'Estamos mais conectados mas, significativamente, mais distantes.'
- Data de publicação 16 outubro 2020
P&D Factor - Educação Sexual Compreensiva (ESC), em que consiste e qual o papel que desempenha? Há uma idade para começar?
Vânia Beliz (VB) - Existem muitos conceitos quando falamos de educação sexual. Em alguns países chamam-lhe educação sexual integral, noutros compreensiva, em Portugal a Direção Geral de Educação refere Educação para os Afetos e Sexualidade.
O mais importante é que este seja um desafio cada vez mais transversal e diverso e que possa, por isso, chegar a todos e todas e não apenas na perspetiva de prevenir infeções ou uma gravidez.
Hoje temos outros desafios que deverão ser trabalhados desde cedo e há espaço para que, na educação pré-escolar, as crianças aprendam sobre identidade, sentimentos, emoções, consentimento… Todos fazemos educação sexual, até através dos nossos comportamentos e atitudes por isso, quando nascemos, já estamos a aprender.
P&D Factor - A ESC acontece em diferentes espaços e contextos: na família, nos diferentes grupos de pertença, em contexto escolar, entre outros. Como vê o papel da escola nesta matéria?
VB - É um papel muito importante, pela proximidade e pela sua função, os educadores formais e a escola são espaços privilegiados. Hoje as crianças e jovens passam grande parte do seu dia na escola.
Falta no entanto formação - os educadores e professores não abordam os temas da sexualidade na sua formação. Importa não esquecer os assistentes operacionais porque são, também, elementos importantes desta equação - apoiam as crianças e os jovens nos ambientes fora de sala de aula...
Assistimos, nos últimos anos, a um desinvestimento na educação sexual que precisamos recuperar. Para isso, temos de continuar a sensibilizar para a importância destes temas na saúde e felicidade dos nossos filhos e filhas.
P&D Factor - Existe um curriculum, formação de docentes e materiais pedagógicos para os vários níveis de ensino? Na sua opinião, e enquanto investigadora, o que importa fazer?
VB - O que existe é insuficiente. Por exemplo, na educação pré-escolar as orientações pouco abordam os conteúdos de educação sexual, a Direção Geral de Educação, nas suas linhas orientadoras de Educação para a Saúde, aborda vários eixos, entre eles o da sexualidade e afectos, com orientações sobre o que poderá ser abordado, temos orientações internacionais como as da UNESCO… mas falta realmente mudar os curricula e colocar estes temas na formação de educadores e de professores.
Se o Português e a Matemática são importantes, temos de mostrar que é tão ou mais importante ter cidadãos/ãs mais conscientes dos seus direitos e deveres e, para isso, a cidadania, a igualdade, a saúde e educação sexual e os direitos humanos têm de ser abordados. Há poucos materiais pedagógicos.
Durante algum tempo, com os financiamentos para o combate ao VIH – Sida, foi possível realizar muitas campanhas, fazer materiais... ainda que o foco fosse muito prevenir situações indesejadas ou negativas... Educar para a sexualidade não pode ser apenas fisiologia e riscos, ou continuaremos sem sair do mesmo sítio. Temos muitos desafios que potenciam a mudança nas abordagens. Já não nos relacionamos como antes e, por isto, precisamos desta atualização importante. Levar uma banana para a escola para ensinar a colocar um preservativo já não serve aos nossos jovens, ainda que, mesmo com essa abordagem, continuem a não o saber utilizar devidamente...
P&D Factor - A ESC contribui para uma melhor Saúde Sexual e Reprodutiva e Igualdade. Temas como a Mutilação Genital Feminina, os Casamentos Precoces e Forçados, diferentes Formas de Violência e Discriminação fazem parte do currículo?
VB - Falamos pouco de temas que não estão presentes na nossa realidade e esquecemos como os outros somos nós! Antes, a mutilação genital existia lá longe... hoje, por conta dos movimentos migratórios, temos muitas mulheres que chegam de outras geografias e com outras práticas e culturas. Temos em Portugal comunidades estabelecidas que precisamos conhecer e acompanhar. Temos ainda grupos que não respeitam a maioridade (18 anos) para o casamento, em que as mulheres são afastadas da escola e forçadas pelas famílias a ter filhos rapidamente e que, frequentemente, são protegidos por serem uma minoria.
A educação para a cidadania e desenvolvimento deveria trabalhar estas temáticas e os direitos humanos que não deviam precisar de guiões para serem abordados nesta ou naquela disciplina, existem e devem ser conhecidos e respeitados. É importante que a escola facilite a reflexão e a tomada de consciência para não estarmos a criar miúdos em redomas, desfasados dos problemas graves do mundo. E, sim, acho que a escola devia ter espaço para isso, não estivessem os programas entupidos com tanta coisa e que algumas vezes servem para muito pouco. Seria preferível ter um aluno fraco a matemática mas que seja um bom cidadão na sua comunidade... mas continuamos a valorizar as notas como sinal de competências. Precisamos de mudar! Há excelentes orientações para o fazer, mas a nossa Escola não está, ainda, preparada para esta mudança.
P&D Factor - A Vânia Beliz tem estado muito atenta às questões associadas à chamada Educação para a Menstruação, tendo organizado diferentes iniciativas sobre o tema em diferentes países e contextos. Este é um assunto que importa falar no contexto da ESC? Porquê? Como surge a organização de ateliers para a confeção de pensos higiénicos reutilizáveis, com um grupo de avós de Beja?
VB - A educação para a menstruação surgiu exatamente da constatação do desconhecimento existente entre as meninas, mas também das suas mães. A dificuldade no acesso ao saneamento e métodos de recolha da menstruação afasta as meninas e as mulheres da escola e da participação social em muitos lugares.
Em Portugal ainda existem casas de banho sem papel, sem detergente para as mãos ou sem fechadura nas portas. Um estudo realizado em maio deste ano com 426 mulheres veio mostrar isso mesmo. Menstruar no espaço público é um desafio até para nós na Europa, o que fará em Moçambique, São Tomé e Príncipe ou outros países onde as mulheres têm de percorrer quilómetros para conseguir um balde de água? E onde o acesso aos pensos higiénicos ou tampões, é outra dificuldade? Em Portugal 14% das mulheres referem ter dificuldade para os comprar e em países vulneráveis são um luxo… Em realidades que conheço, como a Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe, os resíduos são um problema, por isso também importa pensar no ambiente e na utilização de métodos mais ecológicos e sustentáveis de apoiar as meninas e mulheres durante a menstruação.
Quando estive na Guiné Bissau percebi como os pensos de pano impermeáveis podiam ser importantes e desafiei algumas pessoas a confecioná-los. As Avós de Beja são um grupo de senhoras que usa a costura para conviver e para fins sociais, através da Associação Estar (Beja) e, quando lançámos o desafio, o trabalho começou.
Entretanto através da Riera Alta (empresa), foi realizada, na semana passada uma aula (live), sobre a confeção dos pensos e, por isso, temos mulheres a fazê-los em todo o país. Unidas contra o estigma de que somos sujas, impuras e pela re-significação desta fase importante do ciclo de vida das mulheres.
É um trabalho que quero continuar e que conta com o apoio de muitos. No ano passado, com a Catarina Furtado e o seu projeto Tamos Junto, conseguimos que os pensos chegassem às mulheres que tiveram bebés na maternidade do Hospital Simão Mendes, em Bissau. A Corações com Coroa disponibilizou kits onde os pensos não foram esquecidos. Nada se faz sozinho, é preciso motivar e acelerar para fazer acontecer!
P&D Factor - A par da ESC, a saúde sexual e reprodutiva e a Igualdade são temas que tem trabalhado em Portugal, mas também na Guiné-Bissau, Brasil e São Tomé e Príncipe. Como surge este foco de trabalho e investigação?
VB - Falamos de países onde o acesso à informação e à saúde é muito reduzido, onde existem crenças (principalmente em África) que colocam em risco a saúde sexual e reprodutiva das pessoas. É preciso capacitar pares, técnicos, trocar ideias e aprender!!!
Não podemos ir para diferentes realidades sem a humildade de aprender primeiro, porque na sexualidade a cultura tem uma grande influência, é uma oportunidade de aprendizagem para todos. No Brasil tive a oportunidade de conhecer outros projetos, de contactar com outras práticas e foi muito compensador. Hoje a Internet permite-nos isso. Durante o confinamento fiz formação em educação sexual e diversidade funcional na Argentina, completei o meu curso de educadora menstrual em Espanha e aprendi sobre educação menstrual com um projeto na Colômbia e do sul do Brasil. Não há limitações para quem quer aprender.
P&D Factor - De acordo com a sua prática clínica e investigação, quem e que assuntos não podemos deixar para trás quando se fala de Saúde, Igualdade, Educação, direitos humanos e Desenvolvimento?
VB - Todos os assuntos são importantes e é uma pergunta difícil. Preocupa-me a falta de tolerância em relação à diversidade sexual, a crescente banalização da intimidade e da falta de privacidade. Preocupa-me que os jovens “desaprendam” com a pornografia, ou que, apesar do esforço para trabalharmos as questões de género, os media, com frequência, desconstruam tudo pela manutenção e reforço dos estereótipos. Preocupa-me a falta de empatia pelos problemas dos outros e que achemos que não têm nada a ver com a nossa vida… Preocupa me a falta de valores, de compromisso...
P&D Factor - A pandemia Covid-19 trouxe profundas alterações aos quotidianos das pessoas e instituições. Com base na sua experiência profissional e de voluntariado, quais os principais desafios que importa ter em atenção, incluindo na vida das famílias e casais?
VB - Tantas pessoas que ficaram sem acesso à contracepção segura e tantas situações de violência que ficaram silenciadas. A saúde mental também é um problema que afeta a nossa intimidade e que continuamos a desvalorizar. Em países vulneráveis tanta gente que ficou sem o apoio dos projetos, entregue à sua sorte… A vulnerabilidade acentua-se sempre nas crises e vamos ver o que se segue...
P&D Factor - Como estamos a lidar com a sexualidade e os afectos neste “novo normal”?
VB - Estamos com dificuldade... muita ansiedade que é sempre um entrave ao desempenho. Muita dificuldade na procura de novos contactos e na socialização... Estamos mais conectados mas, significativamente, mais distantes. Precisamos voltar para o terreno e voltar ao trabalho de educar e prevenir, porque continuo a acreditar no poder da prevenção e da educação para a mudança… Não “daremos o peixe”, faremos o esforço de, juntos, com a experiência de todos, construir redes fortes para o resultado ser mais eficaz… também nos falta isso, união...
Quem é Vânia Beliz? |
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* Vânia Beliz nasceu em Lisboa, em 1978, e viveu no Algarve onde, em 2005, se licenciou em Psicóloga Clinica e da Saúde. Mestre em Sexologia e doutoranda em Estudos da Criança na especialidade de Saúde Infantil, na Universidade do Minho. Apresentou durante 3 anos, no programa Curto-Circuito, da SIC Radical, uma rubrica para jovens sobre sexualidade. Na imprensa colabora com várias revistas e programas de televisão. Participa em vários projetos na área da educação sexual como são exemplo os projetos no âmbito dos Programas de Educação para a Saúde, (PES) e o Projeto de Educação Sexual “A viagem de Peludim”. Consultora da Control Portugal e responsável pelo projeto nacional ControlTalk, serviço de esclarecimento através do whatsapp. Autora do livro “Ponto Quê?” sobre a sexualidade feminina, co-autora de “A Viagem de Peludim”, obra dirigida às crianças e educadores e agora de “Chamar as coisas pelos nomes” dirigido às famílias sobre como e quando falar sobre sexualidade. Responsável pelo projeto Adolescer que pretende sensibilizar públicos vulneráveis dos PALOP para a educação sexual com missões em São Tomé e Príncipe e na Guiné Bissau onde é cronista da revista feminina Kampuni. Participa com frequência como oradora e formadora em vários eventos científicos, tendo inúmeras comunicações públicas em áreas como: Sexualidade Feminina, Sexualidade e Envelhecimento, Sexualidade na Deficiência, ou Educação Sexual. |