Cláudia Múrias é membro da Associação Espaços – Projetos Alternativos de Mulheres e Homens
P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?
Cláudia Múrias (CM): Realmente, o papel do associativismo é um papel muito importante para as democracias. Por isso é que foi proibido pelo Salazar durante o Estado Novo. Após o 25 de Abril, as associações voltaram a ser constituídas, muitas vezes dinamizadas por docentes, que tinham uma menor carga horária (contrariamente agora, cuja profissão está burocratizada) e um forte apelo educador e transformador. Tradicionalmente, são as associações que dão voz aos assuntos de cidadania, colocando-nos na agenda pública, mas atualmente, com o aparecimento das redes sociais – novos media – e a emergência da figura de influenciadora social, o papel coletivo das associações começa a ser substituído pela partilha direta da experiência individual que estas pessoas fazem, divulgadas com o patrocínio comercial de algumas marcas ou produtos, sem a intermediação das associações. Assim, o debate de ideias corresponde à força comercial das marcas e à popularidade das influenciadoras e não à força do diagnóstico social ou à validação do conhecimento científico.Impera a desinformação porque há interesses de grupo que se impõem a outros, apenas por questões comerciais e de popularidade e adesão do público. Os grupos com menos poder social não conseguem ter a sua opinião ou necessidades divulgadas e refletidas no debate público. Aliás, quase que não há reflexão, o que eu noto é que, mesmo nas esferas próprias de debate e questionamento, como o Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, criado como um órgão de consulta em matéria de conceção e implementação das políticas de igualdade, que assegura a representação de departamentos governamentais e de organizações representativas da sociedade civil, sendo um espaço de debate e pensamento sobre as questões de género e as questões das mulheres, pouco se fala coletivamente. Considero que a participação da sociedade civil organizada nos vários processos de tomada de decisão e de definição das políticas pública é garantia de uma efetiva implementação das aspirações e necessidades da sociedade, contudo, não é isto que está a acontecer. As reuniões do Conselho Consultivo têm centrado o debate nos planos nacionais de ação, especialmente na concretização de medidas e na obtenção dos objetivos definidos. Não se fala de educação sexual nem das dificuldades que as mulheres têm em exercer os seus direitos sexuais e reprodutivos, não se fala de questões laborais das mulheres, para além daquilo que responder aos diagnósticos feitos a nível nacional. Por exemplo, uma das áreas de intervenção valorizadas nos planos é a mobilização das mulheres para as áreas STEM – Science, Technology, Engineering and Mathematics, apesar da percentagem de mulheres cientistas e engenheiras em Portugal ser superior à média da União Europeia. Para além da área específica da Informática, onde temos menos mulheres, o problema consiste na sub-representação feminina nos cargos de liderança – segregação vertical – e é transversal a todos os setores da economia. Relativamente à segregação horizontal, parece-me mais útil debater o modelo de desenvolvimento económico que desvaloriza a economia do cuidado, setor que emprega muitas mulheres com baixos salários, ou a agricultura e o artesanato, áreas onde as mulheres rurais sentem muitas dificuldades de apoio financeiro e acesso ao crédito, sentindo-se desamparadas. Estes setores respondem a problemas atuais da sociedade civil portuguesa e a necessidades locais de territórios onde as associações de mulheres e os feminismos têm dificuldade de se instalar e crescer devido ao conservadorismo social que reforça os estereótipos de género. Ir contra a opinião do marido, por vezes não é possível. Também os direitos sexuais e reprodutivos são de menor acesso nas comunidades rurais. Pode ser complicado recorrer a uma consulta de planeamento familiar ou interromper voluntariamente uma gravidez, por exemplo. Considero que dar condições de emergência e manutenção do associativismo é uma forma de servir as necessidades de grupos socialmente vulneráveis. Atualmente é difícil ter uma massa associativa que pague quotas, por exemplo, não há pessoas para pagar quotas. Ser associada de uma entidade é fácil, pagar as quotas todos os anos, em Portugal, é muito difícil, para as mulheres portuguesas é muito difícil, devido aos baixos rendimentos. Se forem trabalhadoras por conta própria ou trabalhadoras familiares, pior ainda. Não há orçamento nem condições para a participação cívica. Quando estamos reunidas com outras associações são evidentes os problemas em manter compromissos enquanto entidades empregadoras, de angariação e mobilização da massa associativa, dificuldades de financiamento, etc., não há apoio para dinamizar o associativismo e aumentar a participação cívica das pessoas. É um silenciamento completo. Como fazer advocacia pelos direitos das mulheres? Se calhar as associações deviam estar mais articuladas para fazerem valer a sua voz, porque acho que estão bem conscientes do pensamento feminista que falta desenvolver no país e dos direitos das mulheres e da igualdade ainda por conquistar. O Estado neste momento parece estar preocupado em melhorar as respostas dos serviços públicos, mas pouco aberto à situação da sociedade civil organizada. Se os media não pegarem nas questões de género, não derem voz, nós estamos com muita dificuldade em sensibilizar a sociedade. Por exemplo, as Marchas, organizadas pela sociedade civil em dias específicos como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, o Dia Internacional das Mulheres ou as Marchas do Orgulho de Lisboa, do Porto e de outras cidades, são noticiadas nos meios de comunicação social e servem para alertar sobre a discriminação, mas as imagens que aparecem centram-se praticamente nas pessoas politicamente ativas que as apoiam. O jornalismo atual não visibiliza a participação cívica e democrática, a cidadania. Fala-se de violência contra as mulheres, há notícias e reportagens sobre o crime de violência doméstica, mas, reportagens sobre desigualdade de género não. Atualmente, os meios de comunicação social não estão próximos da mudança, da educação. Dantes estavam mais responsabilizados na construção de igualdade, agora o diálogo com a sociedade civil desapareceu, foi substituído pela vox populi. É preciso apelar de novo a esta responsabilização.
P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?
CM: Há uma ilusão de igualdade na sociedade portuguesa, as pessoas acreditam que há igualdade entre mulheres e homens. Trabalho em contexto de psicologia comunitária e em contexto de formação contínua e verifico uma grande necessidade de sensibilização sobre igualdade e não discriminação e sobre feminismos. As pessoas sabem que houve um avanço social na inserção das mulheres no mercado de trabalho e em termos educacionais, até porque fazem parte dessa geração. Desde a década de 60 do século passado que as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho e aumentaram fortemente a sua escolarização. A coeducação reforçou esse sucesso na capacitação e qualificação das mulheres, combatendo a tradicional diferenciação das competências profissionais de mulheres e de homens. Parecia que o país recuperava do atraso e que a democratização iria criar igualdade de oportunidades, contudo não houve uma reflexão transversal sobre a condição social e jurídica das mulheres portuguesas. A emancipação não se cumpriu e a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos foram sucessivamente adiados. A interrupção voluntária da gravidez foi referendada por duas vezes e a globalização da economia trouxe a estagnação salarial, a precariedade laboral ou o empreendedorismo e a criação do próprio emprego. Muitas mulheres, mesmo licenciadas, mestras ou doutoradas, vivem precariamente de projeto em projeto, de bolsa em bolsa, sem carreira profissional ou contributiva. As áreas de atividade económica tradicionalmente femininas, como o setor da prestação de cuidados, especialmente, o trabalho doméstico, os cuidados na educação e na primeira infância, os serviços de saúde, de assistência social ou cuidados continuados, caracterizam-se pelos baixos níveis de remuneração e elevadas exigências físicas e emocionais. Contrariamente, os setores tradicionalmente masculinos, como os setores financeiro e industrial, de gestão ou de engenharia, caracterizam-se pelos salários elevados e regalias e benefícios associados. O diferencial salarial entre mulheres e homens é de 17%. Acresce ainda que em Portugal as mulheres gastam mais horas diárias em atividades domésticas e de apoio à família, encontram-se sobrecarregadas. Esta situação devia alertar-nos. Muitas mulheres vivem em exaustão. Não foram educadas para respeitar o seu corpo ou ter um estilo de vida saudável, pelo contrário, foram educadas para assegurar todas as tarefas e responsabilidades que os homens não querem assumir, especialmente, as tarefas domésticas quotidianas não remuneradas. Se há homens que assumem as tarefas parentais, muitos afastam-se desse trabalho. E ainda há o cuidado com pessoas idosas ou dependentes, na família ou profissionalmente, são as mulheres que asseguram este cuidado. Portugal é o terceiro país europeu mais envelhecido – faltam respostas públicas formais e informais a longo prazo que incorporem uma estratégia integrada de apoio à família. Sem estas respostas, muitas mulheres acabam por abandonar o mercado de trabalho quando têm de prestar cuidados a pessoas dependentes, doentes ou incapacitadas. A sociedade portuguesa não problematiza estas situações de discriminação. Naturaliza, hierarquiza e invisibiliza. A crença na diferença entre mulheres e homens é muito forte. Os preconceitos contra as mulheres também. Simbolicamente, as mulheres não são iguais aos homens. São o segundo sexo. As mulheres não são socialmente reconhecidas, são subalternizadas. Merecem menos, porque valem menos. Portanto, os problemas das mulheres são problemas menos importantes, menores. Este paternalismo ainda é muito forte. A dependência entre mulheres e homens é dominante na nossa sociedade. Os homens não abdicam dos privilégios machistas, que lhes retira responsabilidades familiares e lhes dá tempo para lazer e desporto, e as mulheres precisam de um homem para melhorar o seu estatuto social, para serem socialmente validadas, e para não caírem na pobreza. A família nuclear é muito valorizada. A Sagrada Família, vigora a heteronormatividade. Isto porque os direitos sexuais e reprodutivos foram sempre amordaçados e desconsiderados enquanto direitos humanos, nunca abertamente debatidos. O foco centrou-se nas questões de saúde pública. Mas só iremos avançar quando o debate for transversal a toda a sociedade. Os direitos humanos têm de ser debatidos em todas as instituições democráticas: a universidade, a escola, a saúde, o associativismo, os meios de comunicação social, o jornalismo, a cultura. O projeto educativo não se esgota no associativismo, nas escolas ou na comunidade. A cultura é muito importante para a transformação social. A Paula Rego teve um papel fundamental no questionamento dos direitos das mulheres com os seus quadros, por exemplo, com a série Aborto. Os museus e a comunicação social têm responsabilidades formativas. E a universidade tem de estudar e investigar as questões de género e dos direitos humanos.
P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?
CM: A Autonomia Corporal é algo essencial que tem de ser trabalhado com todas as pessoas, incluindo trabalhar com rapazes e com homens. A nossa sociedade é ainda muito machista. A ideia da “coutada do macho latino” está muito disseminada. É urgente trabalhar o desenvolvimento humano de todas as pessoas. A educação serve para possibilitar o desabrochar de uma personalidade, criar pessoas cidadãs de pleno direito, com pensamento próprio, com voz, que tomem da palavra para exprimir opiniões, que vivam com autonomia, responsáveis, empoderadas e com um estilo de vida saudável. A autonomia corporal é essencial, mas como a educação sexual é um projeto recente e pouco implementado, temos um país dividido, com uma parte do território a reconhecer a liberdade e autonomia dos corpos, com valores sociais mais laicos, e outra parte com valores mais religiosos. Há muitos preconceitos associados, pessoas que não conseguem ver as mulheres como donas do seu corpo, capazes de decidir sobre a natalidade e a sua sexualidade, ou até sobre a sua vida. A culpa impera sobre a responsabilização individual e, para muita gente, um projeto de vida digno e autónomo é uma ideia estranha. O fado impera sobre a escolha individual, a natalidade é imposta “por vontade de Deus”. Por outro lado, desvaloriza-se a maternidade extensiva, a ideia de parentalidade é estranha à sociedade, e a paternidade é uma questão de posse – “dar o nome” – porque a função educativa fica com a mãe. Não é “preciso uma aldeia para educar uma criança”, basta uma mãe. E desta forma, as mães pagam um elevado custo social pela sua opção. Celebra-se o Dia da Mãe como uma homenagem, mas pratica-se uma maternidade intensiva, desgastante, que força as mulheres a dedicarem enormes quantidades de tempo (e dinheiro) aos filhos ou filhas. A criação das crianças é uma função social, da comunidade, entendendo-se como comunidade como um conjunto de pessoas em relação, com valores e práticas sociais comuns, que se respeitam e cuidam umas das outras e reivindicam politicamente por condições de vida dignas e justas. Este sentido de comunidade está desvalorizado, mas está implícito na ideia de Direitos Humanos universais, indivisíveis e inalienáveis. A autonomia corporal e o respeito pelo seu corpo fazem parte destas condições dignas. Deve ser protegida e promovida em todas as culturas e sociedades. É um direito humano fundamental para a dignidade, a liberdade e o bem-estar de cada pessoa. Contudo, não é assim que a sociedade portuguesa vê este assunto. Por baixa literacia em saúde, as pessoas delegam a decisão na classe médica, confiam porque não se sentem preparadas para tomar a decisão por si. Estão desempoderadas e têm um forte respeito à autoridade, à “bata branca”, e a classe médica aproveita-se deste desconhecimento para exercer a sua profissão de uma forma mais autoritária e assimétrica, privilegiando os seus interesses de classe em detrimento dos direitos humanos de utentes. A autonomia corporal é um desses direitos. Basta ver a polémica com a violência obstétrica ou com os serviços de saúde que se afirmam objetores de consciência. É preciso mudar esta situação, educando para a cidadania, para a sexualidade e para a saúde. As nossas crianças têm estas matérias incluídas nos curricula escolares, mas as pessoas adultas ou pessoas idosas não tiveram esta oportunidade e merecem um tratamento justo e digno para tomarem as suas decisões em saúde sobre o seu corpo sem coerção ou violência. O consentimento informado tem de ser uma prática bem implementada em termos de saúde.
P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?
CM: Efetivamente uma das nossas motivações era a prevenção primária e a educação para a saúde, a igualdade e a justiça social. Chegámos a concorrer a financiamento a nível nacional dentro destas áreas, mas como não tínhamos histórico de atividade, acabámos por não conseguir financiamento, ou seja, fizemos tudo para começarmos a trabalhar na educação e sensibilização da comunidade e públicos estratégicos, mas não conseguimos. Éramos pessoas de Psicologia Social, das Ciências da Educação, da Educação Social, tínhamos recursos humanos competentes e bastante motivação. Desde 2013 que começámos a apresentar candidaturas, mas tivemos as candidaturas reprovadas. Não porque os projetos não eram bons, mas porque nas listagens de ordenação de candidaturas, fomos mal pontuadas nos critérios relativos ao histórico de atividade das entidades. Obtínhamos 70 pontos (em 100 possíveis), mas não atingíamos o valor para financiamento, porque quando chegava à nossa colocação na lista, já não havia dinheiro para ser alocado, por isso não conseguíamos financiamento. Como tínhamos pessoas competentes disponíveis para trabalhar, se tivesse havido orçamento, poderíamos conciliar com outras atividades profissionais. Não tendo havido, as pessoas tiveram que arranjar emprego e outros trabalhos, o que dispersou os recursos humanos e o talento da associação. Houve atividades de voluntariado que conseguimos fazer, mas não conseguimos manter uma estrutura profissional. Com a partilha de experiência das restantes entidades do Conselho Consultivo da CIG, percebemos que não tínhamos condições para aceitar gerir projetos de grande orçamento. Perante as regras dos financiamentos, se ganhássemos, não víamos como iríamos gerir orçamentos de 100 mil euros, por exemplo. A entidade tinha que ter tesouraria que permitisse ir gerindo o projeto ao longo do tempo, devido a pagamento dos reembolsos terem alguns atrasos. Acresce ainda que algumas despesas não são reembolsáveis, mas por vezes há erros na tomada de decisão. Uma pessoa acaba por ir aprendendo a gerir os projetos, mas por vezes, a inexperiência faz com que haja despesas feitas, e que depois não sejam aceites, ou porque são ilegíveis, ou porque não foram bem justificadas. Tudo isto fez-nos ganhar consciência do risco que seria gerir grandes orçamentos e da falta de condições que tínhamos para assegurar essa gestão. Deixámos de concorrer a esses financiamentos. Esta situação foi-nos inibindo, ou seja, no fundo, fomos perdendo pessoas, uma vez que não dava para criar emprego de uma forma sustentada, para a equipa poder ganhar competência. Tivemos que optar por concorrer à Pequena Subvenção da CIG. Estávamos representadas no Conselho Consultivo (da CIG) enquanto organização para a igualdade de género, similarmente com as associações de mulheres que estavam tradicionalmente na CIG, e houve uma aposta da CIG para apoiar financeiramente as entidades de direitos humanos e de igualdade de género que tinham sido aceites mais recentemente. Obtivemos um pequeno financiamento. Mas, por exemplo, outra dificuldade que tivemos logo nessa primeira subvenção foi o corte no orçamento solicitado. Fizemos uma candidatura por 12 meses, cujo orçamento do projeto seria 7.000 euros, e o financiamento que nos foi atribuído foi de 1.500 euros. Mais uma vez ficamos na dúvida se tínhamos capacidade de executar o projeto só com aquele apoio. Correu bem, porque obtivemos um apoio financeiro para outro projeto através da Secretaria de Estado, e conseguimos assegurar a gestão dos dois projetos de acordo com as regras de cada um deles. Mas foi uma surpresa quando percebemos que o financiamento da pequena subvenção da CIG correspondia apenas a 40% da despesa total do projeto. Essa informação não tinha sido divulgada, foi uma surpresa vê-la escrita no contrato. Agora esta situação está ultrapassada, temos acesso às regras na abertura do concurso. Mas a precariedade dos financiamentos não permite assumir despesas a longo prazo com recursos humanos. Como fui eu que fiz as candidaturas pro bono, continuei a executar as candidaturas em prestação de serviços, nunca fui funcionária da organização, porque, enquanto tesoureira da associação, não ia assumir uma despesa fixa com recursos humanos quando não havia financiamento para cobrir essa despesa. Tivemos que fazer a gestão dos projetos apenas com prestação de serviços. Todas as pessoas prestaram serviços, trabalham na área da Cultura, por isso é normal trabalhar por projeto, não houve mal-estar nem expetativas quebradas. Mas de qualquer maneira, tivemos que gerir os projetos, e nalguns momentos, perante a apresentação das contas e a demora do pagamento do reembolso, tive que emprestar dinheiro à associação para as pessoas receberem atempadamente, e a pandemia não veio ajudar. De facto, a gestão dos financiamentos é feita através da partilha de bens pessoais dos membros dos órgãos sociais ou através de crédito bancário. Agora nos novos concursos do Portugal 2030, há menos liberdade no desenho dos projetos a candidatar. As ações de sensibilização passaram a ter referenciais de orientação para as temáticas que querem ver trabalhadas no terreno a nível nacional. Obviamente que esta alteração limita a livre iniciativa das associações. Os projetos da nossa associação sobre práticas alternativas e participativas de liderança deixam de ser valorizados, não se coadunam com o leque proposto. A diferenciação das candidaturas passa pelos compromissos e as metas de objetivos definidas, o que valoriza a experiência prévia da entidade na gestão de projetos, nomeadamente, na qualificação da administração pública sobre as temáticas previamente definidas. Contudo, os riscos da operação ficam todos do lado da associação. Se não conseguir cumprir as metas e objetivos, terá que devolver os valores financiados. Por exemplo, as dificuldades de mobilização de recursos humanos decorrentes da estrutura organizacional hierárquica da administração pública portuguesa podem ser uma ameaça (inultrapassável) ao sucesso da atividade. As associações passaram a ser vistas como executoras dos planos nacionais, mesmo que elas tenham tido voz na elaboração dos mesmos, esta visão atropela a dinâmica democrática dos mandatos dos órgãos sociais eleitos pela massa associativa. A situação poderia ser diferente. Por exemplo, a literacia para a saúde é uma área pouco executada. Os serviços públicos estão sobrecarregados com cuidados de prevenção secundária de saúde, ou seja, sinalização e intervenção em situações de doença. O Serviço Nacional de Saúde não consegue fazer prevenção primária, ou seja, educar e informar sobre Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, Planeamento Familiar (PF) ou Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). É necessário financiar cuidados de saúde de proximidade, focados na literacia e a educação para a saúde e afastados do conceito de doença ou de tratamento hospitalar. Financiar respostas comunitárias de prevenção primária, sustentadas a médio e longo prazo, geridas por associações e entidades de direito privado sem fins lucrativos, ou seja, da economia social. A existência de projetos educativos avulsos, dispersos no tempo e no território, não tem garantido a eficácia, a coerência e a esperada mudança de comportamentos e mentalidades. As associações que lutam pelos direitos das mulheres desempenham um papel crucial na implementação de políticas públicas para a igualdade, devem ver assegurado que a transferência de competências educativas corresponda à transferência de meios e de condições de trabalho, incluindo financeiras. A dependência do financiamento irregular é muito significativa e atenta à qualidade do trabalho desenvolvido por não permitir a especialização das organizações, a manutenção de empregos, talentos e atividades. Para além de serem ouvidas em todas as questões, leis e políticas que tenham impacto no género, o trabalho e tempo despendidos por profissionais e ativistas destas organizações devem ser remunerados em conformidade. Nenhuma ativista ou defensora dos direitos das mulheres deve abandonar o ativismo devido a dificuldades financeiras.
P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?
CM: Não sei se falta coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil organizada. Valoriza-se que as associações trabalham em prol do bem público comum, em prol de causas sociais, mas pouco mais. De um modo geral, as associações não são consideradas e a sua experiência não é valorizada, mesmo quando trabalham na comunidade em estreita colaboração com mulheres em situação de vulnerabilidade. As entidades financeiras não reconhecem ao associativismo competências de gestão e nãoestou certa que valorizem o talento profissional que possa existir. Pelo menos não encontro preocupações com o facto de as associações não conseguirem reter talento. Isto é, eu e outras colegas, não sei se vamos conseguir trabalhar nas associações por muito tempo, porque as associações não têm recursos e capacidade para nos contratar e pagar direitos laborais, possibilitar-nos uma carreira, com os benefícios obrigatórios por lei, por exemplo, com formação profissional. Isto não está de todo a acontecer, não há carreiras no associativismo. Há sempre concursos para novos membros, novas equipas, sempre pelo salário básico de início de carreira de técnico superior. Começam os projetos, contratam-se pessoas. Acabam os projetos, as pessoas saem e vão procurar novo trabalho. Na Alemanha, por exemplo, não é assim. A Alemanha tem uma longa tradição de apoio a associações sem fins lucrativos, que desempenham um papel importante no desenvolvimento social e económico do país. A transparência e a ética na gestão dos fundos são aspetos relevantes na sociedade alemã, havendo legislação que regula a atuação das associações. Em Portugal, algumas entidades, nomeadamente as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) ou algumas respostas de apoio às vítimas, têm protocolos de delegação de competências com a Segurança Social, comprometendo-se a prestar determinados serviços por um determinado orçamento previamente aprovado. Esta forma de financiamento permite melhores condições na gestão das respostas sociais e garante a qualidade dos serviços ao possibilitar a manutenção de recursos humanos qualificados ao longo do tempo, de uma forma competitiva. Mas em Portugal, o discurso de salários e de uma economia competitiva é aplicado apenas nas tecnologias e demais áreas onde trabalham os homens. Não se fala de competitividade quando o setor da economia tem 90% ou 70% de mulheres a trabalhar. Nestes casos, não é preciso ser um setor competitivo, que retenha talento e que cuide das pessoas, recompensando-as pelo seu trabalho. Quando são as mulheres não é preciso recompensar. Elas fazem-se por amor. Os salários e as remunerações, as condições de trabalho e as exigências laborais, os riscos psicossociais, como a conciliação trabalho-família ou a saúde e bem-estar da trabalhadora, não são considerados. Todo o investimento que as mulheres (e o Estado através da escola pública) fazem e fizeram na sua vasta qualificação académica e profissional não é recompensado nem reconhecido pelo Estado português. É curioso. Não se aplica aqui a lógica dos orçamentos sensíveis ao género. Há muito trabalho por fazer.
P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?
CM: Enquanto psicóloga comunitária, acredito que o país deve apostar no associativismo enquanto motor de desenvolvimento local. O sentimento de pertença é um fator motivador para a coesão social. O país desenvolveu-se bastante em termos de educação e saúde durante a Década das Mulheres (1976-1985) sob o lema “Igualdade, Desenvolvimento, Paz”. Investimos na formação de docentes e criámos o Serviço Nacional de Saúde. Tínhamos valores muito preocupantes nestas duas áreas, mas em termos de literacia, ainda temos indicadores baixos. Cerca de 40% das pessoas adultas têm dificuldades em compreender textos simples e em realizar cálculos básicos, o que indica baixos níveis de literacia em português e matemática. Este facto tem impacto na capacidade de tomar decisões informadas e na participação ativa na vida social, económica e política, refletindo a importância de melhorar a educação e as políticas públicas para promover a literacia em geral. O associativismo é uma forma da sociedade civil se desenvolver, se pensar, se organizar. Isto também foi feito. Houve investimento, as associações tiveram financiamento para executar algumas tarefas, organizaram-se, fizeram à sua maneira, responderam à massa associativa, etc., foi-se fazendo. Contudo, acho que há duas grandes tendências de investimento que foram vistas como antagónicas: investir no setor público ou investir no terceiro setor (ou associativismo ou economia social, tudo sinónimos). Eu acho que devem ser complementares. Porque, em democracia, há respostas que o Estado deve garantir enquanto serviço público e depois há respostas que devem ser plurais, alternativas para se poder falar em liberdade de escolha. E para usufruirmos da liberdade de escolha, precisamos de literacia. Portanto, este processo ainda está em curso. Ainda estamos a desenvolver a nossa democracia. Talvez seja o planeamento e a regionalização que estejam em falta. Porque para termos sucesso no desenvolvimento das mentalidades, temos que sistematizar, definir um plano a seguir, um plano de ação. Mas esta sistematização tem de responder ao princípio de igualdade, ou seja, tratar o que é igual de forma igual e o que é diferente de forma diferente. E as assimetrias regionais são evidentes no nosso país. Não podemos dar a mesma resposta e o mesmo tipo de Educação Sexual no país inteiro, devemos diferenciar o interior do litoral, os centros urbanos dos centros rurais, o Norte do Sul (no caso concreto da Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva), uma vez que o país é social e demograficamente diferente. Estas diferenças têm que estar previstas à priori, ou seja, através de um diagnóstico, para que o planeamento responda às diferenças, o planeamento não deve ser feito de cima para baixo, tem que dar resposta às necessidades da comunidade, que devem ser continuamente medidas. São as associações locais que fazem esta auscultação das necessidades locais durante o seu trabalho de terreno com a comunidade. A construção da política pública tem de refletir estas diferenças para responder ao território com uma perspetiva transformadora. Isto implica um diálogo entre o Estado e as associações que trabalham no território, conhecem o território, fazem trabalho direto com mulheres e raparigas, respondem à sua massa associativa, e que incorporem no quadro de pessoal, pessoas, nomeadamente, das áreas das Ciências Sociais e Educativas, que detenham saberes profissionais para a elaboração colaborativa de diagnósticos, planos, propostas de projetos que respondam à comunidade, possibilitando a melhoria no impacto das políticas públicas e na resposta aos compromissos internacionais assumidos por Portugal. E existe esta massa de profissionais capazes e competentes nas associações. Faltam as condições de trabalho e financiamento sistematizado a médio ou longo prazo, menos burocratizado, cujos objetivos e metas possibilitem uma avaliação das mudanças sociais em vez da mera quantificação de realizações. Os financiamentos anuais deveriam ser estruturados por áreas temáticas prioritárias, à semelhança da Plataforma de Ação de Pequim ou da Agenda 2030, documentos jurídicos internacionais orientadores da promoção de igualdade e do combate à discriminação. Desta forma, as associações poderiam concorrer aos apoios de acordo com a sua missão e atividades estatutariamente válidas, desenvolvendo parcerias com entidades da comunidade local.
P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?
CM: É preciso transmitir conhecimento cientificamente validado e trabalhar o sentido crítico e a empatia. A autonomia das pessoas sobre os seus corpos está ligada à capacidade de criticar as tradições e as normas sociais que existem e analisá-las no âmbito dos direitos humanos. Em Portugal, acho que somos ignorantes em termos de Ciências Sociais e Humanas devido à ditadura de direita, que proibiu estas áreas de conhecimento humano e instrumentalizou a ignorância do povo para o dominar e silenciar. Nestes 50 anos após o 25 de Abril, avançou-se na alfabetização e em termos de abandono escolar, mas ainda há muito a fazer. No geral, acho que se ensinou as pessoas a serem funcionais numa economia, mas não a serem cidadãs. Numa democracia tem de haver pluralidade e capacidade de diálogo, bem como direitos sociais salvaguardados por políticas públicas eficazes. Tudo isto tardou em Portugal. Houve alguns projetos educativos, como o SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) e outros, que conseguiram fazer algumas mudanças, mas a educação popular devia ter sido mais institucionalizada e sustentada. Nós tínhamos pessoas culturalmente socializadas para viver e sobreviver em ditadura, mas não tínhamos pessoas preparadas para viver em democracia, e nestes 50 anos, não educamos as pessoas para a democracia nem para os direitos humanos. Fomos substituindo o modelo autoritário por um modelo igualitário, mas sem promover um questionamento social assente em princípios e valores democráticos, próprios de um Estado de Direito. Por exemplo, a violência entre as pessoas, ou mesmo entre grupos sociais, é culturalmente tolerada, nomeadamente a violência doméstica, os comportamentos de violência, quer físicos, quer emocionais, quer psicológicos, são transversais à nossa sociedade e legitimados. As pessoas partem da sua experiência vivida, sem reflexão e sem diálogo. Se sobrevivi à forma como fui educada, posso reproduzi-la. Não vejo outra alternativa para a mudança social que não seja uma educação dialogante, coletiva e horizontalizada, onde se treine os processos deliberativos específicos da nossa democracia, com total liberdade. Trabalho estas metodologias em rodas de conversa e em espaços formativos, inspirando-me em autores e autoras que desenvolveram o seu trabalho académico em contexto de vivência democrática. Este trabalho tem que vir para a sociedade e a solução passa por um diálogo entre a academia, o político, as associações e o reforço dos sindicatos. Todas estas instituições têm um papel e uma voz neste processo, mas tem de haver renovação, não pode ser apenas com as pessoas que já estão nestes espaços, implica conseguir abrir às mulheres e às pessoas jovens. A juventude, neste momento, vê as desigualdades no acesso aos direitos sociais que não conseguimos evitar no processo de globalização e na gestão das crises económicas e pandémica, e sente-as como injustiças que não foram acauteladas pelo poder político. De facto, houve um investimento em termos de educação e de saúde para formar recursos humanos que vão agora contribuir para outros países europeus ou países ainda mais distantes. Às vezes partem logo após a licenciatura para fazerem os mestrados, há redes universitárias estruturadas para tal. Mas no geral, as pessoas não percebem o que se passou nestes últimos anos porque as políticas públicas foram desenhadas ao mais alto nível europeu e impostas à população sem debate. E a defesa dos direitos das mulheres surge descontextualizada, para responder à Europa, porque na candidatura ao financiamento tem que se justificar que se vai trabalhar a Igualdade de Género. Mas falta o questionamento e a reflexão. Não pensam criticamente sobre o modelo económico nem sobre justiça social. Não se questionam porque é que as empregadas da limpeza continuam a ser apenas mulheres, nomeadamente, mulheres racializadas ou mulheres imigrantes, e depois falta-lhes a empatia. As pessoas não se colocam no lugar da outra, por isso não conseguem entender que há vidas complicadas e exigentes, sem autonomia. Na maioria das vezes estão centradas nos seus privilégios. Falta reflexão, sentido crítico e empatia.
P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?
CM: É essencial construir ambientes sociais e escolares seguros e promotores de igualdade e de respeito pela dignidade da pessoa humana, que contribuam para o desenvolvimento democrático das gerações e para o desenvolvimento harmonioso da personalidade de cada pessoa em particular. Neste momento há enquadramento legal para fazê-lo em contexto escolar. Documentação como Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória ou as Aprendizagens Essenciais associadas às disciplinas destacam um conjunto de competências críticas e socio emocionais que devem ser desenvolvidas para que os direitos humanos sejam respeitados, incluindo os direitos das mulheres e a autonomia corporal. A Estratégia Nacional para a Cidadania refere o trabalho em rede, elencando várias entidades parceiras locais que podem ser convocadas e as associações feministas e defensoras dos direitos das mulheres são o elo principal da dinamização destes programas de mudança e transformação social. Entendo que a perspetiva da whole school approach como promotora do diálogo institucional que envolva ativamente a comunidade escolar alargada, desde estudantes, docentes, psicólogas e demais classes profissionais que atualmente trabalham nas escolas, pais, mães, associações de pais e todo o tipo de associativismo local, associações juvenis, desportivas, culturais e recreativas devem participar no plano de atividades centrado do desenvolvimento e empoderamento das raparigas e na responsabilização dos rapazes. Também os centros de saúde e as câmaras municipais, por exemplo, com os conselhos municipais de educação e de saúde, devem ser entidades dinamizadoras nestas redes locais. É preciso responsabilizar as instituições públicas para a tarefa fundamental do Estado de promoção da igualdade de género. Raparigas e rapazes têm que ter acesso a uma educação para a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos desde a entrada no jardim de infância para, mais tarde, poderem utilizar as consultas de planeamento familiar com autonomia. A educação para a saúde tem que ser transversal. As atividades devem ser integradas em programas coerentes de empoderamento das raparigas e mulheres. Como a autonomia corporal se coloca ao longo de toda a vida, as comissões de mulheres têm que ser reforçadas nos sindicatos e as universidades seniores devem acolher os feminismos e incorporar os direitos das mulheres. As associações feministas têm que fazer este trabalho, dialogar e ver reconhecido o seu espaço de intervenção, trabalhar com as mulheres e conseguir identificar as suas preocupações, dificuldades e discriminações diárias, especialmente com as mulheres em situação de vulnerabilidade, ou seja, mulheres com deficiência e incapacidade, idosas, ciganas, migrantes e rurais. É responsabilidade específica das associações feministas dar voz a estes grupos de mulheres. Por exemplo, as mulheres rurais têm ficado para trás por ausência de medidas políticas de ação positiva nos planos de desenvolvimento local. Vão envelhecendo sozinhas, apenas com o apoio da ação social. Com um associativismo feminista forte, sólido e financeiramente apoiado, a dinâmica seria outra. A estratégia é apostar no feminismo. É preciso um diálogo forte, construtivo e horizontal que só as associações feministas podem fazer.
P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?
CM: Atualmente a situação é mais grave porque as mulheres com visibilidade pública estão a ser alvo de violência cibernética através de discursos de ódio, ameaças e difamação, no intuito de as dissuadir de participar em posições de liderança. Entendo que tem de ser feito um trabalho informativo e de conscientização sobre a desigualdade de género e a importância da representatividade das mulheres em lugares de tomada de decisão cívico-política, mas também sobre a violência de género contra as mulheres em lugares de liderança. É necessário organizar grupos de reflexão, rodas de conversa e programas de mentoria para abordar estas questões. É preciso criar sororidade, formar redes de apoio e de trabalho colaborativo, criar sentido de pertença, falar claramente sobre os desafios e os riscos a que estão expostas, partilhar histórias na primeira pessoa de situações agradáveis e seguras, bem como de experiências de violência, formas de as ultrapassar e denunciar. Por exemplo, a violência contra as mulheres na política é um problema que ainda não tem visibilidade suficiente, cuja recolha de dados e estatística é escassa. Por isso, para além de proteger as mulheres preparando-as para agir perante a situação, devemos apelar às plataformas digitais para organizarem respostas institucionais. Por exemplo, a Meta, uma das maiores tecnológicas, criou um programa que oferece proteção a qualquer pessoa que se senta vulnerável a ataques maliciosos de hackers, direcionado a mulheres políticas, ativistas de direitos humanos, jornalistas, etc., através da adoção de medidas de segurança mais rigorosas, como ativar a autenticação em duas etapas, e executar frequentemente verificações de eventuais ameaças às contas nas suas redes sociais. Apesar das políticas empresariais das tecnológicas incluírem regras contra atos de violência que afetam desproporcionalmente as mulheres, como a distribuição de imagens íntimas sem consentimento, assédio ou perseguição, falsificações sexuais digitais, discursos de ódio e outras ameaças à integridade física, por vezes tardam a funcionar. A inteligência artificial deve ser uma ferramenta a usar pelas equipas de segurança e integridade para remover e reduzir o conteúdo nocivo e ilegal nas plataformas digitais, ao invés de permitir a criação de falsificações sexuais digitais e outros atos de violência contra as mulheres. É preciso regulação eficaz. Por sua vez, os sistemas de apresentação de queixas das plataformas digitais nem sempre são fáceis de utilizar, dificultando a denúncia e o pedido de apoio. Também esta informação deve ser mais acessível e amplamente divulgada.
P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?
CM: Acho que os próximos anos vão ser difíceis e que vão exigir a mesma capacidade de luta pela igualdade e pelos direitos humanos, incluindo os direitos e a saúde sexual e reprodutiva, que temos tido até agora. Há uma nova geração de mulheres e raparigas que está mais consciente da existência de violência obstétrica, de mutilação genital feminina ou de abuso sexual, da importância do consentimento, da saúde menstrual ou da afirmação de género, das desigualdades de acesso à procriação medicamente assistida, à interrupção voluntária da gravidez ou ao planeamento familiar em função do território, etc. Acho que esta geração de mulheres vai fazer a diferença, ser capaz de envolver homens e rapazes para exigirem as mudanças que têm tardado a acontecer, nomeadamente, em termos de investimento para a concretização de uma educação sexual compreensiva e abrangente e da existência de cuidados de saúde de proximidade. Acredito que daqui a 10 anos teremos uma sociedade mais reivindicativa dos direitos humanos, capaz de lutar pela igualdade de acesso para as pessoas vulnerabilizadas, e com melhor saúde sexual e reprodutiva. Mas não vejo o fim da História, porque acho que as forças conservadoras vão continuar com a sua luta contra os direitos sexuais e reprodutivos.
Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" |
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Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações. |