"(...) muita da realidade que conhecemos vai mudar. Cabe-nos garantir que muda para melhor."
- Data de publicação 04 maio 2020
Sandra Cunha*
P&D: De que modo a Pandemia COVID 19 alterou a dinâmica Parlamentar?
SC: A atividade parlamentar não foi suspensa, está a funcionar, com condicionamentos no respeito pelas medidas de segurança que a pandemia da Covid19 nos impôs. Os plenários funcionam, preferencialmente, com um quinto dos deputados ou metade mais um em dia de votações. As comissões parlamentares continuam a realizar-se à distância por meio de videoconferência ou mesmo presencialmente, mas com menos deputados presentes. O mesmo acontece com as audições a membros do governo. O Bloco de Esquerda continua a realizar as suas reuniões do grupo parlamentar por videoconferência. Os restantes trabalhos, relativos ao decorrer de iniciativas legislativas, como o funcionamento de grupos de trabalho e audiências a entidades e pessoas externas, foram, na maior parte dos casos, suspensas, mas retomarão a breve trecho, com as devidas medidas de segurança.
P&D: Enquanto Parlamentar quais têm sido as suas principais atividades e focos de reflexão e ação?
SC: Enquanto deputada, a principal preocupação prende-se com o acompanhamento da evolução da pandemia, em especial com as medidas para o seu combate, tanto a nível nacional como local, mas também com o acompanhamento das medidas de combate à crise económica e social, dando especial atenção às situações de abusos laborais, emergência social e ao problema da violência contra as mulheres e da violência doméstica.
Mais especificamente, para além do empenho de todos os deputados do Bloco de Esquerda na recolha de testemunhos e denúncias de despedimentos e abusos laborais e da sua canalização para a plataforma despedimentos.pt, tem sido dada especial atenção às condições de operacionalidade dos transportes coletivos de passageiros, à capacidade de resposta dos serviços de saúde, ao acompanhamento da situação nos lares de terceira idade, às medidas de resposta à crise social, desenvolvidas pelas autarquias, em especial as direcionadas ao apoio a situações de emergência social e de maior vulnerabilidade.
No distrito de Setúbal, pelo qual fui eleita, esta articulação tem sido feita com os eleitos locais e com os militantes e ativistas do Bloco de Esquerda. Procurei ainda acompanhar a situação dos animais acolhidos em canis e associações de proteção a animais de rua. A análise da situação permitiu-nos elaborar propostas concretas, nas várias áreas mencionadas e adaptadas à realidade de cada concelho, que apresentámos aos executivos camarários.
P&D: Partindo do pressuposto “Não deixar ninguém para trás”, que leitura faz das respostas sociais e políticas que estão a ter lugar e quais as necessidades a que importa reforçar a resposta?
SC: Se a resposta à crise sanitária foi uma resposta forte e imediata por parte do governo português, o mesmo não pode ser dito relativamente à resposta à crise económica e à paralisação de setores importantes da economia.
O regime de baixos salários e pensões em Portugal, a precariedade laboral, a crise na habitação e a fragilidade dos serviços públicos concorreram para transformar as medidas de contenção da pandemia em emergência social.
Faltaram medidas de proteção da economia através da manutenção dos empregos e da proteção dos salários, medidas para o reforço do Serviço Nacional de Saúde e medidas de apoio aos grupos mais vulneráveis da população.
Entres essas medidas, encontra-se a proibição dos despedimentos e a garantia do pagamento integral de salários. Esta deveria ter sido condição obrigatória para a atribuição de qualquer apoio às empresas. Ao invés, temos grandes empresas que sem necessidade foram as primeiras a recorrer ao lay-off, depauperando a Segurança Social, ou que distribuíram dividendos de milhões de lucros pelos acionistas enquanto despediam trabalhadores, na sua maioria precários.
No plano da resposta sanitária, faltou acionar a requisição dos grupos privados de saúde que não hesitaram em encerrar hospitais ou em exigir pagamentos avultados ao Estado, em caso de hospitalização de doentes com Covid-19.
O objetivo de não deixar ninguém para trás exigiria ainda uma atenção redobrada aos grupos mais vulneráveis da sociedade. Não é verdade que a crise pandémica afete todos da mesma forma. Se o vírus não escolhe idades, género, classe social, etnias ou cores de pele, as condições de partida que cada um tem para fazer face a esta doença e à crise económica que provocou não são as mesmas e ditam desfechos diferentes.
Falo daqueles que não têm casa para cumprir a obrigação de isolamento ou daqueles que, mesmo tendo casa, não reúnem as condições básicas para garantir o isolamento e confinamento em segurança. Mais uma vez, a requisição dos privados, teria feito a diferença, desde logo a requisição de hotéis e habitações turísticas, entretanto vagos, para alojamento de emergência. Entre os mais vulneráveis contam-se ainda os idosos acolhidos em lares que não reúnem condições para fazer face a uma doença com uma carga tão agressiva de contágio e letalidade, especialmente neste grupo de especial risco.
Por fim, importa ainda referir que esta crise carrega uma importante dimensão de género que teria exigido políticas com perspetiva de género. As mulheres são as principais cuidadoras e maioritárias nos setores da Saúde ou dos lares de terceira idade, encontrando-se por isso, mais expostas. A maior parte das famílias monoparentais, particularmente vulneráveis às consequências do isolamento social ou da insegurança económica, são constituídas por mulheres. São também mulheres a esmagadora maioria das vítimas de violência nas relações de intimidade, ficando, sob confinamento, mais expostas e vulneráveis. O impacto será ainda mais profundo nas pessoas que, à condição de género, somam discriminações em função da etnia, idade, deficiência, orientação sexual, migrantes ou outras.
P&D: Estamos a viver um momento particular relativo à participação pública, ao exercício da cidadania, visibilidade e contributo dessa mesma participação pelas OSC que não estão diretamente envolvidas nas respostas de emergência. Como vê este momento e de que modo prevê esta participação após o Estado de Emergência?
SC: Queremos todos que a vida regresse o quanto antes à normalidade ou pelo menos, a algo o mais parecido possível à normalidade. Essa transição terá de ser feita com cuidado e precaução. As atividades desenvolvidas por grande parte das OSC, ainda que não diretamente envolvidas na resposta à emergência pandémica, são atividades essenciais para a vida em sociedade e tantas vezes para a defesa e proteção de Direitos Fundamentais. A retoma das atividades terá de ser adaptada obviamente às regras de segurança e proteção de um inimigo invisível e que permanecerá entre nós durante ainda algum tempo. Essa retoma deve, na nossa perspetiva, ser alvo de medidas e apoios específicos, especificamente concebidos e direcionados às diferentes áreas de intervenção.
P&D: Há países onde em presença dos efeitos da Pandemia COVID 19, incluindo o encerramento das fronteiras, o impacto económico, o confinamento social, está a ter lugar uma “caminhada” quase silenciosa de movimentos e iniciativas anti Direitos Humanos nomeadamente, Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, Igualdade de Género, Migração, entre outras. Enquanto deputada como está a acompanhar estas situações e o impacto em Portugal?
SC: Movimentos conservadores, autoritários e movimentos da extrema-direita aproveitam sempre as crises, independentemente da sua natureza, para forçar o seu caminho de obscurantismo, de ataque aos direitos laborais e individuais Não seria expectável que fosse diferente com esta nova realidade. A crise social e económica que a crise sanitária trouxe consigo oferece o terreno perfeito para aprofundar assimetrias, nacionais e transnacionais, para fomentar as desigualdades e promover discriminações. A desigualdade de género é a arma de excelência do capitalismo e do patriarcado. Enfraquecer ou limitar os direitos Sexuais e Reprodutivos, os direitos das mulheres, dos migrantes, o direito à Educação ou à Saúde, no fundo, aprofundar as divisões sociais garante as condições perfeitas para “reinar” e para cumprir o objetivo do capitalismo e do conservadorismo.
Por isso, a defesa da liberdade e da igualdade não pode ter descanso. Esta crise teve o mérito de mostrar que a existência de um Estado Social forte, de um Serviço Nacional de Saúde, de uma Escola Pública, são condições fundamentais para, enquanto sociedade, fazermos face a uma pandemia como a que nos assolou. Serviu para mostrar que os privados são os primeiros a fugir às suas responsabilidades e que a solidariedade e o esforço conjunto fazem a diferença.
Este terá de ser o espírito com que devemos e teremos de responder aos ataques aos direitos humanos, aqui, e a nível mundial. A guerra não será fácil, mas é fundamental não baixar os braços e afirmar a igualdade como baluarte da liberdade.
P&D: De que modo está o Parlamento e a Deputada a acompanhar a situação de programas e iniciativas de Educação para a Saúde, Educação sobre a Cidadania e Igualdade, Educação para o Desenvolvimento e Educação Sexual Compreensiva?
SC: Tenho acompanhado algumas adaptações criativas em vários países, por parte, maioritariamente de Organizações Não Governamentais que procuram cumprir o mantra de “ninguém fica para trás”, por exemplo, através da adaptação e tradução de materiais de informação a comunidades indígenas no Brasil ou comunidades migrantes em vários países, a elaboração de campanhas de sensibilização para a violência doméstica ou sexual, a construção de campanhas de solidariedade direcionadas a comunidades específicas ou grupos vulneráveis, que são, no fundo, a concretização de tantos dos eixos da educação para a cidadania e igualdade, Educação para a Saúde Sexual e Reprodutiva ou Educação para o Desenvolvimento.
Contudo, a cooperação internacional nestas matérias parece encontrar-se suspensa ou pelo menos, fortemente diminuída, assim como a atenção dada a estas matérias em tempo de pandemia por parte dos diversos governos, incluindo o governo português.
Exemplos da estagnação e da pouca atenção dada pelo governo português a estas matérias encontram-se por exemplo na resposta tardia às centenas de requerentes de asilo a viver acumulados em hostels ou às pessoas sem abrigo. Nas dificuldades que se verificaram no acesso a direitos fundamentais como o direito à IVG, na promoção da saúde sexual e reprodutiva com informações contraditórias, no início da pandemia, sobre a forma de funcionamento de serviços dos saúde de proximidade ou ainda na falta de qualquer tipo de informação sobre a manutenção e sustentabilidade dos programas de cooperação e desenvolvimento que estavam em curso.
P&D: Quais os maiores desafios que prevê que vamos enfrentar enquanto país e membro da comunidade internacional neste tempo de “novo normal”?
SC: Começa a ficar claro que muita da realidade que conhecemos vai mudar. Cabe-nos garantir que muda para melhor.
Uma das principais preocupações prende-se com a resposta nacional e europeia à crise económica e social e às medidas que serão disponibilizadas para recuperação da economia. Para além do perigo que representa para a globalidade do planeta a existência de governos e governantes negacionistas que minam aquilo que deveria ser uma resposta conjugada e articulada por parte dos vários países no combate à pandemia, num mundo globalizado e em especial, na União Europeia, também a resposta à crise económica e social tem de ser concertada.
O debate no Parlamento Europeu sobre a resposta à pandemia e à crise económica confirmou o alinhamento dos maiores grupos (Direita, Liberais, Socialistas e Verdes) em torno de instrumentos que privilegiam a dívida em detrimento de instrumentos verdadeiramente solidários. A rejeição da plena utilização da capacidade de financiamento do BCE, combinada ou não com outros instrumentos, mostra que a doutrina da austeridade continua a dominar o espaço político europeu.
Num contexto em que as principais instituições europeias parecem determinadas em repetir as soluções que foram implementadas na sequência da crise financeira de 2008, o Bloco de Esquerda entende que a posição de Portugal tem de ser a da defesa intransigente de respostas que não deixem a periferia da União Europeia enterrada em dívidas. A posição de Portugal e dos restantes países da coesão terá de ser muito mais firme e determinada do que foi na reunião do Eurogrupo e terá de cumprir três objetivos: (1) um programa de estímulo contracíclico à escala da crise que temos pela frente; (2) os instrumentos ao serviço desse estímulo têm de mobilizar toda capacidade de financiamento das instituições europeias, a começar pelo financiamento monetário, evitando um endividamento e dependência ainda maiores; (3) a absoluta rejeição de uma nova vaga de austeridade que nos empurre novamente para a recessão, a crise social e humanitária e a subversão dos processos democráticos.
A situação dos refugiados nos campos de contenção às portas da Europa é algo que deve igualmente preocupar todos os Estados-membro e exigir uma resposta concertada, baseada na solidariedade e no respeito pelos direitos humanos.
Outras questões que poderão colocar-se prendem-se com a possibilidade de restrições à circulação transnacional e de fechamento de fronteiras, ou com a limitação de outros direitos, para além dos laborais, que obviamente rejeitamos.
O corolário de todos estes desafios é, sem dúvida, o desafio maior da União Europeia ser capaz de, de uma vez por todas, agir de acordo com os princípios da igualdade e da solidariedade, alicerces sobre os quais foi criada mas que há muito tem esquecido e subjugado a uma política de dominação e exploração de grande parte dos países, especialmente os países do sul, por um punhado de potências económicas ao serviço da banca e dos grupos financeiros mundiais.
Quem é Sandra Cunha? |
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*Socióloga, Pós-Graduada em Família e Sociedade pelo ISCTE-IUL com Especialização em ‘Children in Adverse Life Situations - Social Work with Children at Risk and their Families” (Gotemburgo, Suécia), a frequentar o Doutoramento em Estudos de Género (ISCSP-FCSH-UNL). Professora Universitária está deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda. |