“A igualdade entre mulheres e homens é uma forma de vida”
- Data de publicação 08 março 2018
O papel da família é crucial para derrubar as desigualdades de género, ainda muito vincadas em quase todos os segmentos da vida. Educar os rapazes e as raparigas, desde muito cedo, para a igualdade entre mulheres e homens é uma necessidade e pode fazer toda a diferença se quisermos construir uma sociedade mais justa. Neste Dia Internacional da Mulher, ouvimos a opinião da jurista e ex-secretária de Estado para a Igualdade, Maria do Céu da Cunha Rego.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández
Acha importante as famílias educarem os filhos rapazes para a igualdade de género?
Junto-me a todas as pessoas que a consideram indispensável, se quisermos concretizar o limiar mínimo de justiça nas nossas sociedades. Porque em todos os grupos sociais a posição dos homens é, de facto, superior à das mulheres. Basta recorrer aos dicionários para concluir que, para o senso comum, ‘homem’, qualquer homem, é definido como o representante da humanidade...
Se não temos igualdade entre homens e mulheres é porque, apesar das leis, a educação que tivemos e que reproduzimos foi e é para a desigualdade: é desigual o que é dito ser “próprio” de rapaz ou de rapariga, são desiguais os brinquedos e as roupas que apelam a espaço e liberdade de movimentos ou a confinamento e contenção, são desiguais as tarefas que se ensinam, é desigual o reconhecimento e a recompensa, é desigual a tolerância que se concede ou a obediência que se exige, são desiguais as expectativas quanto a capacidades, possibilidades e futuro, são desiguais os encorajamentos à competição ou à paciência, à criatividade ou à repetição, são desiguais os limites e os efeitos da ousadia, é desigual o treino para a vida. Porque ainda se insiste em entender que a vida das mulheres e dos homens “tem que ser” desigual. Como se sexos diferentes implicassem “necessariamente” “destinos” desiguais. Como se o livre arbítrio não fosse, na matéria, uma bandeira...
Ou como se vivêssemos num tempo e num lugar em que a supremacia dos homens face às mulheres decorresse da lei ou fosse uma evidência a não carecer de demonstração.
Exato. Daí que, se quisermos viver em igualdade, teremos que educar quer os rapazes quer as raparigas para serem e se sentirem igualmente livres, com igual respeito pelos iguais direitos das outras pessoas, igualmente capazes de desenvolver plenamente as suas aptidões, de exercer as profissões que verdadeiramente escolherem e de cuidar autónoma e competentemente de si e das suas famílias que tiverem, se as tiverem. E temos que intervir no contexto, designadamente institucional, promovendo o que nos for possível.
Por que razão é igualmente importante envolver as raparigas nesta transformação? Para que não aceitem os papéis de subjugação da mulher, como no passado?
Uma sociedade que quer concretizar a igualdade entre mulheres e homens tem que educar para esse objetivo tanto as raparigas como os rapazes. E dessa educação terá que fazer parte quer recusa de aceitação de papéis de subjugação, quer a recusa da adoção de papéis de dominação. Através de violência ou sedução. Para que as crianças, adolescentes e jovens que vivem nessa sociedade aprendam que nem a submissão é um dever nem a dominação é um direito que decorram do sexo, mas que ainda são ‘impostos’ contra a lei por práticas sociais e culturais enraizadas, mas suscetíveis de mudança. À velocidade do nosso nível de exigência cidadã e do denominador comum do nosso querer.
“Uma sociedade que quer concretizar a igualdade entre mulheres e homens tem que educar para esse objetivo tanto as raparigas como os rapazes. E dessa educação terá que fazer parte quer recusa de aceitação de papéis de subjugação, quer a recusa da adoção de papéis de dominação.”
Como é que se educam as crianças para a igualdade de género?
Como em tudo, é a coerência entre o discurso e a prática de quem educa que favorece a adesão a objetivos e a rotinas que se pretende que as crianças adotem. Mas porque a igualdade entre mulheres e homens não é ainda a situação dominante na nossa organização social, há que ajudar a desconstruir mitos e a desenvolver noções de justiça, criar condições para que seja possível ver para além do olhar, abrir tempo e espaço de reflexão para o desenvolvimento da consciência crítica, encorajar a intervenção persistente para que as atitudes se vão alterando e todas e todos possamos viver melhor. A igualdade entre mulheres e homens é uma forma de vida, que se aprende tanto melhor quanto mais consistente e eficaz for o desempenho no mesmo sentido das várias fontes de influência e de aprendizagem, incluindo com particular destaque, primeiro a comunidade educativa e depois o mundo do trabalho.
igualdade de género, apesar de tudo, provoca menos reações negativas do que o feminismo, porque ainda há quem considere que feminismo é a versão feminina de machismo. São termos com significados iguais ou distintos? E se se fala tanto de feminismo, por que razão ainda há muitos jovens que não sabem o que isso é?
Ainda que tenha partido da reivindicação de igualdade para as mulheres de direitos que não lhes eram reconhecidos e hoje são, na lei ainda que nem sempre na prática, o conceito de feminismo tem atualmente várias interpretações e várias correntes, que podem ser conhecidas e analisadas em obras também de autoria portuguesa e se vêem refletidas no trabalho de diversas Organizações Não Governamentais. De qualquer modo feminismo não corresponde à “versão feminina do machismo”, uma vez que, este defende a manutenção dos privilégios masculinos, apesar de eventuais variantes mais ou menos sofisticadas.
Em vez de feminismo, prefere falar de igualdade entre mulheres e homens.
Prefiro. Igualdade entre mulheres e homens na lei e na vida, no estatuto, no tratamento, nas oportunidades, nos resultados do desenvolvimento humano, porque me parece a expressão mais simples e mais clara para evidenciar que a sua promoção é também uma obrigação jurídica do Estado português, dos outros 188 Estados que são parte na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da União Europeia enquanto tal – a exigir a transformação da organização social com implicações na situação quer das mulheres quer dos homens, anulando o peso e as consequências nefastas dos estereótipos que nuns casos oprimem as mulheres e noutros oprimem os homens. Como revelam as estatísticas das várias assimetrias que ainda estruturam o modo como vivemos. Como que a Convenção mencionada exija que “Os Estados Partes tom(e)m todas as medidas apropriadas para modificar os esquemas e modelos de comportamento sócio cultural dos homens e das mulheres com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas costumeiras, ou de qualquer outro tipo, que se fundem na ideia de inferioridade ou de superioridade de um ou de outro sexo ou de um papel estereotipado dos homens e das mulheres.”
Enquanto vivermos numa sociedade patriarcal, dificilmente haverá mudanças. No entanto, existem sinais de que já não é vincadamente patriarcal. Concorda?
Sim. Parece-me que a nossa sociedade vai tentando progredir no sentido de já não se querer reconhecer como sendo patriarcal. Diversos instrumentos, designadamente jurídicos, têm por objetivo a igualdade substantiva entre as mulheres e os homens. Como os que visam contrariar os estereótipos que “atribuem” a homens e a mulheres “papéis sociais” desiguais, pretendendo equilibrar a respetiva participação nas áreas da vida em que se verificam assimetrias significativas. É, por um lado, o caso da participação política, em que a partir da Lei Orgânica n. 3/2006, de 21 de Agosto, se verificou o maior crescimento de sempre no número de mulheres deputadas à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu, e será por certo o caso da participação nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa, por efeito da Lei n. 62/2017, de 1 de agosto, que entrou em vigor no início de 2018. Mas é também, por outro lado, o caso do aumento da participação dos homens nas responsabilidades da vida familiar, a qual, por melhorias legislativas introduzidas desde o reconhecimento, em 1999, de direitos individuais e intransmissíveis de apoio à paternidade aquando do nascimento de filho ou filha, quebrando o estereótipo de que a procriação é uma responsabilidade “inerente” às mulheres, vem apresentando resultados cada vez mais significativos e encorajadores.
Quem é Maria do Céu da Cunha Rego? |
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Jurista, com trabalho profissional e cívico no domínio das migrações internacionais, do apoio às comunidades portuguesas no estrangeiro e da igualdade de homens e mulheres. Nesta área, exerceu funções de representante de Portugal no Conselho de Administração e no Fórum de Peritas e Peritos do Instituto Europeu para a igualdade de género - EIGE (2007-2011), Secretária de Estado para a Igualdade (2001/02), Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego - CITE (1997/2001) e Vice-Presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres – CIDM (1991/92), sendo atualmente membro do Conselho Técnico-Científico do Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e igualdade de género - CIG. Foi técnica e dirigente na Administração Pública - Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto do Emprego e Formação Profissional e Secretaria Geral da Presidência da República. É formadora, autora e coautora de referenciais de formação no domínio dos Direitos Humanos, igualdade de género e Migrações Internacionais, oradora em seminários e outras iniciativas, autora de artigos em revistas da especialidade sobre temas da igualdade de género, e membro de diversas organizações não-governamentais que desenvolvem atividade em várias dimensões da área da igualdade de homens e mulheres. |