“Para combater o tráfico de pessoas, tem de haver coordenação entre Estado e ONG”
- Data de publicação 04 março 2016
Sabia que um português corre mais riscos de ser traficado do que uma pessoa de um país onde existem campanhas de prevenção dirigidas a quem quer emigrar? O Tráfico de Seres Humanos é um fenómeno em crescimento no mundo inteiro e Portugal não está fora das rotas. As estatísticas falam de dois milhões e meio de pessoas traficadas em todo o mundo, 800 mil na Europa e entre 80 e 150 em Portugal, mas os investigadores do NSIS, Cláudia Pedra e Miguel Santos Neves, garantem que esses valores estão longe de expressar a realidade.
Texto: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández
Existem diversas formas de crime de Tráfico de Seres Humanos (TSH), para além das que estão caracterizadas no Código Penal (artigo 160º). Quais são os indícios que uma vítima transmite e que podem facilitar a identificação de que está em situação de tráfico?
É difícil elencá-los, porque variam consoante os diferentes tipos de tráfico. Numa situação de exploração sexual, os sinais transmitidos, voluntária ou involuntariamente, pelas vítimas são uns, numa situação de exploração laboral são outros. Mas existem documentos de organismos internacionais, como o NODC [uma agência das Nações Unidas para as questões do combate à droga e crime organizado], que indicam elementos de orientação para a deteção de vítimas. Infelizmente, esses indicadores não estão tão difundidos como seria desejável entre as forças policiais, as ONG e os professores nas escolas.
O TSH começou por ser transnacional, mas é também, cada vez mais, um fenómeno interno. Há portugueses traficados em Portugal?
Há. O TSH transnacional e interno existe em todo o lado e em Portugal também. Num estudo que fizemos entre 2010 e 2013, chamado A Proteção dos Direitos Humanos e as Vítimas de Tráfico de Pessoas, para o qual entrevistamos 115 vítimas, descobrimos uma vítima de tráfico interno, um português, em Portugal. Mas há mais casos, segundo as estatísticas oficiais. O problema é que o tráfico interno é difícil de detetar, porque não se faz controlo nos postos de fronteira, não há necessidade de visto nem de mostrar a documentação pessoal. Está a ser uma tendência em vários países, por exemplo, na Alemanha.
Que fatores estão na origem da expansão do tráfico interno de pessoas?
Um dos fatores mais importantes é o foco das autoridades policiais, que estão mais centradas no controlo do tráfico transnacional, apertando os mecanismos de vigilância nas fronteiras. E enquanto assim for, é natural que os traficantes, que estão sempre a procurar estratégias para contornar as ações de vigilância, invistam num tipo de tráfico mais difícil de detetar. Por outro lado, os custos com o transporte internacional das vítimas está a aumentar, o que faz também com que o tráfico interno aumente. No passado, o tráfico transnacional era feito por avião, hoje é por barco, um meio de transporte que permite redução de custos e economias de escala.
Em Portugal, quantas pessoas estarão, atualmente, em situação de tráfico?
Nos últimos anos, entre 80 e 150 pessoas. Mas falar de estatísticas é muito complicado. Elas existem, podem ser consultadas no relatório de Segurança Interna e no Observatório do Tráfico de Seres Humanos, no entanto, verificámos, e temos isso documentado, que os dois organismos apresentam estatísticas diferentes, embora as tivessem supostamente retirado de um guia único de registo que é feito e fornecido pelas autoridades policiais.
E na Europa e no mundo, quantas vítimas haverá?
De acordo com as Nações Unidas, na Europa haverá cerca de 800 mil pessoas e, no mundo, dois milhões e meio. Mas também estes números são altamente contestados por organizações internacionais, que apontam valores muito mais elevados, na ordem dos 200 milhões de pessoas. A verdade é esta: seja em relação ao mundo, à Europa ou a Portugal, os números apontados não são expressivos da realidade. Quando fizemos investigação no terreno, concluímos com alguma segurança que a quantidade de pessoas traficadas em Portugal tinha que ser pelo menos três vezes superior ao que estava a ser anunciado.
Isso, só com base no número de vítimas que entrevistaram…
Que entrevistámos e a que tivemos acesso através de outras vítimas. Em vez de estatísticas, devia falar-se de estimativas, porque as estatísticas são baseadas nos dados que as forças policiais registam e fornecem e não têm concordância com o número de vítimas identificadas por exemplo pelas ONG, o que anos leva a concluir que os dados comunicados pelas ONG não estão incorporados nas estatísticas. Temos muitas reservas em relação à produção de estatísticas.
Que abordagens são utilizadas pelos traficantes? As pessoas vão de livre vontade, mediante uma promessa falsa de trabalho ou são raptadas?
O rapto não é tão usado, é mais frequente com crianças ou com pessoas em situação de vulnerabilidade, por exemplo, com deficiência (em Portugal, encontrámos casos de rapto de sem-abrigo). Os métodos mais utilizados são as falsas ofertas de emprego, muitas delas aparentemente credíveis, com salário, contrato e visto associado. São abordagens que parecem reais, de empresas reais. E perante anúncios supostamente credíveis para trabalhar num restaurante ou num hotel, aqui ou noutro país, as pessoas aceitam sem desconfiança. De resto, do ponto de vista do traficante, é mais fácil transportar uma pessoa que se desloca de livre vontade, porque pensa que vai ter um emprego e um salário, do que uma pessoa raptada.
Todos podemos ser vítimas?
Sim e ainda bem que faz essa pergunta, porque é importante acabar com a ideia de que as vítimas de tráfico são só pessoas sem instrução e de países em desenvolvimento. Não é verdade, temos que desmistificar isso. Todos podemos ser vítimas.
No entanto, existem grupos de risco. Quais?
Existem. Hoje, a maioria das vítimas de tráfico são jovens entre os 14 e os 28 anos, por várias razões: para além de serem mais fáceis de enganar, devido à falta de experiência de vida, são mais procurados para exploração sexual e para exploração laboral, porque têm, supostamente, mais capacidade física para aguentar o enorme desgaste que a própria exploração provoca.
Como evitar ‘cair’ numa situação dessas?
Existem alguns cuidados a ter: investigar a empresa que está supostamente a contratar, verificar na embaixada do país em questão se existem dados ou suspeitas sobre o empregador (há empresas de trabalho temporário em certos países que estão indiciadas por crimes de TSH), ligar para o número de telefone indicado no anúncio e verificar depois se realmente existe… Se as pessoas tomarem toda uma série de precauções antes de embarcarem seja para onde for, diminuirão as possibilidades de serem traficadas.
Por isso são tão importantes as campanhas de sensibilização nas escolas do terceiro ciclo. Estão a ser feitas?
Deviam ser uma prioridade, mas não estão a ser feitas de uma forma sistemática. É uma das falhas da política de prevenção. Numa investigação que realizamos há uns anos, e no âmbito da implementação de um projeto piloto, fizemos uma intervenção nos concelhos de Odivelas e de Odemira, onde trabalhamos com professores e alunos de algumas escolas, justamente para os alertar para os riscos, especialmente os jovens.
Sendo Portugal um País sobre o qual se diz muitas vezes que não há TSH ou, se há, é residual, isso faz com que haja pouca noção do risco…
Exatamente. Na verdade, um português corre mais risco de ser traficado do que se calhar um filipino, que já ouviu falar do perigo de tráfico muitas vezes (nas Filipinas existem imensas campanhas de sensibilização dirigidas às pessoas que vão emigrar). Já em Portugal, os jovens e a generalidade da população não fazem ideia nenhuma de que podem vir a ser vítimas.
Mas a prevenção é uma obrigação do Estado, prevista na Convenção de Varsóvia…
Sim, e, do nosso ponto de vista, a Convenção de Varsóvia deve ser a grande linha de orientação na política do combate ao tráfico. Pensamos que o Estado, em articulação com as ONG e as empresas, tem capacidade para fazer esse trabalho. No nosso estudo sobre as vítimas de TSH, fazemos recomendações ao Estado, ao setor privado e às ONG, porque consideramos que não é possível ter uma estratégia eficaz na prevenção e no combate ao tráfico sem uma coordenação eficaz entre os três setores.
E não há?
Não. Há muitas resistências e dificuldades. No caso português, não existe ainda um grau de proximidade e de confiança suficiente entre o Estado e as ONG para trabalharem nesta área. E o setor privado está desmobilizado, em parte porque não tem havido uma estratégia que o envolva no tipo de trabalho que tem de ser feito. Mas este não é um problema só em Portugal.
O que é que as empresas podem fazer para evitarem recrutar pessoas traficadas?
Desde logo, devem ter especial cuidado com a política de recrutamento de trabalhadores sazonais, de modo a não contratarem pessoas que, mesmo sem o saberem, estão a ser vítimas de tráfico de agências de trabalho temporário. Também podem formar os seus próprios quadros e ter uma política de controlo do ciclo do produto, com cláusulas anti tráfico, exigindo aos fornecedores o cumprimento de medidas rigorosas de controlo.
Mas há uma altura em que as pessoas percebem que foram enganadas. Não estando encarceradas, o que as impede de denunciar que estão a ser vítimas de tráfico?
Há dezenas de formas de coação psicológica talvez mais eficazes do que o encarceramento, embora haja vítimas, também em Portugal, encarceradas. O que leva as pessoas ao silêncio ou a ficarem é a ameaça, a eles próprios e aos seus familiares, e a falta de visto e documentos de identificação. São métodos bastante eficazes. Os traficantes dizem-lhes, por exemplo, que se denunciarem ou fugirem, a família que deixaram nos países de origem vão sofrer as consequências. Perante isto, as vítimas permanecem na situação de tráfico. A vítima não tem a liberdade de sair da relação com o traficante.
Mas tem a noção de que está a ser vítima de tráfico?
Nem sempre. Só tem essa perceção quando tenta sair da relação e verifica que não pode. Essa é uma situação com que nos deparámos muito nas entrevistas: as pessoas percebem primeiro que estão a ser exploradas, que não estão a ganhar o dinheiro que lhes foi prometido, nem a trabalhar nas condições acordadas, e só quando tentam ir embora e não os deixam é que têm a consciência de que estão a ser traficadas.
De onde vêm e para onde vão as pessoas traficadas?
No estudo sobre as vítimas, verificámos que Portugal tem ligações a todas as rotas globais. As vítimas provêm de todos os continentes.
Não há países prevalecentes?
Existe uma prevalência de pessoas oriundas de países africanos e sul-americanos, especialmente Brasil e Nigéria, entre outros. Outro dado que registámos, que até então não estava documentado, são os fluxos a partir da Ásia. Há cada vez mais vítimas asiáticas, sobretudo em exploração laboral.
Também em Portugal?
Claro. Aliás, muitos dos casos de tráfico para exploração laboral, em Portugal, ocorre na agricultura e envolve muitos asiáticos, o que quer dizer que há um fluxo permanente, organizado, feito através das agências de emprego temporário.
O tráfico está sempre associado a exploração?
Não. É uma questão importante para desmistificar essa ideia. Há obviamente situações em que o tráfico e a exploração coexistem, mas não necessariamente. Uma pessoa pode ser traficada sem ser explorada. Uma pessoa pode trabalhar o número de horas estipulado pela lei, pode receber o salário que foi acordado e que considera justo e estar em situação de tráfico. Porquê? Porque se quiser abandonar aquele trabalho não pode, não tem a liberdade de ir embora.
Além da agricultura, quais são os setores de atividade com mais pessoas traficadas, em Portugal?
São os setores que recorrem muito ao trabalho sazonal, como o turismo, sobretudo hotelaria e restauração, serviço doméstico, construção civil e pescas. Relativamente aos portugueses, tendem a ser mais explorados no contexto europeu: em Espanha (para exploração sexual integrada entre os dois países, ou seja, as vítimas são exploradas num e noutro lado da fronteira), Alemanha, Holanda, Inglaterra, etc., onde há uma ideia de segurança e de liberdade de circulação de trabalhadores no espaço europeu, mas, na verdade, do outro lado, nos países de destino, à espera das vítimas estão falsas promessas de emprego e redes de TSH a funcionar. Ora, é por ser território europeu que achamos mais fácil tomar medidas eficazes para controlar o fenómeno.
Não existindo “coordenação entre o Estado, o setor privado e as ONG, não é possível desenvolver uma estratégia de prevenção, com campanhas de sensibilização, nos países de origem.”
Se é mais fácil, porque não estão a ser implementadas medidas?
Porque não existe coordenação entre o Estado, o setor privado e as ONG. Sem essa coordenação, não é possível desenvolver uma estratégia de prevenção, com campanhas de sensibilização nos países de origem. Sabemos, através das nossas investigações, que há 36 rotas de tráfico e que as vítimas são na esmagadora maioria oriundas de 17 nacionalidades, o que demonstra que o tráfico de pessoas não é circunscrito a dois ou três áreas, é um fenómeno global com múltiplas complexidades.
Além de origem e destino de TSH, Portugal é também um país de trânsito?
É. Através dos contatos e consulta da base de dados da OIM [Organização Internacional das Migrações] verificámos que houve uma série de vítimas que transitaram por Portugal desde 2004, sobretudo ucranianas. Esse foi o dado mais inovador da nossa investigação. Até então, nunca tinha sido verificado o trânsito de vítimas de tráfico por Portugal.
As pessoas são traficadas para fazerem o quê?
Para exploração laboral (nos setores já mencionados, sobretudo homens), para exploração sexual (sobretudo mulheres e crianças, para prostituição e pornografia), para mendicidade (crianças), para servidão doméstica (encontramos cá alguns casos de encarceramento, com pessoas presas a trelas e obrigadas a dormir no chão), para cometer crimes (há casos de pessoas na cadeia, em todo o mundo, que foram forçadas a praticarem atos criminosos), e para tráfico de órgãos (ao contrário do que se pensa, não são apenas os órgãos mais comuns que lhes são retirados, como os rins, o fígado e o coração, são também os óvulos e células de pele).
Quanto tempo é que as pessoas ficam em situação de tráfico, geralmente?
Os testemunhos das 115 vítimas entrevistadas para o nosso estudo permitem-nos concluir que o tempo é muito variável. Na exploração sexual, tendem a ser períodos mais longos, tanto maiores quanto mais jovens forem as vítimas (chegamos a ter o caso extremo de uma pessoa que esteve doze anos fechada num apartamento). Os períodos de exploração de longa duração (superiores a dois anos) ou de muito longa duração (superiores a cinco anos) têm uma expressão muito significativa no estudo, o que significa que muitas das vítimas, quando forem resgatadas, estarão num estado de destruição pessoal profunda. Na exploração laboral, os períodos tendem a ser mais reduzidos, o que tem a ver, por um lado, com a sazonalidade do trabalho e, por outro lado, consoante o tipo de atividade, com a maior facilidade de as pessoas fugirem.
O TSH está a crescer a um ritmo acelerado. Por culpa da crise?
Por culpa de vários fatores, conjunturais e estruturais. Estruturais, por causa da consolidação e da enorme expansão dos fluxos migratórios globais, utilizados pelos traficantes para dinamizar o processo de tráfico. Também por causa do aumento significativo do poder e das redes de crime organizado internacional, que se tornou muito rentável e com um grau de risco menor do que os outros tipos de tráfico. A relação entre a rentabilidade e o risco é um dos fatores mais favoráveis para o aumento do TSH, verificando-se uma transferência de outras atividades criminosas, por exemplo o tráfico de droga, para o tráfico de pessoas. Também o crescimento das migrações e o aumento muito significativo dos fluxos do turismo internacional (para exploração sexual e não só) favorece o processo de TSH.
E que razões conjunturais apontam?
Essas, sim, estão relacionadas com a crise. As pessoas desempregadas e com problemas graves de subsistência estão muito mais disponíveis para responder a propostas de emprego, não só em anúncios na imprensa como nas redes sociais. Por outro lado, muitos empresários em dificuldades económicas sentem-se tentados a recorrer a várias estratégias, entre as quais a mão-de-obra traficada, para redução de custos.
O tráfico de transsexuais também está a aumentar. De onde, para onde e porquê?
O TSH varia de país para país, de região para região, conforme a procura. Tem havido muitas vítimas do Brasil para responder a um mercado transsexual em crescimento nalguns países, como Itália. Em termos de destino, Itália é talvez um dos maiores mercados europeus de tráfico de transsexuais.
A ação do NSIS (Network of Strategic and International Studies), associação de investigação dedicada a questões internacionais em diversas áreas, de que o Miguel é presidente e a Cláudia é diretora, tem sido eficaz na prevenção e combate ao tráfico de pessoas?
A missão do NSIS pretende estimular o debate público e contribuir, em termos de investigação, para a criação de uma estratégia preventiva eficaz e uma melhor compreensão das causas e das consequências de diversos fenómenos, entre os quais o TSH. Trabalhamos em três áreas complementares: a investigação, para saber quais são as mutações do fenómeno, uma vez que os traficantes alteram permanentemente as suas estratégias; a informação, porque os setores público e privado e as ONG precisam de cooperar numa lógica multi-action, mas também de conhecer melhor as dimensões do TSH, quer em termos gerais, quer em termos setoriais, porque as mutações do tráfico variam consoante o tipo de tráfico e o setor de atividade; e sensibilização, através da promoção de campanhas dirigidas a potenciais vítimas, para que fiquem avisadas sobre os métodos utilizados, as ofertas de emprego, enfim, as abordagens usadas pelos traficantes.
E a cooperação policial tem sido exemplar?
Tem avançado, sobretudo no contexto da União Europeia, mas menos nos países de origem que não pertencem à UE, o que significa que são muitos os fluxos de todos os pontos do mundo que são deixados de fora. Neste aspeto, é necessário agilizar a cooperação internacional. Internamente, o que nos parece é que existem dois atores com duas visões sobre o tráfico e o que fazer: por um lado, temos a perspetiva securitária da parte do Estado, que consiste em condenar e punir os traficantes, e, por outro, a perspetiva de direitos humanos inspirada nas ONG e mais focada para o apoio às vítimas. Ou seja, é evidente que existe um défice de implementação da Convenção de Varsóvia, uma vez que o Estado é obrigado a desenvolver e a seguir uma estratégia orientada para a proteção dos direitos humanos das vítimas e não o faz.
Quando falam do Estado, referem-se apenas ao Governo central?
Não, referimo-nos também às câmaras municipais, juntas de freguesia, escolas e todas as redes regionais, porque o combate ao TSH tem de ser feito de uma forma descentralizada, envolvendo as empresas locais, as ONG e as comunidades. Não há outra solução.
"Muitos fenómenos migratórios estão associados à pobreza extrema e é evidente que quem está ligado ao tráfico aproveita-se dessa situação. Isto, para dizer que há muito trabalho a ser feito ao nível da Cooperação Portuguesa, do Desenvolvimento e dos direitos humanos."
Sim, foi essa a mensagem de um outro trabalho que realizaram, de identificação de boas práticas internacionais em oito países, chamado Comunidades Ativas contra o Tráfico de Pessoas. Em que consistem?
Como não é um tema novo - está a ser trabalhado há 40 ou 50 anos em vários países -, pensámos que fazia sentido ver que tipo de práticas estavam a ser implementadas noutros locais e que pudessem ser utilizadas noutros contextos, inclusive em Portugal. Para nós era sobretudo importante verificar se eram mesmo boas práticas ou se eram apenas boas ideias. Desse trabalho resultou a criação de um manual que cobre os chamados 4 P’s - prevenção, parceria, punição e proteção das vítimas – e a criação e implementação do projeto piloto Comunidades Ativas contra o Tráfico de Pessoas em duas comunidades em Portugal, uma urbana (na Pontinha, em Odivelas) e outra rural (em São Teotónio, em Odemira). Porque uma comunidade informada, formada e ativa em estratégias de mobilização contra o tráfico é uma comunidade hostil aos traficantes.
E que proteção existe à vítima? Quando realizaram um outro estudo, chamado Migrações, Combate ao tráfico de pessoas – Valorização e Inclusão Social das Vítimas, tiveram a perceção de que a vítima tem sido esquecida?
Há também vários equívocos e várias práticas inadequadas na forma como se protege as vítimas, quer por parte das instituições públicas, quer por parte das ONG, de maneira que aquilo que procuramos alertar nesse estudo é que a proteção não pode passar pela revitimização. Sucede que a proteção é feita quase exclusivamente numa lógica assistencialista, em que as vítimas são vistas como desprovidas de direitos, não se enfatizando aquilo a que chamamos 3 R’s: reabilitação (sobretudo das vítimas que sofreram longos períodos de exploração e, por isso, ficaram com graves traumas), reparação (devem ser indemnizadas pelos prejuízos que sofreram) e reintegração (perderam as suas apetências sociais, os contatos e redes de apoio, pelo que precisam de ser reintegradas na comunidade e no mercado de trabalho).
Pelo que dizem, temos então um Plano Nacional de Combate ao TSH com muitas lacunas. Quais?
É importante existir um Plano, o problema é que o PNCTSH tem algumas premissas que o tornam ineficaz, como a não descentralização do combate, o cumprimento de medidas apenas pela rama e, claro, a ausência de uma cooperação estreita entre Estado, setor privado e ONG. As medidas de prevenção apontadas pelo Plano seriam mais eficazes se fossem menos securitárias e mais de acordo com uma perspetiva de direitos humanos.
E numa perspetiva de direitos humanos, o Plano Nacional teria que incluir que medidas? Podem ser mais específicos? É que já vamos no terceiro Plano, sendo que foi feito fundamentalmente por ONG...
O Plano Nacional de combate ao tráfico de seres humanos deveria ser implementado de forma mais descentralizada, tendo em conta especificidades locais de tipologias de tráfico. As realidades locais sobre o tráfico humano divergem, havendo regiões com mais propensão para tráfico de exploração sexual e outras de exploração laboral, para citar alguns exemplos. Há que fazer um esforço de capacitação das estruturas locais (polícias, ONG, profissionais de saúde, câmaras municipais e escolas) para promover a prevenção do tráfico e a proteção das vítimas detetadas, garantindo uma maior eficácia local.
Em Portugal, quais são as entidades que atuam nesta área?
Em termos de ONG, não existem organizações especializadas no combate ao TSH. As cerca de 40 ONG nacionais tratam várias questões de direitos humanos e de proteção das vítimas, acabando por encontrar vítimas de tráfico. Em termos de Estado, existe um coordenador das questões de TSH [Ministério da Administração Interna], um relator nacional, responsável pelo cumprimento do PNCTSH (CIG), e um Observatório de Tráfico de Seres Humanos, que responde à Presidência do Conselho de Ministros.
É um caso de polícia ou de desenvolvimento?
De ambos, embora o trabalho policial esteja um pouco descoordenado, na medida em que é feito umas vezes pelo SEF [Serviço de Fronteiras e Estrangeiros], outras vezes pela GNR, outras pela PJ [Polícia Judiciária]. Achamos que devia ser a PJ a coordenar, até porque reúne mais meios que as outras forças policiais e a sua ação de investigação está mais direcionada para os crimes organizados. E também porque é tutelada pelo Ministério da Justiça, o que nos parece que faz mais sentido neste tipo de tráfico. Se o TSH permanecer debaixo da alçada do Ministério da Administração Interna, é óbvio que continuará a ter uma orientação mais securitária.
Nesta área em concreto, como avaliam o desempenho da Cooperação Portuguesa no contexto da Lusofonia? Que papel deveria ter?
A Cooperação Portuguesa tem um papel importante, para já, na prevenção do tráfico, com campanhas diretas dirigidas a pessoas que querem emigrar para países onde os traficantes estão a atuar. Tem também um papel importante em relação ao Desenvolvimento, porque o tráfico tem como vítima qualquer pessoa, de qualquer estrato social, idade, sexo e país. É evidente que as pessoas que estão numa situação de pobreza generalizada estão numa situação de grande vulnerabilidade (vemos isso, por exemplo, nas mulheres nigerianas oriundas de uma região específica onde há pobreza extrema e, por isso, qualquer oferta de trabalho, mesmo sem grandes detalhes sobre as condições, aceitam). Muitos fenómenos migratórios estão associados à pobreza extrema e é evidente que quem está ligado ao tráfico aproveita-se dessa situação. Isto, para dizer que há muito trabalho a ser feito ao nível da Cooperação Portuguesa, do Desenvolvimento e dos direitos humanos.
Quem são Cláudia Pedra e Miguel Santos Neves? |
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São investigadores do NSIS, Network of Strategic and International Studies, mas, antes, andaram por caminhos diferentes. Cláudia é licenciada em Relações Internacionais e tem um curso de Gestão de Projetos de Ajuda Humanitária, foi Consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em 1997 e 1998, Investigadora para a Ásia no Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), de 1999 a 2001, e Investigadora e Gestora de Projetos na Organização Internacional para as Migrações (OIM), em 2002, nas áreas da não discriminação racial, etária e profissional dos migrantes. De 2002 a 2008 desempenhou as funções de diretora executiva da Amnistia Internacional Portugal. Tem mais de 40 artigos publicados sobre direitos humanos, relações internacionais e gestão de Organizações do terceiro sector e é coautora em três livros. Miguel é doutorado pela London School of Economics and Political Science, mestre em Economia e Estratégias do Desenvolvimento pelo Institute of Development Studies – IDS, Universidade de Sussex, Reino Unido, e licenciado em Juridico-Económica pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. As suas principais áreas de investigação incidem sobre Migrações Internacionais, direitos humanos e Direito Humanitário, Globalização e Dinâmicas Económicas, Políticas Internacionais e Paradiplomacia. É também membro de diversas redes de investigação internacionais incluindo o UE-ISIS/ASEAN+3, ECAN e MedAsia CNRS, e tem vários estudos e livros publicados. |