Marta Maia é Vice Presidente do GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos
P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?
Marta Maia (MM): Consciencializar as pessoas (para o poder e a voz) que têm de se unir e ter mais literacia, literacia política e literacia em saúde. Política e Saúde estão intimamente ligadas. Ter voz no capítulo por parte da sociedade civil é essencial para a democracia e para a justiça social. O trabalho de advocacia por parte das OSC é muito importante.
P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?
MM: Não existe consciência suficiente dos Direitos Humanos, não existe solidariedade suficiente, não existe justiça suficiente. Em Portugal não existe direito à habitação para todos; não existem condições de trabalho dignas em diversos setores, muitos emigrantes são explorados e discriminados, por exemplo; não existe acesso à saúde mental e à saúde oral para todos; não existe uma Justiça digna desse nome, os tribunais são de uma lentidão chocante e muitos juízes têm atuações escandalosas, vários casos foram levados a público; não existe uma verdadeira justiça social, Portugal é dos países europeus onde a fratura social é maior; não existe respeito pelo outro, existe muita discriminação de pessoas LGBTQI+, violência de género, desigualdades de género, racismo e xenofobia. Existe muita iliteracia, muito individualismo e muita injustiça. Portanto, os Direitos Humanos não são plenamente respeitados. Também há uma enorme falta de consciência ecológica e muito pouco respeito pela Natureza. Os Direitos da Natureza e da Biodiversidade ainda nem sequer foram criados.
P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?
MM: Existem várias formas de discriminação, com base no género, na classe social, na orientação sexual, na situação de migração, na deficiência, etc, que quando se cruzam potenciam os seus efeitos. Ora, a Saúde, os Direitos Sexuais e Reprodutivos e a Autonomia sobre o próprio corpo são um pilar da liberdade e da dignidade humana. Não é possível falar de Direitos Humanos sem se considerar o direito à autodeterminação sobre o corpo, a sexualidade e a identidade de género.
P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?
MM: É preciso garantir acesso universal, gratuito e não discriminatório aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Mas antes de mais é preciso investir em cuidados preventivos, senão andamos a correr atrás do prejuízo. É preciso entender a Saúde como ela é definida pela OMS, não apenas como uma ausência de doença e não apenas no plano físico. Não existe um acesso universal à saúde mental e a saúde sexual. Longe disso.
P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?
MM: As OSC não devem ser apenas prestadoras de serviços, mas agentes políticos e sociais com voz própria. As pessoas em geral desconhecem o papel importantíssimo das OSC. Para mobilizar as comunidades e fazer ouvir as suas vozes, é preciso implicar toda a sociedade, começando por mostrar a todos o imenso trabalho desenvolvido pelas OSC e mostrar o quanto toda a sociedade beneficia com ele. Os media e a academia podem ajudar nesse trabalho de dar a conhecer e valorizar o papel as OSC e mobilizar as comunidades. Todos ganhamos com isso.
P&D Factor:De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?
MM: Não se pode pensar o corpo e a sexualidade sem se considerar as emoções, os relacionamentos, o contexto social e cultural. Ora, a Educação Sexual, quando a há, é muito biologicista e fragmentada. Para promover a igualdade de género é preciso lutar contra a desinformação e o preconceito e remover o debate público informado nos domínios das desigualdades de género e da Educação Sexual e Reprodutiva.
P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?
MM: Muitas medidas podem ser tomadas, desde que haja vontade política e mobilização das comunidades. Por exemplo: formar os profissionais de saúde e da Justiça sobre violência de género, violência psicológica e os seus efeitos e violência doméstica; promover o acesso a serviços de saúde sexual centrados na pessoa, com acesso gratuito, confidencial e não discriminatório, promover a representação equitativa nos espaços de decisão; usar os media, figuras influentes e narrativas públicas para desconstruir mitos e desfazer preconceitos.
P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?
MM: Mulheres, meninas e jovens devem ser reconhecidas não como vítimas passivas, mas como sujeitas de direitos, agentes de mudança e líderes de transformação. Devemos ajudá-las a organizarem-se e a fazerem ouvir as suas vozes
P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?
MM: São necessários: leis e políticas que reconheçam a autonomia corporal como direito estruturante; prevenção primária, educação sexual e combate à violência de género; campanhas públicas baseadas na evidência científica, na justiça social e nos Direitos Humanos; financiamento de movimentos e organizações de base comunitária; diálogo entre mulheres, líderes comunitários, jovens e outros atores sociais capazes de mudar as normas a partir de dentro das comunidades; e desconstrução de estereótipos e tabus nos media, nas escolas, nas universidades, nas instituições culturais, nas artes...
P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?
MM: Com maior participação ativa da sociedade civil, com maior respeito pelos Direitos Humanos e com mais justiça e igualdade. Mas eu sou idealista…
Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" |
---|
Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações. |