Entrevista

. “As mulheres migrantes contribuem para a natalidade em proporção superior às mulheres portuguesas.”

MartaBronzin 150x180Portugal acolhe atualmente 421 mil migrantes, vindos, por ordem de maioria, do Brasil, Cabo Verde, Ucrânia, Roménia, China, Reino Unido, Angola, França, Guiné Bissau, Itália, entre outros países). Cá, muitos, especialmente as mulheres, encontram dificuldades sobretudo no acesso à saúde, à educação e à justiça. Falamos com Marta Bronzin, chefe de missão em Portugal da OIM – Organização Internacional das Migrações, que nos retrata a realidade nacional das migrações.

Entrevista: Carla Amaro
Fotografia: Tiago Lopes Fernández

O que é uma pessoa migrante?

Não existe uma definição internacional universalmente aceite de “migrante”. A OIM define migrante como a pessoa que atravessa uma fronteira internacional ou que se desloca dentro de um Estado da sua residência habitual, independentemente do estatuto da pessoa; se o movimento é voluntário ou involuntário; das causas da deslocação; ou a duração da estadia.

O que distingue migrante de refugiado?

Enquanto para o termo “migrante” não existe uma definição universal, a Convenção de Genebra de 1951 estabelece que um refugiado é alguém que “tem um receio fundado de ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse receio, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido receio, não quer voltar a ele”. Serão então estas razões específicas que justificaram a saída do País que, se verificadas, permitirão a atribuição do estatuto de refugiado a uma determinada pessoa.

Quantos migrantes/refugiados existem atualmente em Portugal?

De acordo com o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (RIFA)de 2017, encontravam-se nesse ano a residir em Portugal 421 711 pessoas não nacionais. Nesse mesmo ano, Portugal registou 1.750 pedidos de asilo, reconheceu 119 refugiados e atribuiu o estatuto de proteção subsidiária a 381 pessoas.

São de que países? E em que percentagens?

De acordo com os dados do SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, as principais dez nacionalidades de estrangeiros são o Brasil (20,3%), Cabo Verde (8,3%), Ucrânia (7,7%), Roménia (7,3%), China (5,5%), Reino Unido (5,3%), Angola (4%), França (3,6%), Guiné Bissau (3,6%), Itália (3,1%), destacando o aumento de mais de 50% desta última nacionalidade, e de mais de 30% de estrangeiros provenientes da França. Conforme consta no RIFA – Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo, os estatutos de refugiado foram reconhecidos sobretudo a nacionais de países asiáticos e africanos e a proteção subsidiária foi concedida a nacionais de países asiáticos, europeus e africanos.

A crise de refugiados dos últimos anos mudou o paradigma das migrações?

Em termos globais, de acordo com estimativas das Nações Unidades, existem 68.5 milhões de pessoas forçadas a deslocar-se, das quais três milhões um pedido para obter proteção internacional. Mas há que ter em consideração que a migração é um fenómeno complexo e que, no mundo, atualmente existem cerca de 258 milhões de migrantes internacionais, a maior parte dos quais migram de forma segura, regular, e por sua vontade.

Portugal é um desses casos...

Sim. Em Portugal, muito embora haja um aumento de pessoas que necessitam de proteção internacional, existem mais de 421.000 migrantes. O maior número de estrangeiros residentes no País não é de beneficiários de proteção internacional mas de pessoas que procuram Portugal por vários motivos, como trabalho, familia, estudo ou investimento.

Onde regiões do País estão mais concentrados?

No que diz respeito a estrangeiros residentes sem proteção internacional, conforme consta do RIFA, a maior parte situa-se no litoral, estando 68% registada nos distritos de Lisboa, Faro e Setúbal. Já os beneficiários de proteção internacional, e devido a uma política descentralizada de acolhimento, podem encontrar-se por todo o país.

Procuram o quê, cá? E fogem de quê, nos seus países de origem?

Vai depender de quem se fala: se estamos a falar de pessoas que necessitam de proteção internacional, podem, por exemplo, fugir de conflitos armados, de perseguição, instabilidade e insegurança, etc.. Se estivermos a falar de migrantes que não caem no escopo de pessoas que carecem de proteção internacional, conforme está definida, a grande razão para a saída dos seus países centra-se em motivos económicos e na procura por uma vida melhor.

“O acesso à saúde, à educação e à justiça estão legalmente garantidos. Existe uma preocupação pública clara no sentido de promover o acesso e disseminar informação sobre estes direitos”

Como avalia a situação das pessoas migrantes em Portugal?

De acordo com o Índice de Políticas de Integração de Migrantes (MIPEX), Portugal é o segundo melhor país a receber e a integrar migrantes, o que não significa que na prática não existam desafios e barreiras.

Considera que têm fácil acesso à saúde, à educação e à justiça?

O acesso à saúde, à educação e à justiça estão legalmente garantidos. Existe uma preocupação pública clara no sentido de promover o acesso e disseminar informação sobre estes direitos, como demostram algumas medidas específicas do Plano Estratégico para as Migrações, ou a assistência jurídica oferecida através do Gabinete Jurídico dos CNAIMs. No que diz respeito à saúde em particular, a OIM tem trabalhado em estreita colaboração com a DGS e com as cinco Administrações Regionais de Saúde para reforçar a capacidade de resposta dos serviços de saúde às necessidades de acesso e utilização dos cuidados por parte dos migrantes e, desta forma, promover o acesso equitativo à saúde.

No seu entender, quais são as principais dificuldades/problemas das comunidades migrantes em Portugal?

Em termos gerais, comparado com outros contextos, o percurso de integração dos imigrantes em Portugal é bastante facilitado. Por exemplo, a proximidade linguística das principais comunidades vindas de Países de Língua Portuguesa facilita muito o processo, uma vez que a língua é um fator essencial para a integração e pode representar uma grande barreira. Por outro lado, algumas das dificuldades podem estar ligadas ao mercado de trabalho, nomeadamente em setores instáveis e pouco regulados, podendo favorecer situações de exploração.

Há uma tendência para se pensar nas migrações sem atender às diferenças de género, o que resulta muitas vezes em descriminações conttra as mulheres. Em Portugal, em que áreas isso mais acontece?

O que a experiência nos diz é que o género molda de forma complexa a experiência migratória em todas as suas etapas, determinando as suas causas e em muitos casos as suas consequências. Por isso, as aspirações, as necessidades, as dificuldades, e as razões da migração das mulheres devem ser tidas em conta na definição das políticas migratórias. Muitas vezes, as mulheres migrantes ficam duplamente estigmatizadas por serem mulheres e por serem imigrantes. Outros fatores de risco podem depender do tipo de emprego, muitas vezes não qualificado, mal pago, e em setores pouco regulamentados, ou das dificuldades de acesso aos serviços básicos, como os cuidados de saúde. Para que possamos conhecer melhor a realidade e criar respostas adequadas, é fundamental, por um lado, desagregar os dados migratórios por sexo e, por outro lado, desagregar os dados de género de acordo com o estatuto migratório.

As unidades de Saúde Familiares estão preparadas para receber imigrantes em situação irregular?

Existe uma crescente diversidade na população atendida pelos serviços de saúde e esta diversidade é visível no dia a dia dos serviços que inevitavelmente têm que adaptar a sua capacidade de resposta. Já muito trabalho foi feito e existem práticas interessantes no terreno, contudo, destacaria três percursos que me parecem complementares e importantes: o reforço das competências individuais dos profissionais de saúde relativamente à saúde dos migrantes e o direito de acesso aos cuidados; a adaptação da capacidade de resposta dos serviços a nível organizacional, por exemplo através da institucionalização da figura de mediadores culturais; a recolha e análise regular de dados sobre o acesso e a utilização dos serviços por parte da população migrantes.

No último relatório Migrant Integration Policy Index (Mipex), de 2014, onde se mede as políticas de integração em 38 países, incluindo a União Europeia, a Saúde era o indicador em que Portugal estava pior. Tem a mesma percepção?

Sim, o indicador de integração na área da saúde é o mais baixo. É um facto.

Todas as grávidas estão isentas das taxas moderadoras. Mas há imigrantes sem visto de residência que se queixam de barreiras de acesso a consultas e exames. Tem ideia se os casos têm aumentado?

Embora a OIM tenha conhecimento indireto de casos pontuais deste tipo, não temos dados concretos a esse nível. A formação transversal dos profissionais de saúde nos cuidados primários é, como disse, fundamental para reduzir possíveis barreiras no acesso. O Projeto “Promover a Integração através da equidade em saúde”, que a OIM implementou este ano em parceria com a DGS e as diferentes Autoridades Regionais de Saúde, previu a sensibilização dos técnicos para o enquadramento jurídico de acesso aos cuidados.

Acha que Portugal devia ser mais generoso nas metas de acolhimento de migrantes e refugiados? Ou bastava que aumentasse o nr. de legalizações e autorizações de residência?

Houve um aumento muito significativo do compromisso de Portugal na receção de refugiados através do programa de reinstalação, com um número previsto de 1010 refugiados até 2019. No âmbito do programa de recolocação, Portugal foi entre os primeiros seis Países que recolocaram mais pessoas desde a Itália e a Grécia. Estes parecem ser compromissos muito positivos. Relativamente ao acolhimento de migrantes, o sistema migratório é bastante flexível, no sentido de que a emissão de vistos ou autorização de residência depende da procura de mão de obra estrangeira no mercado de trabalho, ou seja, da oferta de contratos de trabalho, ou de uma promessa de contrato de trabalho.

As mulheres migrantes têm contribuído para a reposição demográfica em Portugal?

Sim, de acordo com o Relatório Estatístico Anual do Observatório das Migrações, as mulheres migrantes contribuem para a natalidade em proporção superior às mulheres Portuguesas. As migrações podem contribuir para abrandar o envelhecimento da população, mas não podem representar a única solução.

Acha que as migrações finalmente ocupam o lugar que merecem na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável?

Sem dúvida. É a primeira vez que as migrações entram de forma transversal num documento político desta dimensão associado ao desenvolvimento. Agora são formalmente reconhecidas como um fator incontornável para o desenvolvimento global e este é um passo importantíssimo. Existe uma meta específica para as migrações (10.7), mas é fundamental não esquecermos que as migrações são relevantes para uma série de outras metas (como por exemplo a 3.8 sobre a cobertura universal de saúde). A Agenda 2030 é também um quadro de referência para outro processo, o Pacto Global para as Migrações. Portanto este é um tema prioritário a nível global. O desafio consistirá na monitorização dos progressos para atingir as metas e os compromissos definidos no âmbito destes processos.

 
Quem é Marta Bronzin?

MartaBronzin 200x200Marta Bronzin assumiu a função de Chefe de Missão da OIM Lisboa em 2010. Começou a trabalhar na OIM em 2006 com funções de coordenação e desenvolvimento de projetos com enfoque em diversas áreas, incluindo migração laboral, migração e desenvolvimento, retorno voluntário e gestão das migrações. Antes da colaboração com a OIM, trabalhou na Comissão Europeia, DG RELEX; Escritório na UE da Amnistia Internacional, e no Instituto Dinamarquês para os Direitos Humanos. Entre 2001 e 2003 trabalhou na Itália como consultora na assistência técnica aos Fundos Estruturais. Marta Bronzin nasceu na Itália e é licenciada em Direito pela Universidade de Bologna, com Pós-Graduação em Direito Europeu pela Universidade de Sorbonne, Paris e Mestrado Europeu em direitos humanos e Democratização (EMA).

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