P&D Factor Financiamento Público, Autonomia e Advocacia das OSC - Ana Rita Brito - AKTO

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Ana Rita Brito é Técnica de Apoio à Vítima na AKTO – Direitos Humanos e Democracia

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.P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?

Ana Rita Brito (ARB): Em primeiro lugar, tudo parte da Educação e da transmissão de conhecimentos. Há uma ideia muito errada do que é, o que faz e qual o papel da Sociedade Civil. Em Portugal, frequentemente, achamos que a Sociedade Civil está associada à caridade ou que alguém que trabalha numa organização da sociedade civil, uma ONG ou uma IPSS, tem que ser alguém voluntário cujo trabalho não pode ser remunerado.

Comparado com outros países, principalmente do norte da Europa, onde existe uma consciencialização sobre cidadania e para essas temáticas, não temos uma consciência grande de trabalho voluntário e de participação cívica. A cidadania requer que haja mais responsabilidade e as pessoas sejam mais ativas nos movimentos sociais e no trabalho de com as organizações da sociedade civil, que haja aqui muito mais participação cívica para que o sistema democrático funcione - porque, na verdade, isto tem a ver com tudo.

Depois, acresce uma fragilidade em nós, nas organizações da sociedade civil; não há coesão, não sei se é por causa dos financiamentos. Temos de ser muito mais coesas e unidas nas nossas lutas, independentemente, das nossas questões internas. O que tem de passar para a opinião pública, é um movimento da sociedade civil coeso e forte, para as pessoas perceberem que, muitos dos direitos que temos hoje em dia resultam da ação de movimentos sociais. E os direitos, embora adquiridos, não estão, totalmente, garantidos, como vemos em outros países com os retrocessos depois de avanços da extrema-direita radical, dos movimentos mais extremistas, e aqui testemunhamos os retrocessos e ataques aos direitos das mulheres.

Olhamos, por exemplo, para a Hungria e para a Polónia; olhamos para países que não ratificaram a Convenção de Istambul, ou que voltaram atrás no que diz respeito à Convenção, e isso é um desafio que temos enquanto sociedade civil. Temos de perceber qual a mensagem, como a vamos transmitir e como vamos chegar ao público em geral. De que forma mobilizamos as pessoas e as chamamos à participação, mais ou menos, ativa, mais ou menos, ativistas. É necessário que se perceba que é algo coletivo, da sociedade, não é uma coisa da P&D Factor, da AKTO ou de outras organizações. Exigimos o reconhecimento da primazia dos direitos humanos, do trabalho das OSC de saber se Portugal está a cumprir, se não está a cumprir, é um trabalho que tem de ser todas as pessoas - exige mais da e na Educação. Quando tivermos, efetivamente, uma Educação para a Cidadania que funcione, desde a escola se perceba o que é o ativismo, a cidadania, as regras e normas da democracia e da participação cidadã, que podemos fazer ativismo e ser ativistas de várias formas e em vários contextos sempre com a primazia do respeito pelos direitos humanos de todas as pessoas.

Hoje somos confrontadas com outros tipos de “ativismo”. Um choque civilizacional, que julgávamos distante, que nos traz o discurso de ódio que está a acontecer, por exemplo, na Internet e nas redes sociais. Isso não é ativismo, ponto. É populismo xenófobo, misógino, seletivo. É mentira, assente em factos isolados, em forma de campanha que manipula, que falseia dados e conhecimento científico. Temos várias frentes: a opinião pública, a população em geral, a comunicação social e por isso o movimento da sociedade civil, tem de ser mais coeso, mais focado, atento e estável. Vale apena ter a certeza enquanto sociedade civil, que se nós paramos, se quisermos, Portugal pára, paramos tudo com as valências que estão associadas ao terceiro setor e ao movimento associativo democrático, pára o apoio à vítima, páram os ATLs, pára o apoio às pessoas idosas, pára tudo. E depois na sociedade civil que aqui falamos, existem muitas mulheres e, sendo uma área maioritariamente de trabalho no feminino, é lícito dizer ou pensar que não é tão valorizada económica e politicamente como outras áreas, por essa razão?

.P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?

ARB: É aquela consciência muito subtil de,” ah ok, há aquela coisa, aquele chavão que nos diz que existe nas leis e na Constituição, do direito à habitação, à saúde, dos direitos fundamentais que nós temos”, mas depois a maior parte das pessoas vê esses direitos como garantidos, o que depois é um problema quando precisamos falar sobre os riscos que existem “há, mas então agora (sei lá, estamos sempre a falar do mesmo), mas o André Ventura ou o Chega não nos vai colocar em campos de concentração”, não, mas pode limitar e tirar a liberdades constitucionais, direitos e até liberdade de expressão, comunicação social livre e independente.

Olhem para os EUA, onde há já livros interditos, limites à liberdade de expressão e até de pensamento. Há uma noção muito geral que os direitos são ou estão, sempre, garantidos e no que respeita aos direitos das mulheres assistimos a isso, é preciso saber olhar para a Europa, e percebermos que as coisas não são garantidas.

A semana passada, numa formação estávamos a falar sobre o facto da Turquia recuar na Convenção de Istambul, e alguém disse, uma formanda disse “pois, porque é a cultura deles, não é, as coisas são um bocadinho difíceis e diferentes da nossa” e eu questionei “Então e a Hungria? É aqui ao lado. E a Polónia? Que recuou nos direitos do aborto - são países que estão aqui ao lado”… só assim questionou de “ahh, se calhar tem razão”. E Portugal? A Convenção de Istambul, uma convenção do Conselho da Europa não é utilizada. Temos leis muito boas mas, depois, da lei para a aplicação social há um gap muito grande de trabalho e de um trabalho geral.

Se a opinião pública e o público em geral, não tem conhecimento deste instrumento legal, se os advogados ou os juízes não o utilizam nas questões da violência, há um trabalho que tem de ser constante e temos de estar sempre a falar. É preciso bater na mesma tecla? É, porque a mudança de mentalidade o exige. Não é uma coisa do tipo “ah, é crime, é violência, estou mais informado”. Não, a igualdade de género ou os direitos humanos são padrões que requerem mais saber e trabalho para a mudança de mentalidades, para fazer face ao discurso populista que hoje também vem de alguns países europeus e é preciso sabermos e sermos capazes de desmistificar isso. O trabalho em direitos humanos é, como o superior interesse da criança, quem é que, efetivamente, garante o superior interesse da criança?

São chavões que utilizamos, que aprendemos e verbalizamos várias vezes, reproduzimos, mas depois, na prática, não lutamos por eles. O direito à habitação, é um direito fundamental e a quantidade de pessoas que não consegue ter uma casa. Aqui em Coimbra não sentimos tanto porque é um meio muito mais pequeno, assim que uma pessoa vai para a rua nós conseguimos logo identificar e agir, mas em Lisboa? Nas grandes cidades?

E, depois, a Educação também não tens, porque a Educação não consegue chegar às creches todas, portanto é este chavão bonito e esta reprodução de chavão que temos, mas depois, na prática, não se efetiva porque achamos que isso nunca vai terminar na Europa, ou que o problema não é meu e depois. Na primeira fase da pandemia estávamos muito solidários, mas saímos dessa mesma pandemia extremamente individualistas e egoístas, é “o meu espaço”. Somos seres sociais, as minhas ações têm implicação na ação dos outros, as pessoas esquecerem-se um bocadinho da solidariedade e da relação humana. “Não sou só eu, tenho que me colocar no lugar do outro, se eu tenho, ainda bem que tenho, vou lutar para que o outro também tenha”; eu faço parte de uma sociedade e a sociedade não sou eu, somos todos e o todos somos importante, a diversidade é importante.

.P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?

ARB: Acho que não, está tudo interligado. Eu não consigo falar dos direitos das mulheres sem falar dos direitos sexuais e reprodutivos e, dentro dos direitos sexuais e reprodutivos, eu não consigo falar, se eu não falar de consentimento, sobre o corpo, sobre questões básicas; por exemplo, é importante a interseccionalidade, e sabemos que precisamos de mediadores/as culturais para trabalhar determinados temas identificados como crimes ou problemáticos. A P&D Factor sabe melhor do que nós, que a mutilação genital feminina, é crime, mas que ainda há uma associação à cultura, e depois “quem és tu, branca, para me dizeres a mim o que é correto e o que é que não é correto”, ou até mesmo, em questões de religião como o Islão, embora possa ser um desafio muito maior, é importante e necessário trabalhar com mulheres muçulmanas a saúde sexual e reprodutiva.

Há retrocessos, a nossa geração, recebemos muita informação sobre a questão do VIH, sobre o preservativo, e agora, eu não falo muito porque a saúde sexual e reprodutiva não é, de todo, a minha área, mas quando se fala de igualdade de género, às vezes acontece e nós, automaticamente, vamos lá. Oiço coisas que me dizem, que os jovens me dizem, que fico aterrorizada - não têm noção de infeções sexualmente transmissíveis, não têm noção do consentimento, o que é ou não consentimento, o que é ou não uma relação de intimidade saudável, até mesmo a questão do sexo, o sexo, houve uma vez que me disse “sexo oral não é sexo”, …. e depois, esta lacuna que existe na Educação para a Cidadania sem a Saúde Sexual e Reprodutiva leva a consumir pornografia, também online, e a acharem que aquilo que estão a ver será aplicado na vida real. As especificidades da saúde sexual e reprodutiva de pessoas, brancas ou não com algum tipo de deficiência, onde a abordagem interseccional e até cultural é necessária. Voltamos à educação, voltamos à capacitação de profissionais nos centros de saúde -nós precisamos de muitos mais médicos/as consciencializados para a questão da MGF com diferentes mulheres. Qual é a abordagem?

Na Akto trabalhamos com crianças, e é completamente diferente de trabalhar com adultos; no início, há essa coisa de “quem és tu para me levar a um ginecologista?” ou “quem és tu?”, mas quando começas a trabalhar com a criança, a própria criança/adolescente, passado um tempo, diz-te “obrigada, porque a minha família nunca ia falar comigo sobre isso” ou “nunca íamos falar sobre a questão do preservativo”. O que muitas vezes, fazemos, é ir ao centro de saúde e ser aquela criança, adolescente, jovem ou mulher que fala diretamente com aquela médica, que a médica já está sensibilizada. A equipa técnica está preparada e sabe falar de diferentes questões também de sexualidade. Falar de consentimento, ou “tu só dás um beijo, ou permites que alguém te toque, se tu quiseres” - se nós falarmos disso de uma maneira natural, é muito mais fácil, virem falar connosco. Mas, sim, é um desafio.

.P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?

ARB: É, na verdade, aquilo que nós fazemos muito, que é deixarmos de sermos financiadas por fundos europeus e o passar a ser financiamento estrutural - estamos a fazer o trabalho do Estado, não somos é remuneradas por ele, não é, principalmente na área da Violência, mas não só na área da Violência, e depois a questão da Igualdade… a Igualdade devia ser prioritária, mas eu vejo muito isto, até em termos de ODS, a sociedade é feita de mulheres e homens, porque é que não passamos o 5º. objetivo para 1º.? Porque se eu atingir o 5º., eu atinjo os outros todos, portanto, na minha perspetiva, a Igualdade de Género e Empoderamento de todas as Meninas e Mulheres devia ser o 1º., se eu conseguir direitos iguais e deveres iguais, eu consigo a educação, a saúde sexual e reprodutiva. Mas independentemente disso, é exigir ao Estado, dizer “não” e saber exigir, porque na verdade, fazemos o papel do Estado, até na sensibilização, ou seja, no apoio à vítima, nós fazemos a sensibilização porquê?

Porque o Estado devia fazer e não consegue fazer. Quando faz, muitas vezes, são docentes de outras disciplinas que não sabem o que dizem (vão ler umas coisas), e então nós estamos lá. Os financiamentos estão cada vez piores para nós, deixam-nos cada vez mais precárias, andamos aqui a falar de direitos, mas depois os nossos direitos laborais ou sociais também não estão garantidos dentro das associações em que trabalhamos, não é, isto é “uma pescadinha de rabo na boca”.

Agora, nós vemos muita diferença e, depois, depende dos partidos que lá estão, depende dos secretários de Estado, depende do poder político, não é, a verdade é que, lembro-me, não posso garantir, mas acho que eram 52 milhões, se colocasse no Orçamento de Estado, mas se calhar é preciso, é preciso porque nós passamos a vida em projectos - estamos a desenhar, candidatar ou implementar um projeto, mas já estamos a pensar noutro projeto e noutra linha para garantir o nosso ordenado, não há estabilidade entre nós também (a questão da sobrevivência das próprias associações, das organizações da sociedade civil, acaba por se sobrepor àquilo que é a missão) o trabalho (e os objetivos e aquilo que se está a querer resolver) - aqui a sobrevivência não devia estar em causa, a sociedade é feita por mulheres e…,

Na parte dos financiamentos, exigem esta coisa de “quantas mulheres e quantos homens” e basta isso para ser Igualdade de Género (?), não. É preciso mudar a maneira como se faz a política, a política e os financiamentos, (as próprias políticas, claro) e sim, como é que se atribuem os financiamentos.

.P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?

ARB: Questão controversa!? Precisamos de ter especialistas nesta área, mas especialistas a sério, mas depois temos pessoas que vão fazendo e dizendo coisas, é isso. O que é Feminismo pop, ou a Igualdade de Género pop, ou o que é que é ou não vendável, tem de haver uma coerência de “os direitos sexuais e reprodutivos são estes”, há uma bolsa de formadores em termos nacionais e as pessoas têm de ser formadas ou capacitadas por aqueles que, para nós, são a excelência, porque são temas às vezes controversos, são, mas eu não posso falar de saúde sexual e reprodutiva se não falar de métodos de contraceção, ou se não falar da sexualidade, ou se não falar do consentimento, ou do corpo - as pessoas não falam, há ainda este tabu.

Quando se chega ao 6º ano e começam a dar o sistema reprodutor, os próprios professores têm receio de chamar as coisas pelos nomes, não é, “isto é um pénis e isto é uma vulva, e são sistemas reprodutores diferentes”; têm parecem ter medo dos pais ou do que passa, mas o Estado tem de dar e assegurar as ferramentas, independentemente do pai ser católico ou muçulmano ou (claro, sim, temos os projetos da Educação para a Saúde, que abordam as questões com abordagem mais técnica. Mas só médicos e enfermeiras é que podem? Tens psicólogas fantásticas a trabalhar conteúdos de Educação Sexual nas escolas, como a Vânia Beliz, a Tânia Graça e uma série de psicólogas que fazem um trabalho fantástico na área da saúde sexual e reprodutiva, não é, e que são precisas nesta área, e, depois, até para nós, para os direitos sexuais e reprodutivos.

E se recebo financiamento do Estado, vou estar a contestar aquilo que o Estado tem de fazer ou faz?

Isto é outro problema para a sociedade civil. As organizações são fundamentais, existem também para isso, independentemente do financiamento, eu tenho de dizer o que é que está bem e o que está mal. Por isso é que existem os relatórios e as avaliações. (…) Não tens um trabalho consistente de advocacy; tens ações muito pontuais de reação a determinadas coisas que acontecem, mas depois não é um trabalho constante de advocacy - “não, isto ainda é preciso”. Agora vamos para a menopausa, “isto é preciso”, e os outros direitos? Trabalharmos em rede, e voltamos outra vez à fragilidade da sociedade civil - organizações que fazem um trabalho de advocacy, trabalham em rede com as outras que estão no terreno - a luta das organizações que trabalham em advocacy não é a luta das outras, e é a luta de todas nós.

.P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?

ARB: Sim, é muito isto que falei. Também ter tempo para fazer uma avaliação de política pública, o que é que está a faltar; nós fazemos e, às vezes, até relatórios sombra, mas não é só isso que fazemos, ou fazemos já extra as nossas horas, porque não conseguimos estar, lá está, não conseguimos chegar a tudo, não consigo estar a fazer ações de sensibilização, ou a capacitar educadoras menstruais ou educadoras de Educação Sexual e, depois, chega à noite, com a minha vida pessoal, e ainda tenho de pensar se Portugal está a cumprir, ou não, com a CEDAW ou com outro instrumento ou o que falta fazer em termos de…. Na verdade, nós estamos sempre assim, o nosso dia-a-dia é assim. Se estou nas escolas, na comunidade, se sei que há pessoas que não conseguem aceder a determinados métodos contracetivos ou que não são gratuitos, no próximo relatório eu vou ter de falar sobre isto, mas não consigo, não tenho tempo, para escrever um texto, enviar para outras organizações e dizer “vamos lá fazer barulho, fazer uma chamada de atenção e vamos lá exigir algo que é fundamental”.

.P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?

ARB: Já falei, não é, desta coisa da autodeterminação do corpo, “o meu corpo, as minhas regras”, mas isto é sempre uma coisa cultural e nós precisamos dos mediadores culturais. Seu eu tiver alguém da comunidade muçulmana, sensibilizada, feminista e que perceba que é importante trabalhar-se tudo isto, a mudança será muito mais rápida e a mensagem entra muito mais. Vocês fazem isso, por exemplo, na Guiné, não é, vocês têm mulheres da Guiné, sim, mas têm esse trabalho que é com mulheres da Guiné que passaram pela mutilação que vão falar com outras, ou seja, a educação tem de sempre de ser de par-para-par, porque não entra, era o que eu dizia, não entra, eu sou branca, não fui sujeita à prática da mutilação, a minha luta feminista, a luta dos meus direitos são diferente da luta dos direitos delas, ou a luta, é o feminismo negro, não é, é diferente, portanto, sim, depois de uma perspetiva de mainstreaming, pretende-se que haja esta, é importante a interseccionalidade.

Mas, para a mudança ser mais rápida, eu preciso de mediadores culturais, eu preciso de pessoas da comunidade que cheguem, não é. Como a etnia cigana, se não consigo terminar, ou sensibilizar que, chega ali aos 15 anos, em que “não, não vais casar” ou “quando começa a tua primeira menstruação, tu não sais da escola” porque isso não é, ou seja, não é aquilo que a cultura tem de ser, porque, na verdade, há uma violação de um direito humano básico teu que é o direito à Educação, mas isto só é possível com alguém da etnia cigana que esteja, e dentro das comunidades, tem de ser alguém que esteja sensibilizada e que reconheça que haja casamento infantil (são mudanças estruturais que têm a ver com a capacitação e a educação).

.P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?

ARB: Voltamos ao mesmo.

.P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?

ARB: As medidas de ação positiva são muito importantes; medidas de discriminação positiva, ou ação positiva, medidas que existem porque, efetivamente, a mudança de mentalidades demora e nós precisamos destas medidas. No terceiro setor e na sociedade civil temos muito isto, quem trabalha são as mulheres e depois os órgãos sociais são homens. A CIG, há alguns anos atrás, creio que exigiu que, pelo menos em dois ou três cargos, colocassem mulheres nos órgãos sociais, como uma medida de ação positiva. Não apenas nos regulamentos, as associações, ou seja, em fase, em caso de empate, desempatam, ou ganham mais pontos, as entidades que têm mulheres nos cargos de direção, por exemplo, uma presidente da Direção ou uma presidente do Conselho Fiscal, porque no terceiro setor somos mais mulheres, é muito, o trabalho é todo pelas e com as mulheres, mas depois nos cargos de gestão, ou nos órgãos sociais, temos homens.

E é o empoderar, empoderar, empoderar… empoderar, não gosto da palavra de empoderar, mas capacitar, capacitar e dar-lhes a voz (que têm), não é, depois aqui é muito importante termos aqui atrizes, alguém que, os músicos, ou seja, pessoas que eles reconheçam como o ídolo, não é, aquela coisa de “alguém que eu admiro, e esse alguém que eu admiro luta pelos direitos das mulheres”, não é, e luta por uma causa que também é minha e que eu não tenho medo de falar”, porque há muito medo e, em determinadas culturas e determinados países, o medo será muito maior. Se temos medo de falar, às vezes sinto isso que, temos medo de falar, temos medo de dizer “não, não está bem” (e há circunstâncias em que temos mesmo medo de fazer, porque sabemos que não é fácil e estamos a pôr-nos em risco) e em causa. Portanto, às vezes, é, esta “cultura do medo”, o que é que os outros vão pensar, também é assunto que tem de ser trabalhado nas escolas.

A Educação é fundamental, é através da Educação que dou as ferramentas necessárias também para a socialização secundária. Na Comunicação Social, se aquela notícia é discriminatória, nós vamos exigir à entidade Reguladora da Comunicação Social e vamos dizer que não pode ser assim. Mas depois de um dia de trabalho, sentada no sofá dás-te com uma notícia e pensas “eh pá, fogo, não acredito”, - estamos sempre alerta, porque o nosso trabalho é constante. “ah, eu não vou ligar se aqui o vizinho do lado está a agredir a mulher, eu não vou ligar, vou esperar a ver se alguém liga, tu pensas, eh pá, eu já faço tanto, deixa ver se alguém reage - é normal, porque é o desgaste, e depois eu olho para pessoas que estão há muito mais tempo a lutar pelas mesmas causas que têm um desgaste muito maior. Estão há 20 ou 30 anos a lutar pela mesma coisa e os retrocessos são cada vez maiores e, como feministas ou como pessoas que lutam pelos direitos humanos, nós também temos o direito de estar cansadas e de dizer, eh pá, eu hoje, pela minha saúde mental, não quero saber; mas preciso de (mas não), nós estamos sempre lá, não é, às 3h00 da manhã acordamos e pensamos “eu vou sair, agora, às 3h00 da manhã, vou escrever um texto porque não pode, isto não pode continuar” e estamos constantemente, 24 horas, mas ninguém nos paga para as 24 horas e ninguém reconhece que isto é um sistema de 24 horas.

.P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?

ARB: Para além de tudo o que nós falámos, resta-me referir um Sistema Nacional de Saúde que funcione, uma interrupção voluntária da gravidez que funcione, que profissionais de saúde objectores de consciências não impeçam a realização de direitos das mulheres. Conseguimos recentemente o reconhecimento da violência obstétrica, e no dia a seguir, a este reconhecimento de acordo com a OMS, tens médicos e enfermeiros que estão a lançar petições, porque aquilo que nós dizemos não é violência obstétrica. Precisamos na saúde de pessoas informadas, isentas e capazes, assim como nas escolas, falo de professores mas também de associações – temos de reconhecer a especialização de cada uma, não podemos todas fazer de tudo.

Acho que não estamos descansadas, com aquilo que está a acontecer nos Estados Unidos da América e em alguns países na Europa. É assustador também o que vemos entre os mais jovens. Aqueles que achavas que estavam sensibilizados, que receberam Educação para a Cidadania, mas algo correu mal e nós precisamos fazer essa avaliação. O que é que correu mal, como é que eu tenho cada vez mais mulheres empoderadas e homens cada vez mais machistas entre os jovens. O que é que falhou aqui talvez reconhecer que temos de trazer mais homens para estas lutas.

Se, durante muitos anos, o movimento feminista era de “não, não vou trabalhar com homens”, é preciso trazer o homem para o nosso lado (porque a sociedade é feita de homens e mulheres) e eu preciso, para a mudança ser muito mais célere, que eles digam que não, quando ela está alcoolizada eu “não, não e, para mim, é não”, não é, ou “eu sou feminista, e reconheço-me como tal, e mudo a fralda ao meu filho” ou “eu usufrui de uma licença de parentalidade”. Trazê-los para este lado de cá.

Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão"

Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações.

Direitos humanos, Saúde sexual e reprodutiva, Autonomia corporal, Ed sexual compreensiva, Igualdade de género, Lugar e Voz