de prevenir a doença.
E nesse aspeto estamos sozinhos no contexto europeu?
Não, a realidade na União Europeia, não sendo tão grave, é semelhante. Há algo de errado na filosofia que está subjacente ao SNS. Temos de mudar de paradigma, passar para um modelo em que o financiamento, em que em vez de premiar a produção industrial dos hospitais e das clínicas, premeie a melhoria da qualidade dos indicadores de saúde da população.
Como é que isso se faz?
Em termos práticos, em vez de financiarmos um hospital para termos mais cirurgias ou mais consultas, passamos a premiar uma administração de saúde que consegue melhorar os indicadores de saúde de uma determinada comunidade. Por exemplo, um hospital no bairro “y” que consegue baixar os casos de diabetes não controlada numa comunidade em x% deve ser compensado financeiramente.
Era isso que faria, se fosse ministro de saúde?
Se fosse Ministro da Saúde teria como objetivo a criação de valor em saúde. Iniciaria um caminho que premiasse a perspetiva de dar saúde à população em vez de financiar constantemente um modelo reativo, que apenas se preocupa com a doença. Claro que isto não se faz da noite para o dia, mas deve ser a aposta. Se olharmos para os cuidados de saúde primários, as Unidades de Saúde familiares (USF) são já um passo importante neste sentido, na medida em que os pagamentos se fazem em função dos indicadores de saúde. No entanto, quando olhamos para os dados, verificamos que hoje em dia metade do nosso sustento de saúde usa as USF e outra metade usa o modelo clássico. No modelo das USF, onde há um pagamento pela melhoria da qualidade de saúde, os indicadores de saúde são brutalmente superiores aos do modelo clássico, o que demonstra que pagando em função de resultados e não em função de número de consultas ou de outras soluções que nada têm a ver com saúde consegue-se mudar a forma como os profissionais trabalham. Agora, imagine o que poderíamos fazer se tirássemos a ‘cenoura’ de dentro do hospital ou do centro de saúde e a mandássemos para o meio da comunidade e disséssemos: “Estes administradores de saúde, em vez de serem responsáveis apenas pela melhoria de saúde da sua população interna (doentes que chegam ao seu hospital), são responsáveis pelos doentes desta comunidade”. E imagine que neste modelo juntamos a Câmara Municipal, a escola, as IPSS, as ONG e as várias entidades que estão a trabalhar na comunidade. Com todas estas sinergias orientadas para resultados de saúde, imagine o que poderíamos transformar.
Vê o modelo que descreve implementado em algum País?
Não existem modelos perfeitos, que tenham conseguido implementar isto como um todo, no entanto, há casos específicos por patologia. Se tivesse responsabilidades a esse nível, começaria, de uma forma faseada, por aquilo que é mais simples. Dou-lhe o exemplo da Suécia no que respeita ao cancro da próstata (tratado por cirurgia), onde se comparou os hospitais com mais experiência com os hospitais menos experientes e verificou-se que a taxa de cura era muito semelhante, cerca de 97%. Depois, viu-se os doentes e verificou-se que as consequências pós operatórias (como incontinência urinária, impotência sexual…) eram significativamente menores no hospital com pagamento mediante resultados. Mudar o foco da cura (está curado, está resolvido) para uma perspetiva de que aquilo que preocupa o doente tem impacto direto na sua vida é uma mudança radical necessária, até na forma como os profissionais de saúde olham para o sistema.
Mas os profissionais de saúde são formados nas escolas conforme essa essa visão ‘convencional’.
O ensino médico ainda é muito clássico na maioria dos países. É muito focalizado para a cura a todo o custo, esquecendo um pouco a qualidade de vida das pessoas e a prevenção da doença.
Por isso é que a prevenção, embora mais cara, se abranger várias áreas e não apenas as “doenças ou males do momento”, garante resultados mais duradoiros e consistentes. O que falta para concretizar um plano de cuidados de saúde primários multisetorial e de abordagem transversal?
Já vai havendo os chamados programas locais de saúde, em que os agrupamentos de centros de saúde são obrigados a apresentar todos os anos, juntamente com as autarquias e as escolas, um plano de ação local. Agora, se esse plano sai do papel para o terreno é difícil de medir, porque os indicadores muitas vezes não são totalmente claros, não há uma preparação destes documentos orientada para uma monitorização posterior.
Considera que os jovens em Portugal têm a informação, a educação e os serviços de que precisam para fazerem escolhas informadas sobre a sua sexualidade e reprodução?
Entendo que o exemplo de Portugal, que disponibiliza consultas de planeamento familiar gratuitas e abertas a toda a população nos centros de saúde, é raro na UE. Mais, se me permite um parenteses: com a crise dos refugiados, Portugal foi o primeiro País a aprovar a isenção de taxas moderadoras e a possibilidade de todos os refugiados recorrerem a cuidados de saúde. No entanto, a maioria dos jovens desconhece a existência dessas consultas e dado não termos um sistema educativo que providencie uma informação estruturada em saúde, em que naturalmente a sexualidade faria parte, os jovens estão entregues à sua sorte. Sou muitas vezes convidado para dar palestras nas escolas sobre infeções sexualmente transmissíveis e outros temas ligados à sexualidade, mas quando faço essas sessões fico angustiado por causa de outras crianças que não têm a sorte de ter a mesma formação pontual. Como sabe, a abordagem que se faz nas disciplinas de ciências da vida não se compadece com as exigências de uma sociedade em que queremos que os cidadãos sejam players ativos na gestão da sua própria saúde.
Na legislatura anterior integrou o Grupo Parlamentar sobre População e Desenvolvimento. Que relações de cooperação existem entre Portugal e os PALOP e outros países europeus?
Fiquei muito bem impressionado com o que se vai fazendo em termos de cooperação em alguns países de língua portuguesa. O exemplo de Cabo Verde é extraordinário. Numa visita de estudo ao País, no âmbito do GPPsPD e com o apoio do Fórum Europeu de Parlamentares e do FNUAP, tive a oportunidade de conhecer o sistema de saúde e as maternidades, de ver as ONG no terreno e algum do trabalho que a Cooperação Portuguesa fez, o que me permitiu perceber por que razão Cabo Verde tem hoje indicadores de saúde materno infantil ao nível da Europa. E há outros casos, como a Guiné (não fui lá, mas acompanhei de perto), um país tão carenciado na saúde materno infantil, onde o pouco apoio nessa área tem um impacto positivo imediato. Exemplos destes demonstram que o investimento na saúde materno infantil tem resultados diretos.
“O investimento na cooperação, na saúde materno infantil na Guiné, Cabo Verde e noutros PALOP é um investimento também em Portugal, porque esses países ganham autonomia e capacidade de ter as crianças na sua terra, de forma saudável, deixando de ter necessidade de recorrer aos nossos serviços de saúde. Todos ganham”
Teme que com a crise se aperte também o cinto na cooperação?
Seria um grande erro. O investimento na cooperação, na saúde materno infantil na Guiné, Cabo Verde e noutros PALOP é um investimento também em Portugal, porque esses países ganham autonomia e capacidade de ter as crianças na sua terra, de forma saudável, deixando de ter necessidade de recorrer aos nossos serviços de saúde. Todos ganham. Naturalmente, a limitação de recursos é sempre um desafio, mas os fundos do Horizonte 20 - 20 permitem o recurso a financiamentos para projetos de inovação e tecnologia em saúde, em países como os PALOP e estes em cooperação com os países da UE, que pode ser o caso de Portugal. Portanto, há oportunidades que temos de aprender a explorar.
Conhece programas e iniciativas multilaterais com a OMS, o Fundo Global para o VIH, Tuberculose e Malária, e a UNFPA. O que podemos aprender com essas iniciativas, quer em termos nacionais, quer globais?
O que podemos aprender é que quando temos objetivos muito claros temos que ter a certeza de que as nossas ações são condizentes com esses objetivos. O Fundo Global, por exemplo, tem-me preocupado pela mudança de filosofia nos últimos anos. Nasceu com a intenção de acabar com doenças como o VIH, a tuberculose e a malária, ou de controlá-las, no limite, o que implicava fazer investimentos também no mundo ocidental numa lógica de banco mundial, mas transformou-se num fundo de apoio a programas em países em vias de desenvolvimento. Ora, uma coisa é ter um programa de apoio a países em vias de desenvolvimento, outra é ter um programa de combate ao VIH, tuberculose e malária. Acho que neste momento estamos em risco de ver subir a tuberculose em países de média dimensão económica, porque houve uma mudança de filosofia e baixou-se a guarda em locais dados por garantidos. O mesmo se aplica ao VIH e à malária.
Quando fez parte do GPPsPD e visitou muitos países, encontrou abordagens muito diferentes da que encontra em Portugal?
Tive o privilégio de conhecer várias realidades, desde a América Latina aos países mais ricos da Europa, para além dos Estados Unidos, Canadá e sudeste asiático e com base nessa experiência percebi que Portugal, com um sistema de saúde baseado em impostos, com a penetração e capilaridade do SNS tem em termos de cuidados de saúde primários, apresenta resultados extraordinários em termos de indicadores globais de saúde. Por regra, podemos orgulhar-nos muito do nosso SNS como um todo, sobretudo se nos compararmos com outros países.
Por exemplo?
Por exemplo as Filipinas, onde fui com o GPPsPD e outras entidades apoiar um grupo de ativistas que tinham em carteira um novo diploma para um programa de saúde materno infantil alargado a toda a comunidade. Esse foi um daqueles momentos em que percebi que estávamos a fazer a diferença com o nosso testemunho e com a nossa experiência, porque estamos a falar de um País onde não existia a legislação específica sobre cuidados básicos de saúde materno infantil, que entretanto foi adotada depois da nossa visita. Até então, as gravidezes não tinham qualquer acompanhamento, a sexualidade era algo que não era discutido. Isto mostrou-me que, de facto, Portugal tem conseguido basear toda a sua ação paulatinamente naquilo que é a melhor prática e quando vemos exemplos como os das Filipinas percebemos o quão chocante é a diferença. Lembro-me de ver taxas de mortalidade infantil e casos de VIH nas Filipinas elevadíssimos, há apenas dois anos.
“Em Cabo Verde tem-se a noção de que ao proteger as meninas e as mulheres estamos a proteger toda a população e, por essa via indireta, diminuem também os casos de infeção por VIH”
Pode partilhar um ou outro caso que considere exemplar em matéria de saúde materna, parto seguro, VIH e outros temas de saúde sexual e reprodutiva?
Como exemplos positivos destaco o caso de Cabo Verde, onde a população está já muito avançada em termos de campanhas de sensibilização e de distribuição de preservativos, numa lógica de educação para a saúde e de intervenção comunitária. Os programas e a legislação que o País tem para combater a violência de género são extraordinários, muito por influência da legislação portuguesa nessa matéria. Em Cabo Verde tem-se a noção de que ao proteger as meninas e as mulheres estamos a proteger toda a população e, por essa via indireta, diminuem também os casos de infeção por VIH. Outra coisa extraordinária é a luta contra a mutilação genital feminina na Guiné Bissau, onde tem maior expressão, e também em Portugal, em algumas comunidades migrantes. Não há questões culturais que justifiquem a barbárie da MGF.
Destaco também o caso de uma médica obstetra na Guiné Bissau, não me lembro do nome, que conseguiu fazer milhares de partos em condições de segurança e higiene. Ou seja, quando a situação é tão extrema, quando os recursos são tão escassos, qualquer ajuda, qualquer formação que se dê, mesmo que pouca, faz toda a diferença numa comunidade.
Num plano ideal, como seria uma agenda global de direitos e saúde sexual e reprodutiva?
Seria uma agenda que permitisse o acesso a todos os cuidados de saúde às pessoas mais vulneráveis e garantisse que todos pudessem tomar opções conscientes e informadas. Isto implicaria gastar muito dinheiro no sistema educativo, no sistema de saúde e no local de trabalho (por via da saúde ocupacional, que é sempre desprezada).
Acha que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Cooperação Portuguesa têm estas questões como prioritárias ou podiam ser mais ambiciosos?
Nessa área temos que evoluir mais. Como sabe, no Governo anterior houve uma fusão entre o IPAD e o Instituto Camões, tendo-se desenvolvido uma estratégia para a cooperação, com qual acho que ninguém discorda, mas é preciso é operacionalizá-la. Muito positivo, nos últimos anos, foi orientar a estratégia para a cooperação para resultados. Por exemplo, na cooperação com os PALOP havia muitos programas que não tinham uma monitorização adequada, mas, agora, que temos esses mecanismos, temos de investir de forma seletiva naquilo que tem maior impacto. Penso que o Ministério dos Negócios Estrangeiros também está a falhar pela ausência de uma estratégia em relação aos ODS, particularmente no Objetivo 13 [tornar as cidades mais sustentáveis]. Sou vereador na Câmara Municipal de Cascais e gostaria que a cidade fosse das primeiras a assumir o interesse em cumprir esse objetivo 13 dos ODS. Mas estamos quase em Junho e ainda não há uma estrutura devidamente montada e organizada, quer a nível da nossa representação junto da ONU, quer a nível do nosso ministério cá. Existem algumas entidades e ONG que têm feito um esforço, mas acho que é exigível que o nosso Governo, que se comprometeu a cumprir os ODS, se comprometa também em termos de ação e não apenas de palavras. Espero que o MNE rapidamente desenvolva uma estratégia de implementação dos ODS.
Na Assembleia da República, quais têm sido as dificuldades (e oportunidades) para resolver as questões específicas de direitos humanos na área da saúde?
Ainda é cedo para falar deste mandato, mas no mandato anterior foram feitos esforços no sentido da sensibilização e formação dos profissionais de saúde, por exemplo para identificação de situações de violência doméstica. Acho que cada vez mais se compreende a proteção das meninas e das mulheres como uma força motriz para proteger toda uma sociedade, principalmente as suas franjas mais vulneráveis. Lembro-me que houve uma grande sensibilização dentro do Parlamento aquando da campanha do FNUAP e da P&D Factor contra os casamentos infantis, precoces e forçados; há uma abertura a nível parlamentar para discutir estes e outros temas, como a Mutilação Genital Feminina. Foram feitas conquistas, sem dúvida.
“A paridade natural tem de ser o nosso objetivo enquanto parlamentares. Porque só quando nós, detentores de cargos públicos, formos capazes de ser os agentes de mudança é que veremos a evolução em cascata para o seio das empresas e outras organizações”
E quais são os assuntos mais difíceis de debater no cenário parlamentar?
As quotas não foram um tema fácil. Assumo que era contra quando surgiram, porque tinha uma visão de meritocracia, que mantenho, mas comecei a compreender que vivíamos numa sociedade que não dava as mesmas oportunidades a homens e a mulheres com mérito. Hoje penso que as quotas foram fundamentais para a entrada das mulheres na política ativa, mas, mais de dez anos depois, penso que não é aceitável que continuemos apenas com a quota de 32%. Por que não evoluímos naturalmente para os 50%, se a ideia era precisamente permitir a evolução natural para a paridade absoluta? Acho que nós, legisladores, temos que parar para perguntar por que não fomos para além das quotas, por que é que a paridade absoluta não é uma realidade em Portugal, como é, por exemplo, no Canadá (e lá não há quotas). Estas são questões de enorme importância e que não vejo a subcomissão para a Igualdade a discutir. A paridade natural tem de ser o nosso objetivo enquanto parlamentares. Porque só quando nós, detentores de cargos públicos, formos capazes de ser os agentes de mudança é que veremos a evolução em cascata para o seio das empresas e outras organizações, que estão altamente masculinizadas.
É fundador do Creating Health – Research and Innovation Funding, um gabinete de apoio à captação de financiamento para a Investigação e Inovação em Saúde, a funcionar junto da Universidade Católica. Como estão a decorrer os trabalhos?
O Creating Health (CH) foi um sonho meu de jovem estudante, que surgiu quando comecei a perceber que os jovens investigadores, com ideias inovadoras, se viam barrados pela falta de financiamento. Esse sonho foi concretizado em Janeiro de 2015, com a fundação do CH. Uma vez que envolve dinheiros públicos, fiquei como fundador, não tenho qualquer ligação formal à instituição por força das minhas funções públicas, mas sei que mais de uma centena de entidades já recorrerem aos seus serviços e várias candidaturas já foram submetidas.
Está também muito ligado ao Livro Cidadania para a Saúde, que teve, aliás, apresentação na Assembleia da República. Para quando uma iniciativa legislativa para a criação de uma disciplina nas escolas que envolva as temáticas de direitos humanos, saúde e cidadania?
Na legislatura passada apoiei a proposta do meu partido de criação de um grupo parlamentar específico para a Educação para a Saúde, como de resto fizemos para o VIH/Sida. Penso que essa era a via ideal para gerar o consenso e tomar uma decisão a nível parlamentar, nem que fosse um projeto de resolução a nível de todos os partidos, para depois o Ministério da Educação implementar. Mas o PCP chumbou. Não compreendo. Nesse livro que refere demonstramos o impacto que a cidadania tem para a saúde comunitária, desde a década de 70 até hoje. Não podemos continuar a ignorar esta necessidade efetiva.
Como concilia a vida profissional e familiar? Que desafios encontra?
Através da conjugação de três fatores: estar profundamente apaixonado pelo que faço, ter uma família que me apoia e acreditar que estou a cumprir uma missão.
Quem é Ricardo Baptista Leite? |
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Natural de Toronto (Canadá), 35 anos, médico especialista em doenças infeciosas, professor universitário, vereador na Câmara Municipal de Cascais e deputado à Assembleia da República pelo PSD, neste momento a cumprir segundo mandato. No Parlamento, é membro efetivo da Comissão de Saúde, da Comissão de Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (CNECP) e vice-presidente do Grupo Parlamentar de Amizade Portugal-Canadá. Chegou a exercer as funções de vice-presidente da CNECP, coordenador do Grupo Parlamentar de Trabalho de Acompanhamento da Problemática do VIH-SIDA, membro do Grupo Parlamentar sobre População e Desenvolvimento, presidente do Grupo Parlamentar de Amizade Portugal-Canadá, coordenador de Saúde Pública no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, assistente Convidado na Nova Medical School, coordenador da Unidade sobre Saúde Sustentável na NOVA Information Management School e Senior Fellow na New Westminster College (Canadá). Fundou as Conferências do Estoril e o Creating Health. É um orador frequente nas cimeiras da OMS e em várias conferências internacionais sobre saúde pública. |