Lígia Morais - Uma mulher que esteja grávida não sabe quais são os seus direitos, e de como pode exigir que os mesmos sejam cumpridos
- Data de publicação 17 maio 2024
Num mundo onde a informação é abundante, mas muitas vezes dispersa, a clareza sobre os direitos das mulheres grávidas permanece um desafio. Nesta entrevista exclusiva, Lígia Morais, uma voz proeminente na defesa dos direitos das mulheres, desvenda o véu sobre esta questão crucial. Com uma perspetiva esclarecedora, ela aborda a importância do conhecimento e da assertividade na reivindicação dos direitos garantidos por lei às futuras mães. Este artigo não só ilumina as proteções legais existentes mas também serve como um guia prático para que as mulheres grávidas possam aceder com confiança aos cuidados de saúde materna, assegurando que a sua saúde e bem-estar, assim como os do bebé, sejam prioritários.
"Uma mulher que esteja grávida não sabe quais são os seus direitos, e de como pode exigir que os mesmos sejam cumpridos." - Lígia Morais
P&D Factor - O que esteve na base da constituição da OVO – Observatório Violência Obstétrica, e quais as principais iniciativas?
Lígia Morais: A OVO - Observatório Violência Obstétrica é uma associação portuguesa que surgiu em 2022 com o objetivo principal de combater e prevenir a violência obstétrica em Portugal. A violência obstétrica refere-se a qualquer forma de abuso, negligência ou falta de respeito durante o processo de cuidados de saúde materna, desde a gravidez até ao parto e pós-parto.
A OVO formou-se espontaneamente como Movimento EuViVO, a 21 de Outubro de 2021, depois de ter sido publicado um comunicado da Ordem dos Médicos (OM) [que afirmava que o conceito de violência obstétrica não se aplica a Portugal]. A nossa intenção é apoiar mulheres que sofreram partos traumáticos, atendimentos discriminatórios, sem acompanhamento na área da saúde mental e da saúde feminina (fisioterapeutas de saúde uroginecológica, por exemplo).
A associação atua a nível nacional e tem como princípios a dignidade humana, a igualdade de género, a defesa dos direitos na gravidez, no parto e no pós-parto, a não-violência e a cooperação. Fundamenta a sua ação nos instrumentos internacionais de Direitos Humanos, na Constituição da República Portuguesa e demais legislação nacional de proteção dos direitos fundamentais, bem como nas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e nas evidências científicas.
Entre as principais iniciativas da OVO estão a recolha de relatos/denúncias e respetivo tratamento de dados para o nosso relatório; resposta aos emails e pedidos de orientação quer sejam legais ou psicológicos; trabalhar em conjunto com outras associações nacionais e profissionais de saúde para promover mudanças políticas que protejam os direitos das mulheres grávidas e parturientes, e que garantam a implementação de práticas obstétricas respeitosas e baseadas em evidências; colaboração com organizações internacionais que tem os mesmos desafios que Portugal porque a violência obstétrica é sistémica.
A OVO desempenha um papel crucial na defesa dos direitos das mulheres durante a gravidez e parto em Portugal, promovendo uma cultura de respeito, dignidade e autonomia no cuidado materno.
P&D Factor - Quais os principais desafios que a OVO enfrenta?
Lígia Morais: Quando temos o controlo do nosso corpo, temos controlo de todos os aspetos das nossas vidas.
P&D Factor - Casamentos infantis, Precoces, Forçados ou Combinados
Lígia Morais: A OVO enfrenta uma série de desafios significativos, a começar por falar de algo que não é reconhecido oficialmente pela comunidade médica.
Paralelamente a isto, temos o que várias ONG enfrentam, a começar por sermos todos voluntários, e dedicarmos um tempo semanal à Causa, e por vezes a fazer ginástica entre o tempo do nosso trabalho efetivo que nos paga as contas ao final do mês, à questão do tempo de famílias com crianças pequenas; na questão de financiamento em quem dependemos de donativos e quotas das pessoas associadas; depois resistência institucional, falta de consciencialização, estigma e tabu por parte das vítimas em falar e as mudanças políticas e legislativas que enfrentamos, que afetam os direitos das mulheres, a saúde materna e as políticas de saúde em geral, tal como aconteceu no decorrer das últimas eleições legislativas.
P&D Factor: O que podemos saber sobre o “conceito” de violência obstétrica?
Lígia Morais: Embora a violência obstétrica (VO) seja reconhecida por várias organizações internacionais, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), ainda existem algumas questões de consenso em relação ao seu conceito que podem entravar alguns avanços.
Como por exemplo a existência de uma definição do termo violência obstétrica varia entre diferentes organizações e países, o que leva a interpretações ambíguas e até divergentes sobre o que constitui violência obstétrica. O que também dificulta a compreensão clara do problema e a adoção de medidas eficazes para combatê-lo. Ao mesmo tempo a resistência institucional - instituições médicas e profissionais de saúde podem resistir à adoção de uma definição ampla de violência obstétrica, porque pode implicar reconhecer e abordar práticas obstétricas que são amplamente aceites e/ou ‘tradicionais’, mas que podem ser prejudiciais ou abusivas. E a sua complexidade, a VO é um fenómeno multifacetado, que envolve uma ampla gama de comportamentos e práticas, desde falta de informação e consentimento até abusos físicos e emocionais durante o parto; essa complexidade torna difícil estabelecer um consenso claro sobre o que constitui violência obstétrica e como abordá-la de forma eficaz.
Perante isto tudo, foi tornada pública, recentemente, uma tomada de posição conjunta da European Association of Perinatal Medicine (EAPM), European Board and College of Obstetricians and Gynaecologists (EBCOG) e European Midwives Association (EMA), denominada “Substandard and disrespectful care in labour – because words matter” (European Journal of Obstetrics & Gynecology, 2024) que basicamente nos diz que “(…) acreditamos que o termo ‘violência obstétrica’ não deve ser utilizado para descrever situações de atendimento precário e desrespeitoso, pois não auxilia na identificação do problema subjacente, suas causas ou sua correção. Geralmente é visto como um termo injusto e ofensivo por obstetras e outros profissionais de saúde, incluindo aqueles que visam proporcionar experiências seguras e positivas no trabalho de parto e nascimento. Pode gerar reações emocionais negativas nos profissionais de saúde, juntamente com uma mentalidade mais defensiva e menos colaborativa. O termo não ajuda a criar confiança entre os diferentes intervenientes envolvidos no objetivo de melhorar as experiências positivas das mulheres no trabalho. “
Em contrapartida, congratulamo-nos com o estudo, publicado em Abril, sobre violência obstétrica e ginecológica na União Europeia, enquadramentos legais e guias educativos para a prevenção e eliminação, cuja investigação foi solicitada pela Comissão dos Direitos da Mulher e igualdade de género do Parlamento Europeu (FEMM) com o objetivo de conhecer a situação da violência ginecológica-obstétrica na Europa nos 27 países. E um dos pontos mais relevantes é a definição e compreensão deste conceito.
É necessário trabalhar para superar obstáculos e promover uma compreensão mais ampla e clara da violência obstétrica, a fim de garantir que todas as mulheres recebam cuidados de saúde materna seguros, respeitosos e livres de violência. Para isso a OVO encontra-se a trabalhar internacionalmente com outros organismos para a existência uma linha de pensamento comum e coerente.
P&D Factor: A OMS recomenda a existência de um Plano de Parto. De que falamos e qual a realidade em Portugal?
Lígia Morais: Um Plano de Parto é um documento que descreve as preferências e desejos da mulher em relação ao parto e aos cuidados durante o trabalho de parto, parto e pós-parto. Geralmente, inclui informações sobre intervenções médicas desejadas ou evitadas, preferências de posição durante o parto, preferências de alívio da dor, planos de acompanhante, entre outras questões. O objetivo do Plano de Parto é capacitar a mulher a tomar decisões informadas sobre o seu parto e garantir que os seus desejos sejam respeitados pelos profissionais de saúde.
A realidade dos Planos de Parto/nascimento varia de norte a sul do pais, tanto no Serviço Nacional de Saúde e nos hospitais privados. Algumas maternidades e profissionais de saúde incentivam ativamente as mulheres a criar e usar um Plano de Parto como parte dos cuidados pré-natais. No entanto, a implementação e adesão a estes planos podem ser inconsistentes o que interfere com a realização da lei 15/2014 alterada pela 110/2019 no artigo 15º Prestação de cuidados e elaboração do plano de nascimento.
Existem lacunas na disponibilidade de dados específicos ou na compreensão completa da situação da saúde sexual e reprodutiva, incluindo da violência obstétrica, em Portugal. A colaboração entre instituições de saúde, organizações da sociedade civil e academia será crucial para abordar essas lacunas e promover políticas e práticas que melhorem a saúde e o bem-estar das mulheres em Portugal, com ação direta na prevenção da violência obstétrica.
P&D Factor: O tema da violência obstétrica (VO) integra a formação de profissionais? Existe regulamentação sobre VO? São necessárias?
Lígia Morais: A formação de profissionais de saúde deveria incluir questões relacionadas com a violência obstétrica, incluindo o reconhecimento dos sinais e sintomas, a sensibilização para os direitos das mulheres grávidas e parturientes, e estratégias para prevenir e responder à violência obstétrica de forma eficaz. A inclusão da VO na formação de profissionais de saúde ajudará a aumentar a consciencialização sobre este problema, a promover práticas obstétricas respeitosas e empáticas, e capacitar profissionais de saúde a fornecer cuidados de qualidade que respeitem os direitos e a dignidade das mulheres durante o parto e o pós-parto.
Conforme resulta do recém-publicado Relatório da Comissão Europeia Obstetric violence in the European Union: Situational analysis and policy recommendations (2024), de todos os países da União Europeia apenas Portugal tem legislação específica sobre o parto, que promove explicitamente cuidados maternos respeitosos, direitos humanos e uma abordagem fisiológica ao parto. No entanto, nenhum Estado-Membro, nem mesmo Portugal, aprovou uma lei nacional que aborde e defina diretamente a Violência Obstétrica, muito menos que a criminalize.
A Lei n.º 110/2019, de 9 de Setembro, estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 15/2012, de 21 de Março. Introduziu um vasto conjunto de direitos, entre eles, o direito à assistência contínua (15.º G e 18, n.º 2), a um tratamento condigno e respeitoso, sem violência ou discriminação (15.º A, n.º 1, c), d), e)), à Informação, recusa e consentimento informado (15.º A, n.º 1, a)), à Liberdade, autonomia e autodeterminação (15.º A, n.º 1, g)), à mínima interferência 15.º F, n.º 2 e 6), ao acompanhamento (12.º, 17.º e 32.º-A) e aos melhores cuidados de saúde (15.º A, n.º 1, f) e 15.º F, n.º 2 e 6).
Sucede, porém, que as entidades prestadoras de cuidados de saúde e os profissionais de saúde incumprem reiteradamente esta lei, sem que existam quaisquer consequências legais, não havendo lugar à efectiva responsabilização civil, penal, laboral ou contra-ordenacional. Acresce que, após publicação desta lei, não foram feitos quaisquer esforços de atualização dos protocolos hospitalares ou dos currículos académicos de médicos e enfermeiros para conformar as práticas à lei. Também não houve qualquer movimento, por parte das Ordens Profissionais, de sensibilização para a existência e erradicação da Violência Obstétrica.
Independentemente da existência de regulamentação específica, é importante que os sistemas de saúde promovam práticas obstétricas respeitosas e baseadas em evidências, e que os/as profissionais de saúde recebam formação adequada para reconhecer, prevenir e responder à violência obstétrica de forma adequada e eficaz.
P&D Factor: A Lígia Morais refere, frequentemente, a importância das mulheres serem informadas dos seus direitos em matéria de gravidez e parto, no contexto da literacia em saúde, incluindo saberem os seus direitos e que podem fazer Reclamação por Violência Obstétrica. Sabem exatamente a quem recorrer, o que e como fazer?
Lígia Morais: Atualmente uma mulher que esteja grávida não sabe quais são os seus direitos, e de como pode exigir que os mesmos sejam cumpridos.
É fundamental que as mulheres estejam informadas sobre seus direitos durante a gravidez e o parto. A literacia em saúde desempenha um papel crucial nesse processo, permitindo que as grávidas compreendam seus direitos e saibam como agir.
O primeiro é saber que tem direito à informação e ao consentimento informado. Os profissionais de saúde devem explicar de forma clara e compreensível o diagnóstico, tratamento e procedimentos à mulher. Elas têm o direito de saber o que está acontecer e como podem colaborar. Ao mesmo tempo, este consentimento informado é continuo, ou seja, por exemplo uma mulher que não queira epidural quando é admitida para o parto, e ao fim de 6h de trabalho de parto solicita, os profissionais de saúde só tem de assegurar o mesmo. É essencial respeitar a integridade corporal das mulheres, evitando procedimentos invasivos, dolorosos ou arriscados, a menos que estritamente indicados pelas evidências científicas.
Reconhecer o direito das grávidas a um acompanhante da sua escolha durante o pré-natal e o parto é fundamental para melhorar a qualidade da assistência, sendo que a nossa lei permite 3 acompanhantes em regime de rotatividade.
É importante lembrar que fazer uma reclamação ou denunciar um caso de violência obstétrica pode ser um processo emocionalmente difícil, e as mulheres devem ser apoiadas e respeitadas na procura por justiça e reparação.
No nosso site, temos uma área especifica com todos os passos descritos: https://ovoportugal.pt/passos-juridicos/
Neste momento, temos protocolo de cooperação com a Ordem dos Advogados, para a sensibilização do que é a Violência Obstétrica e será na própria ordem que poderão saber quais os advogados que trabalham o mesmo, tal como a própria APAV que também colabora no sentido de orientação.
Aconselhamento jurídico Probono é algo que o OVO gostaria de implementar. Neste momento, estamos focados na parte da saúde mental e para tal estamos a concluir um projeto-piloto de grupo de apoio terapêutico, liderado por psicólogos com especialidade em trauma.
P&D Factor: O que precisa de ser feito?
Lígia Morais: Antes de mais reconhecer o termo violência obstétrica, depois reconhecer que a mesma existe, e em seguida, o que se pode fazer para eliminar.
Posteriormente devemos promover cuidados de saúde materna seguros e respeitosos, sendo que na nossa visão existem seis áreas que precisamos de trabalhar, como por exemplo:
Sensibilização, informação e educação: É fundamental aumentar a consciencialização sobre a violência obstétrica entre profissionais de saúde, gestores de saúde, legisladores, comunidades e o público em geral. Isso pode ser feito por meio de campanhas de sensibilização, workshops educativos, eventos comunitários e recursos educacionais acessíveis.
Formação profissional: Os/As profissionais de saúde devem receber formação adequada sobre direitos das mulheres, ética obstétrica, comunicação sensível e práticas de cuidados baseadas em evidências. Isso ajudará a garantir que estejam bem equipados/as para reconhecer, prevenir e responder à violência obstétrica de forma eficaz.
Políticas e legislação: Cumprimento da lei 110/2019 e sua fiscalização.
Apoio às vítimas: É essencial fornecer apoio abrangente e acessível às vítimas de violência obstétrica, incluindo apoio emocional, jurídico, médico e psicológico. Isso pode ser feito por meio de serviços especializados, linhas de apoio, grupos de apoio e redes de solidariedade.
Monitorização e Fiscalização: Os sistemas de saúde devem ser monitorizados e fiscalizados para garantir que os padrões de cuidados obstétricos sejam respeitados e que os casos de violência obstétrica sejam identificados e abordados de forma adequada. Isso pode envolver a criação de mecanismos de denúncia seguros e confidenciais e a realização de auditorias regulares.
Investigação e Advocacia: É necessário continuar a investigar e documentar a prevalência e os impactos da violência obstétrica, bem como a eficácia das intervenções para prevenir e responder a esse problema. Isso ajudará a informar a definição de políticas, a defesa dos direitos das mulheres e a melhoria contínua dos cuidados de saúde materna.
Essas são apenas algumas das ações que podem ser tomadas para abordar a violência obstétrica. É essencial que governos, organizações de saúde, profissionais de saúde, grupos da sociedade civil e comunidades trabalhem de forma colaborativa e comprometida para garantir que todas as mulheres tenham acesso a cuidados de saúde materna seguros, respeitosos e livres de violência.
Quem é Lígia Morais? |
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Lígia Morais – Mulher, Mãe e Activista. Trabalha há mais de 25 anos no sector financeiro, sendo que desde que foi mãe em 2016 a sua vida deu uma rotação de 180º e desde 2017 actua em paralelo como Educadora Perinatal e Consultora de Amamentação/Lactação Certificada pelo organismo máximo IBLCE, sendo reconhecida como profissional de saúde em alguns países. Tem dupla nacionalidade (Portuguesa e Cabo-verdiana) e vive em Lisboa. Formou-se em Gestão e Sistemas de Informação, e especializou-se em Política de Género, Igualdade e Não-Discriminação e em Aleitamento Materno. O voluntariado é uma parte muito importante da sua vida, colaborando actualmente com o projecto SOS Amamentação. É uma activista pelos direitos reprodutivos das mulheres, sendo membro fundador e Vice-presidente do OVO – Observatório de Violência Obstétrica. Site: https://ovoportugal.pt/ Instagram Lígia Morais: https://www.instagram.com/ligiamorais_amamentacao/ Instagram OVO Portugal: https://www.instagram.com/ovoportugal/ |