É preciso salvar as meninas do casamento precoce e forçado
- Data de publicação 13 novembro 2015
São demasiadas as meninas a quem roubam a infância. Todos os anos, 15 milhões são forçadas a casar antes dos quinze anos. Os efeitos dos casamentos infantis são devastadores na vida destas raparigas e, em muitos casos, fatais. Além de estarem na origem de um elevado número de gravidezes na adolescência, estão associados ao parto obstruído, à fístula obstétrica e à Mutilação Genital Feminina. Estas são algumas das conclusões da Folha de Dados sobre Casamentos Infantis, Precoces e Forçados e outras Práticas Nefastas, de Carla Martingo para a ONGD portuguesa P&D Factor e P&D Factor Moçambique.
Texto: Carla Amaro
Fotografia: Casamento de Roukiatou Youssoupha Diallo foi cancelado, e ela autorizada a permanecer na escola. Com funcionárias do UNFPA em Debere Talata, Burkina Faso. © UNFPA Burkina Faso.
“Não podemos permitir que uma em cada três raparigas case antes de completar os 18 anos de idade.” O apelo de Babatunde Osotimehin, Director Executivo do UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População) está implícito em oito dos dezassete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para os próximos 15 anos, mas, mais importante do que o compromisso, é a ação. De contrário, o mundo continuará a assistir impávido e sereno às uniões forçadas entre meninas e homens adultos, negociadas pelas próprias famílias das meninas. É a pobreza extrema e a marcada desigualdade de género que a isso obriga.
Apesar de ser mais comum no Sul da Ásia e na África Subsaariana, o casamento infantil, precoce e forçado acontece em todo o mundo, mas é mais evidente nas áreas rurais em países de baixo rendimento. Noutras zonas da Ásia, Médio Oriente e Norte de África, a união ocorre quando se atinge a puberdade ou pouco depois, funcionando sempre como uma norma social enraizada numa profunda desigualdade de género. Em zonas da África Oriental e também do Sul da Ásia é usual o casamento ocorrer antes da puberdade.
Apesar de em alguns países estar a verificar-se o aumento da idade do casamento e a imposição de uma idade legal mínima para o casamento, esta prática pode, no entanto, ocorrer antes dos quinze anos de idade na Etiópia e em algumas zonas da África ocidental, onde o casamento tem lugar por volta dos 7 anos de idade, no Bangladesh, onde 45% das jovens mulheres entre os 25 e os 29 anos de idade casaram-se aos 15 anos, e no estado indiano de Madhya Pradesh, onde perto de 14% das raparigas casaram entre os 10 e os 14 anos de idade.
Sem escolha
Seja em que região do globo for, para as meninas que são forçadas a casar não há outra escolha senão transitar da casa dos pais para a dependência total dos maridos. E se, para os pais, a entrega das filhas a homens mais velhos (já casados ou ainda solteiros) é uma forma de proteger e garantir o futuro das mesmas (e dos próprios), a verdade é que à luz do bom-senso, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção dos Direitos da Criança, da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW e, mais recentemente, da Convenção de Istambul, os casamentos infantis, precoces e forçados é uma prática nefasta que viola os direitos humanos. Como tal, devem ser combatidos.
O problema é que não basta vontade política. É preciso desenvolver um trabalho de sensibilização junto das famílias que ‘atiram’ as suas filhas para o casamento precoce, sob pena de a lei ditar uma coisa e a prática ditar outra. Se não se fizer nada, “nos próximos dez anos, mais 142 milhões de meninas tornar-se-ão noivas, estimando-se que, até 2050 mais 1.2 mil milhões de meninas estarão casadas”, como alerta a investigadora que fez este levantamento para a P&D Factor, Carla Martingo.
Casar na infância ou na adolescência tem consequências sociais e de saúde graves para as raparigas. Sociais, porque vêem coartada a possibilidade de ir para a escola, trabalhar e alcançar a independência financeira, ficando à mercê dos maridos, “isoladas socialmente e privadas dos seus direitos fundamentais à saúde, educação e segurança”. Do ponto de vista da saúde, as implicações podem ser fatais ou provocarem marcas e debilidades irreversíveis. A falta de preparação física, psicológica e emocional para terem relações sexuais e para serem mães e mulheres coloca-as em situações de extrema vulnerabilidade: “Estão em maior risco de sofrerem de complicações na gravidez e parto, serem infetadas com o VIH/sida e serem objeto de várias formas de violência como a sexual e a violência doméstica. Por outro lado, o início precoce da atividade sexual coloca-as em risco mais elevado de complicações na gravidez, como o parto obstruído”, explica a investigadora na área dos casamentos infantis e outras práticas nefastas.
Parto obstruído, fístula obstétrica, MGF
Em muitos casos, o parto obstruído leva à fístula obstétrica, sendo uma das principais causas dos elevados níveis de mortalidade e morbilidade materna e até infantil. Para Carla Martingo, que além de investigadora é vice-presidente da direção da P&D Factor, existe uma forte correlação entre a idade da mãe e a mortalidade e morbilidade materna: “As raparigas entre os 10 e os 14 anos de idade têm maior probabilidade de morrer durante a gravidez e no parto do que as mulheres com idades entre os 20 e os 24 anos, probabilidade esta que duplica entre os 15-19 anos de idade, acontecendo a grande maioria das mortes dentro do casamento”. De resto, é justamente o que demonstram estudos realizados nos Camarões, Etiópia e Nigéria, segundo os quais “a mortalidade materna entre as adolescentes com idade inferior aos 16 anos é seis vezes superior do que a registada em mulheres entre os 20 e os 24”.
Como agravante, o problema dos casamentos precoces/forçados é, frequentemente, associado ao problema da Mutilação Genital Feminina (MGF). As estimativas apontam para a existência de 100 a 140 milhões de meninas e crianças já submetidas a uma ou mais formas de MGF – só em África, estão em risco três milhões de meninas por ano, o que equivale a entre seis mil a oito mil por dia. Isto, apesar das implicações para a saúde física e psicológica das vítimas, que vão desde a dor intensa devido ao corte de terminações nervosas e de tecido genital, passando por infeções várias (pélvicas crónicas, trato urinário, aparelho reprodutivo e sexualmente transmissíveis como as hepatites B e C e o VIH/sida), podendo culminar na morte.
Tal como os casamentos infantis, precoces e forçados, também a Mutilação Genital Feminina está escudada na tradição e enraizada em profundas desigualdades de género, em papéis e hierarquias sociais rígidas que conferem um menor estatuto e poder de participação e de decisão às mulheres. Estando identificada em cerca de 40 países, 28 dos quais no continente africano, está presente por exemplo na Austrália, Nova Zelândia, Canadá, EUA, Europa (Dinamarca, Suécia, França, Itália, Holanda e Reino Unido), no Médio Oriente (Bharain, Qatar, Oman, Iémen, Emirados Árabes Unidos e algumas zonas da Arábia Saudita e Mauritânia), Indonésia, Malásia e Paquistão (algumas comunidades muçulmanas), Índia (seita dos Daudi Bhora) e na América Central e do Sul (em certos grupos indígenas).
Uma geração para acabar com as uniões forçadas e a MGF
A nova agenda de desenvolvimento, que sucedeu aos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio já não diz respeito apenas a determinados países, ditos em desenvolvimento. Integra todos Estados que, até 2030, se comprometem a erradicar a pobreza extrema, a promover a prosperidade e o bem-estar das pessoas e a proteger o meio ambiente. Alicerçada em cinco áreas cruciais - pessoas, planeta, prosperidade, paz e parceria - a “Agenda do Povo”, como lhe chamou o secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki Moon, zela pelo empoderamento e educação das raparigas e pelo fim de todas as formas de violência com base no género, nomeadamente da Mutilação Genital Feminina e dos casamentos infantis e forçados – este compromisso está enquadrado, de forma direta, no Objetivo 5 dos ODS (Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas).
No entanto, e considerando vários fatores, entre os quais o impacto negativo que os casamentos infantis e forçados e a MGF têm sobre as pessoas, comunidades e países, nos seus sistemas (protecção social, saúde e educação), suas economias e desenvolvimento, o fim destas práticas nefastas enquadra-se de forma indireta em mais sete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Objetivos 2, 3, 4, 8,10 e16). Porque talvez assim, os países onde se mutilam os genitais femininos e se força as raparigas a casar, por força da tradição, da pobreza ou de outra desculpa qualquer, abracem de uma vez por todas o apelo da rede internacional Girls Not Brides: acabar com o casamento infantil numa geração. Também a P&D Factor, parceira e membro da Girls Not Brides, acredita que basta o tempo de uma geração “para acabar com os Casamentos Infantis, forçados e precoces bem como da MGF. Haja vontade política, também refletida nas opções e orçamentos. É também para isso que existimos e trabalhamos”, garante Carla Martingo.
Consulte estes e outros dados, aqui, no site da P&D Factor.
Países com as taxas mais elevadas de casamento infantil *
1 Níger 76%
2 Chade 68%
3 República Centro Africana 68%
4 Bangladesh 65%
5 Mali 55%
6 Sudão (sul) 52%
7 Burkina Faso 52%
8 Guiné-Conacri 52%
9 Malawi 50%
10 Moçambique 48%
11 Índia 47%
12 Somália 45%
13 Serra Leoa 44%
14 Nigéria 43%
15 Zâmbia 42%
16 Nepal 41%
17 Madagáscar 41%
18 Eritreia 41%
19 República Dominicana 41%
20 Etiópia 41%
* Prevalência do casamento infantil = percentagem das mulheres com 20-24 anos de idade que casaram antes de completar os 18 anos de idade (UNICEF State of the World’s Children, 2014). Estimativas baseadas em MICS, DHS e outros inquéritos nacionais, relativas ao período 2002-2011.
Tome nota
. Em todo o mundo, estima-se que 700 milhões de mulheres casaram antes de completar o 18.º aniversário, enquanto cerca de 250 milhões (1 em 3) o fez antes dos 15 anos.
. 67 milhões de raparigas com menos de 18 anos são forçadas a casar e 1 em cada 9 casará antes dos 15 anos, com a percentagem a rondar os 42% no continente africano.
. Cerca de 1/3 das mulheres entre os 20 e os 24 anos de idade nos países em desenvolvimento casaram-se na infância.
. Em cada ano, 15 milhões de raparigas casam-se na infância;
. Regra geral, as raparigas casam com homens mais velhos: na Mauritânia e na Nigéria, por exemplo, mais de metade das adolescentes entre os 15 e 19 anos de idade casaram-se com homens com 10 ou mais anos do que elas.
. A maior parte das gravidezes na adolescência (90%) ocorrem dentro do casamento;
. As complicações na gravidez e parto estão entre as maiores causas de morte entre as raparigas entre os 15 e os 19 anos de idade em países de baixo e médio rendimento.
. Os rapazes também são afetados – atualmente, 33 milhões dos homens casaram antes dos 15 anos de idade e 156 milhões antes dos 18 anos.
. Se não se fizer nada, nos próximos 10 anos, mais 142 milhões de meninas tornar-se-ão noivasi, estimando-se que, até 2050 mais 1.2 mil milhões de meninas estarão casadas.