P&D Factor O Papel das Organizações da Sociedade Civil na Educação Política e Direitos Humanos – Daniela Bento – ILGA Portugal

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Daniela Bento é membro dos órgãos sociais da Associação ILGA Portugal

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.P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?

Daniela Bento (DB): As organizações da sociedade civil estão numa posição difícil, pois ligado aos retrocessos em matéria de Direitos Humanos, vem também a dificuldade em obter financiamento para, neste sentido, combater esses mesmos retrocessos. Torna-se um ciclo vicioso, em que a dependência das OSC de financiamento para conseguirem trabalhar deixa-as muito vulneráveis às mudanças políticas.

Desta forma, é essencial aumentar a nossa capacidade de trabalhar em rede para que possamos distribuir de uma forma mais efetiva os recursos que conseguimos oferecer às comunidades e à sociedade em geral. É também essencial procurar fontes de financiamento que não dependam de uma forma tão basilar das mudanças estruturais no panorama político nacional e internacional. É neste sentido, que importa também aumentar a visibilidade para os retrocessos em matéria de Direitos Humanos, dando-lhes o devido valor e enquadramento político e com isto sensibilizar a população para a necessidade de uma mudança de paradigma político, onde os Direitos Humanos estão, acima de tudo, em primeiro lugar.

.P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?

DB: Na minha opinião, diria que existe alguma, talvez dentro de círculos relacionais mais apertados, dado que que maioritariamente as pessoas com quem trabalho estão também em áreas sociais. Penso que grande parte da população não tem consciência do impacto da política na vivência de muitas outras pessoas no seu dia a dia. A promoção e normalização do discurso de ódio, de usar determinadas populações como bode expiatório para uma série de problemas sociais que carecem de uma revisão e crítica mais profunda, contribuem para criar o ambiente perfeito para que movimentos anti Direitos Humanos ganhem um lugar no seio da população.

Em termos de estratégias, penso que há mudanças estruturais necessárias. A forma e o que comunicamos moldam a forma como as percepções são tidas pela sociedade. É por isso necessário ter uma estratégia conjunta e em rede de formas de visibilizar essas lacunas dentro das escolas, das universidades e dentro das empresas, bem como noutros contextos onde há mobilização de pessoas. É preciso procurar uma comunicação interseccional de forma a conciliar o impacto de determinadas políticas em determinados sectores da sociedade, só assim podemos dar uma visibilidade e consciência clara do que está a acontecer neste momento. O combate contra a desinformação é também um combate contra a desumanização de determinados grupos da sociedade, e por isso deve ser uma luta coletiva.

.P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?

DB: Não, não é possível. O tema da saúde e direitos sexuais e reprodutivos e autonomia corporal está intimamente ligado com estruturas de poder que permitem que a sociedade tenha uma estrutura totalmente desigual perante grupos de pessoas diferentes. É um dos princípios da discriminação. É por isso, tão importante falar de saúde e direitos sexuais e reprodutivos e autonomia corporal quando se fala de igualdade, saúde e direitos humanos. A autonomia corporal e o direito ao corpo é basilar para garantir e salvaguardar princípios básicos de dignidade de vida as pessoas.

.P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?

DB: Do ponto de vista governamental é preciso coragem política para perceber que as associações OSC não podem estar continuamente a fazer o trabalho que se substitui ao Estado na sua missão de proteger uma população num Estado-Nação. Que é o que acontece atualmente. É um trabalho estrutural, de fundo que deve ser reconhecido a esse nível pelas entidades governamentais (seja a nível local, nacional ou europeu), permitindo às OSC adquirirem uma sustentabilidade financeira que garanta a realização desse trabalho de longo prazo, para além dos da “agenda oficial”.

Por outro lado, o papel das OSC é também extremamente importante neste cenário, pois são as OSC que têm a maioria dos dados de proximidade com as populações, são as OSC que trabalham no terreno e procuram salvaguardar as necessidades de uma população fragilizada pelo clima político que se vive. É neste sentido, que devemos lembrar a todas as pessoas que a política se faz em todos os quadrantes da vida, não só na política governamental. E nós (OSC), no nosso dia a dia, podemos fazer a diferença.

.P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?

DB: Numa sociedade que anda a uma velocidade sem controlo, onde as expectativas que se colocam nas pessoas e na sociedade civil é gigante, a coerência política fica em interrogação. Quando tudo muda tão depressa, como é que é possível estar íntegro num discurso? Creio que esta coerência entre discurso e prática sobre a importância da sociedade civil só será possível reduzindo os ritmos, procurando espaços de reflexão que permitam fazer descer o discurso à prática e pensar em estratégias políticas concretas.

.P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?

DB: É bastante necessário começar a haver números, informações mais concretas sobre a população e as suas necessidades. Por exemplo, os censos não incluem orientação sexual e identidade de género: como é possível fazer políticas públicas para esta comunidade se nem há dados de quantas pessoas existem? Só assim se pode adaptar as políticas públicas às necessidades reais da população no que toca à Igualdade de Género e respeito pelos Valores/Direitos Fundamentais. Só dessa forma também se consegue otimizar os recursos das OSC para que possam fazer um trabalho mais efetivo no terreno, onde é necessário, para quem é necessário.

.P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?

DB: Mais consciência, mais visibilidade, mais espaços de construção coletiva de mecanismos de salvaguarda das mulheres, meninas e jovens. Mais educação sobre o que é o direito ao corpo, o que é o direito à autonomia e autodeterminação do próprio corpo. Neste sentido é necessário sensibilizar a população que todos os seus atos são políticos e, como tal, todas as decisões que tomam podem fazer a diferença na procura de soluções mais duradouras para o bem-estar das pessoas. Ao longo da vida, têm de existir momentos formativos/educativos e adequados a cada fase, que reforcem a capacidade e autonomia das mulheres, meninas e jovens.

.P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?

DB: Criar rede, criar estrutura de rede e construir espaços coletivos de reflexão e consciência sobre os seus direitos e sobre a sua agência. É importante que as mulheres, meninas e jovens tenham agência sobre si e isso também será possível com a construção de redes efetivas de consciência conjunta.

.P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?

DB: Importante perceber que a liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais não tem de ser uma réplica do que é feita por homens. A agência sobre si, permitirá a mulheres, meninas e raparigas e grupos com menos visibilidade conseguir refletir sobre a auto-representação política e de como podem participar ativamente nestes cargos.

.P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?

DB: Tendo em conta o panorama atual, não prevejo muitas mudanças progressistas de futuro. Espero mais uma luta diária para conseguir salvaguardar o que é possível ter neste momento. Porém, acredito que as OSC têm um papel fundamental na educação da população e na consciencialização dos processos políticos e no que é necessário mudar para fazer transformações efetivas e eficazes no tecido social.

Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão"

Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações.

Direitos humanos, Saúde sexual e reprodutiva, Autonomia corporal, Ed sexual compreensiva, Igualdade de género, Lugar e Voz