Mónica Ferro - 30 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
- Data de publicação 07 março 2024
Entrevista com Mónica Ferro, Diretora do Escritório UNFPA no Reino Unido
Este ano assinalam-se os 30 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, que enquadra a missão do UNFPA, agência das Nações Unidas onde trabalha. Apesar da melhoria dos indicadores em matéria de saúde materna, neonatal e infantil, na cobertura dos cuidados de Planeamento Familiar, prevenção da gravidez em adolescentes, gravidez acompanhada e parto assistido, entre outras áreas de missão do UNFPA como o fim dos Casamentos Infantis, Forçados e Precoces e da Mutilação Genital Feminina, o mundo continua muito desigual e muitas pessoas esquecidas.
P&D Factor - Porque razão a CIPD é, ainda hoje, considerada a Conferência mais inovadora / revolucionária dos anos 90?
Mónica Ferro (MF): A CIPD foi uma conferência que marcou uma nova fase na afirmação da centralidade das pessoas no processo de desenvolvimento, da igualdade de género como pedra de toque de um mundo mais justo, dos direitos reprodutivos, do direito ao planeamento familiar, da condenação da Mutilação Genital Feminina, do empoderamento das meninas. Em 1994 isto foi uma verdadeira revolução paradigmática que abriu caminho para outros grandes sucessos da mesma década. Pequim não teria sido tão eficaz na sua articulação dos direitos sexuais e da autonomia corporal das mulheres se não fosse a linguagem do Cairo, por exemplo. Temas que temos hoje como estruturantes dos ODS encontram o seu momento fundador na CIPD.
P&D Factor - Apesar dos avanços, as discrepâncias entre países são ainda muitos grandes ao mesmo tempo que há a exigência de respostas em situações de guerra, que o mundo se debate com novos desafios demográficos, entre outras. Qual são em sua opinião os dados que importa celebrar e aqueles em que o investimento têm de ser maior e mais consistente?
MF: De facto, o progresso tem sido assimétrico, com níveis de desigualdade indescritíveis. Embora a mortalidade materna tenha diminuído cerca de 34% ao longo das duas últimas décadas, as mulheres ainda morrem ao dar à luz – 2 por minuto, cerca de 300.00 por ano e por causas preveníveis ligadas à gravidez, parto e pós parto.
Os hiatos, as desigualdades de gênero persistem – de acordo com o Fórum Económico Mundial demoraremos 136 anos a atingir a igualdade de género, um número agravado pelo impacto desproporcional da pandemia Covid 19 sobre as mulheres e meninas; os gaps digitais deixam offline milhões de mulheres e de pessoas que vivem em países em desenvolvimento.
Às mulheres continua a ser-lhes negado o direito fundamental de fazer decisões autônomas sobre o seu corpo e o seu futuro, e assistimos em muitas parte do mundo a um retrocesso dos seus direitos e conquistas.
Os dados de que dispomos mostram que 44% das mulheres não podem execer a sua autonomia corporal – não são capazes de efectuar escolhas sobre contracepção cuidados de saúde, e se querem e com quem querem ter sexo.
E, globalmente, cerca de metade de todas as gravidezes são não intencionais; contudo muitas mulheres gostariam de ter mais crianças e não o conseguem fazer.
A proporção de mulheres que conseguem de facto atingir as suas aspirações pessoais de fertilidade é apenas cerca de 25% em muitos países de rendimento baixo e médio.
Por isso escolhemos para tema deste ano do Dia Internacional das Mulheres o investir nas mulheres e meninas: inspirando a inclusão e promovendo a prosperidade.
E apesar de conhecermos o impacto positivo destes investimentos, em 2017 a percentagem de ajuda pública ao desenvolvimento para a igualdade de género que foi canalizada para organizações de mulheres foi menos de 1% e apenas para dar um exemplo.
P&D Factor: Realidades como a VbG , incluindo a violência sexual, a escassa cobertura de programas dirigidos a crianças e jovens em Educação Sexual Compreensiva, a quase ausência de programas de prevenção primária em matéria de VIH e outras IST são factos que confirmamos no terreno. O que, em sua opinião, explica estas realidades? Que mensagem transformadora não estamos a ser capaz de passar aos países e às pessoas?
MF: Não sei se haverá uma explicação que abarque essas realidades distintas, mas há linhas comuns que atravessam todas essas práticas – a desvalorização do papel das mulheres e da igualdade de género como investimento crucial e a falta de uma educação sexual compreensiva. A afirmação de que os direitos humanos são inegociáveis e que as conquistas são para ser protegidas seriam, na minha opinião, mensagens transformadoras.
P&D Factor: Assinala-se hoje o dia internacional da mulher, qual é para si, nas atuais funções e com o atual cenário mundial a mensagem a passar neste dia? Dia em que muitas mulheres são impedidas de sair à rua, de ir à escola e à universidade, de trabalhar fora de casa, de participar na vida politica e económica dos países, etc…
MF: Que os direitos humanos das mulheres, que os seus direitos sexuais e reprodutivos não são negociáveis; que é preciso investir mais na sua saúde e na sua autonomia e que não deixaremos que os retrocessos sejam aceites como inevitabilidades e que podemos e devemos persistir. Com dados, com resultados, com uma advocacia constante, mostrando o quanto as pessoas, sociedades e nações beneficiam quando aproveitamos o potencial de mais de metade da humanidade, quando lhes damos o seu lugar à mesa. E sobretudo dizendo que não cedemos, não retrocedemos e avançamos, sempre.
P&D Factor: Os dados sobre a gravidez não intencional e as mortes evitáveis de mulheres por razões associadas à gravidez e parto continuam a ser números que nos envergonham enquanto humanidade. O que precisamos de fazer?
MF: A mortalidade materna e as gravidezes não intencionais estão intimamente ligadas porque resultam de contextos de negação de direitos humanos, de falta de acesso a serviços e produtos e incumprimento de obrigações relativas ao direito à saúde – que é uma decisão política. A negação da autonomia corporal de mais de 45% das mulheres no mundo é causa e consequência destes resultados que nos indignam.
Nós sabemos hoje que a mortalidade materna se deve sobretudo a três grandes causas – preveníveis e tratáveis: hemorragias, eclâmpsias e infecções. Sabemos que cerca de 99% de todas as mortes maternas ocorrem nos países em desenvolvimento, com números ainda mais alarmantes durante as crises humanitárias. Digam lá que este não é o melhor indicador de desenvolvimento que podemos ter?
P&D Factor: Ouvimos com frequência governantes, parlamentares e OSC lembrar a divida de gratidão que Portugal tem com o UNFPA, pelo apoio técnico e financeiro recebido nas décadas de 70, 80 e 90 do século passado. Como está o saldar desta dívida simbólica mas que muito diz sobre a realidade das mulheres portuguesas?
MF: Portugal tem sido um parceiro de confiança do UNFPA. Promotor de uma agenda de empoderamento das mulheres e de investimentos na saúde e direitos sexuais e reprodutivos, Portugal tem facilitado contributos transformadores que se traduzem em sucessos nos países onde investe através da sua cooperação para o desenvolvimento e através do UNFPA.
A nossa relação com o Instituto Camões tem-se traduzido num reforço dos investimentos na Parceria de Supplies, na promoção da construção de equipamentos e formação de profissionais de saúde, apenas para dar alguns exemplos.
O Governo tem ainda contribuído para o orçamento ordinário do UNFPA o que nos permite alocar recursos de uma forma previsível e flexível para as áreas temáticas fundamentais.
E é um apoio que vai além do financeiro. E estamos muito gratos por esse envolvimento incondicional e pelos enormes avanços legislativos que o país tem feito ao longo das ultimas décadas. E aí a liderança do Grupo Parlamentar sobre População e Desenvolvimento tem sido absolutamente indispensável.
P&D Factor: Quais são na sua opinião os temas que não podemos deixar de incluir nas agendas políticas e económicas dos países se queremos realizar a CIPD e os compromissos que a sucederam mas também o Agenda 2030, sobretudo o ODS 5?
MF: Não podemos deixar de fora a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos; a autonomia corporal; o fim da Mutilação Genital Feminina e dos casamentos infantis, precoces e forçados; a eliminação das violências contras as mulheres e outros grupos em situação de vulnerabilidade – e sempre numa lógica de investimento. A CIPD foi transformada numa agenda perpétua porque foi reconhecido o seu carácter pioneiro e, simultaneamente, agregador de tantos direitos e oportunidades.
Os ODS são fruto desse esforço inicial e representam uma narrativa mais sofisticada do que foi articulado no Cairo, num crescendo de consciência de que as palavras importam e de que as mesmas devem ser seguidas do investimento necessário. Um investimento que é hoje mais urgente e mais volumoso para se poder fazer face às imensas crises que vivemos e que põem em causa os sucessos dos últimos anos. Acelerar parece ser a palavra de ordem.
P&D Factor: Sabemos que tem duas filhas adolescentes, por isso e agora numa dimensão mais pessoal - que mundo quer ajudar a construir para as suas filhas e quais os ganhos que a maternidade lhe tem proporcionado?
MF: Eu gostava muito de deixar às minhas filhas um mundo mais digno e mais justo, mas acho que falhei, que falhamos enquanto colectivo.
Um contexto de policrises, de emergência climática, de narrativas populistas que instrumentalizam preocupações legítimas e as transformam em armas de arremesso contra os direitos humanos de grupos em situação de vulnerabilidade, não é o legado que lhes queria deixar. Mas espero ter-lhes mostrado o valor da empatia e das oportunidades que lhes foram dadas e que elas possam levar a bom porto esta transformação que eu quis muito que fosse para elas.
A maternidade fez-me mais generosa e combativa. Inspiro-me nas minhas filhas e aprendo com elas que vale a pena querer mais e melhor para as outras pessoas.