Joana Frias Costa é membro dos órgãos sociais da Associação INSPIRING GIRLS Portugal
P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?
Joana Frias Costa (JFC): Consideramos que, neste contexto de crescentes retrocessos em matéria de Direitos Humanos, é essencial que as OSC estejam profundamente atentas ao que acontece no terreno, com capacidade de resposta rápida, mas também estratégica. É fundamental mapear bem as necessidades, identificar dinâmicas emergentes e saber reajustar processos, linguagens e ferramentas – adequando as abordagens aos diferentes públicos com quem trabalhamos. No nosso caso, por exemplo, que trabalhamos com jovens e crianças, este reajuste é crucial para continuarmos a chegar até eles de forma significativa, despertando atenção, interesse e consciência crítica.
Por outro lado, o papel de watchdog das OSC implica também uma atuação proativa na defesa dos direitos fundamentais. Devemos exercer pressão junto de decisores políticos e das instituições, exigindo mudanças estruturais e sustentáveis, baseadas em evidência e na escuta ativa das comunidades mais afetadas . É igualmente essencial promover redes de colaboração entre OSC, academia, setor público e privado, para reforçar a nossa capacidade coletiva de resposta . A defesa dos Direitos Humanos começa pela visibilidade das histórias, das desigualdades e das resistências. Por isso, também temos o dever de amplificar vozes que historicamente foram silenciadas e de criar espaços seguros onde todas as pessoas possam exercer plenamente a sua cidadania.
P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?
JFC: Na nossa opinião, não existe uma consciência plena dos Direitos Humanos não realizados e ainda por concretizar em Portugal. Apesar de haver trabalho relevante já feito por muitas entidades, a verdade é que continua a faltar uma perceção generalizada – e, muitas vezes, institucional – sobre a persistência de desigualdades estruturais e formas de exclusão. Basta ouvir atentamente as notícias ou estar próximo das comunidades mais vulnerabilizadas para perceber o quanto ainda há por fazer. Não obstante a aposta que tem de continuar a ser feita ao nível das políticas públicas e do quadro normativo, há todo um trabalho conducente a uma mudança estrutural da sociedade portuguesa que tem de ser promovido de forma contínua.
Almejar um impacto real exige muito mais do que resultados imediatos de curto prazo – exige tempo para construir confiança, escutar ativamente e adaptar intervenções aos contextos específicos. O que esta realidade também reflete é a falta de valorização do terceiro setor em Portugal, onde, frequentemente, se espera que o trabalho das OSC seja feito “de borla” ou com recursos mínimos. Falta conhecimento generalizado – por parte da população, mas também de instituições públicas e privadas – sobre o papel estratégico e insubstituível das OSC na construção de sociedades mais justas, diversas e inclusivas . Para aumentar esta consciência e visibilidade, é essencial apostar em estratégias de médio e longo prazo . Aqui vão algumas ideias:
Campanhas de sensibilização que envolvam múltiplos setores (educação, cultura, media), mostrando de forma acessível onde e como os Direitos Humanos continuam por cumprir; Educação para os Direitos Humanos, desde o ensino básico até ao superior, com envolvimento ativo das universidades e investigação aplicada; Formação contínua em empresas que promova uma cultura de responsabilidade social alinhada com os Direitos Humanos; Parcerias sustentáveis, onde custos, responsabilidades e conhecimento sejam partilhados de forma equitativa entre OSC, Estado, setor privado e academia; Financiamento estruturado e inclusivo, com mecanismos públicos que garantam acesso justo, transparente e continuado para as organizações que trabalham pelo bem comum.
É urgente sair da lógica de “doações pontuais” e construir colaborações que assegurem a continuidade dos projetos e o seu impacto real e duradouro . Ao Estado cabe, inevitavelmente, o papel de garantir as condições mínimas para que isto seja possível.
P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?
JFC: Não, não é possível ter uma abordagem verdadeiramente interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos sem incluir os temas da Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos e da Autonomia Corporal. A interseccionalidade, por definição, implica reconhecer que diferentes formas de discriminação e desigualdade se cruzam e amplificam mutuamente. E poucas áreas tornam essa sobreposição tão evidente como a da saúde sexual e reprodutiva .
Ignorar estes temas significa perpetuar invisibilidades e manter silenciadas as experiências concretas de muitas pessoas – sobretudo mulheres, raparigas, pessoas LGBTQIA+, pessoas racializadas ou com deficiência – cujos corpos continuam a ser regulados, estigmatizados ou negligenciados por sistemas que deviam protegê-los. Não podemos falar de igualdade de acesso à saúde sem considerar, por exemplo, o impacto do racismo obstétrico, da violência obstétrica ou da ausência de uma educação sexual abrangente e baseada em direitos. Também não podemos promover autonomia e empoderamento sem garantir o direito de cada pessoa tomar decisões livres e informadas sobre o seu corpo, o seu ciclo reprodutivo ou o exercício da sua sexualidade.
Uma abordagem interseccional exige, por isso, que estas questões não sejam ignoradas. A consciencialização e o reconhecimento das desigualdades específicas ligadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos devem ser parte integrante de qualquer reflexão séria sobre Igualdade e Direitos Humanos. Mesmo que nem todas as organizações trabalhem diretamente estas temáticas, é fundamental que estejam cientes do seu impacto estrutural e da necessidade de garantir que todas as pessoas possam exercer plenamente a sua autonomia e dignidade . Só assim será possível construir respostas mais justas, contextualizadas e verdadeiramente transformadoras.
P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?
JFC: A dependência excessiva das OSC em relação a financiamentos governamentais limita efetivamente a sua capacidade de responder de forma autónoma, estratégica e eficaz às necessidades reais das comunidades que servem. Na nossa ótica, há várias linhas de ação possíveis, que exigem uma abordagem integrada e sustentada:
Diversificação de fontes de financiamento: é essencial que as OSC procurem fontes alternativas que lhes garantam maior autonomia. Isso pode incluir parcerias com o setor privado, financiamento coletivo (crowdfunding), captação de fundos internacionais e o acesso a instrumentos como os fundos europeus. Plataformas como a Geofundos devem ser utilizadas de forma estratégica, assim como a participação em redes e fóruns que possibilitem identificar oportunidades conjuntas. Capacitação interna para a angariação de fundos: as OSC devem investir, dentro das suas possibilidades, na formação das suas equipas para uma abordagem mais profissional e estratégica à angariação de fundos. A construção de uma base de dados de financiadores (públicos, privados, nacionais e internacionais), bem como o conhecimento atualizado sobre linhas de financiamento, são ferramentas essenciais para essa autonomia. Consciencialização pública e institucional sobre o papel das OSC: é urgente reforçar o reconhecimento do terceiro setor como um agente essencial para a democracia, os direitos humanos e a coesão social. Campanhas de sensibilização, partilha de resultados de impacto e envolvimento ativo em espaços de decisão política são formas de elevar o valor social das OSC e, consequentemente, reivindicar melhores condições de financiamento. Trabalho em rede e parcerias estratégicas: unir esforços com outras organizações, criar consórcios e parcerias sólidas permite não só fortalecer candidaturas como ampliar impacto e partilhar recursos . Esta colaboração pode ser também uma forma de dar resposta a temas que, isoladamente, seriam mais difíceis de abordar.
Em suma, para que as OSC possam continuar a exercer o seu papel com impacto, é necessário sair da lógica da sobrevivência pontual e caminhar para uma visão de sustentabilidade e liberdade estratégica . Só com uma diversificação inteligente de recursos será possível conciliar os fundos disponíveis com a missão de cada organização e responder, de forma efetiva, às necessidades reais das suas comunidades.
P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?
JFC: Este desfasamento entre o discurso e a prática é um reflexo da forma como a sociedade civil continua, muitas vezes, a ser vista como um “complemento” e não como um agente estruturante da democracia e do progresso social . A atribuição prioritária de financiamentos – inclusive privados – a entidades públicas, mesmo em áreas tradicionalmente lideradas por OSC, compromete a diversidade de respostas no terreno e limita a inovação social . Para contrariar esta tendência e reforçar a coerência entre discurso e prática, sugerimos a articulação de algumas estratégias:
Reconhecimento político e institucional do papel das OSC: promover o entendimento de que a sociedade civil organizada tem uma capacidade de proximidade, escuta ativa e resposta inovadora que muitas vezes não é possível replicar na esfera pública. Esse reconhecimento deve ser traduzido em políticas públicas que promovam a equidade no acesso ao financiamento – independentemente da natureza jurídica da entidade. Transparência e critérios claros nos financiamentos privados e públicos: as entidades financiadoras – sejam fundações, empresas ou instituições públicas – devem adotar critérios transparentes, baseados no impacto social, na experiência de terreno e na representatividade das comunidades. A adoção de critérios mais equilibrados e diversificados permitirá uma distribuição mais justa dos apoios. Diálogo direto com financiadores privados: as OSC devem assumir um papel mais ativo na relação com o setor privado, demonstrando o seu valor, apresentando resultados concretos e reforçando a importância do apoio à sociedade civil como investimento em democracia e bem-estar social. Este diálogo pode (e deve) ser feito também em rede, aumentando a força coletiva da mensagem. Campanhas de advocacy e sensibilização: que evidenciem o trabalho das OSC nas áreas dos direitos humanos, igualdade e saúde – com histórias reais, dados de impacto e casos de sucesso. Valorização da complementaridade e não da substituição: não se trata de opor sociedade civil a setor público, mas de reforçar que são esferas complementares. A coerência passa por reconhecer que, para garantir uma resposta robusta e plural, é necessário apoiar ambos os lados – e garantir que nenhuma das partes fique dependente de decisões arbitrárias ou lógicas de curto prazo.
P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?
JFC: Para promover uma verdadeira Igualdade de Género e o respeito pelos Direitos Humanos fundamentais, é essencial que haja uma articulação mais coerente, estruturada e ambiciosa entre as políticas públicas e a atuação das OSC. Atualmente, muitas respostas continuam a ser fragmentadas, reativas e, por vezes, condicionadas por agendas políticas ou ciclos de financiamento de curto prazo. A melhoria passa, desde logo, por uma aposta mais clara e contínua em políticas públicas baseadas em evidência, com visão de longo prazo, que assumam como prioridade o mainstreaming de género em todos os setores – saúde, educação, justiça, trabalho, cultura, entre outros. Isso implica não só planos estratégicos robustos, como também mecanismos eficazes de monitorização e avaliação, com envolvimento ativo da sociedade civil nesses processos.
No caso da Educação Sexual Compreensiva e da Saúde Reprodutiva, é fundamental que estes temas sejam abordados de forma consistente, desde a infância e ao longo de todo o percurso educativo, com conteúdos atualizados, cientificamente validados, livres de preconceitos e adaptados a diferentes faixas etárias. A sua implementação efetiva nas escolas continua a ser desigual e, muitas vezes, dependente da sensibilidade de cada instituição ou docente. A formação dos profissionais da educação e da saúde é, por isso, um fator-chave. Por seu lado, as OSC podem (e devem) continuar a ser parceiras essenciais na criação de soluções inovadoras, na proximidade com as comunidades e na escuta ativa das populações . Para que esse papel seja reforçado, é necessário garantir:
Condições de financiamento estáveis e adequadas, que permitam a continuidade dos projetos e não apenas ações pontuais; Espaço político e institucional para participação efetiva na definição e avaliação de políticas públicas; Colaboração estreita e transparente com o Estado, onde as OSC sejam vistas como co-construtoras de soluções, e não apenas como executoras de serviços. Além disso, é importante que as respostas das OSC também evoluam para modelos cada vez mais interseccionais, baseados nos direitos humanos, com abordagens centradas nas pessoas e que desafiem ativamente as normas e estruturas que perpetuam as desigualdades.
Em suma, uma verdadeira mudança só será possível com vontade política, compromisso transversal e uma sociedade civil fortalecida, reconhecida e envolvida desde o início na definição das respostas. Promover igualdade de género e direitos fundamentais não pode ser uma política setorial — tem de ser uma prioridade estrutural e transversal.
P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?
JFC: Inverter e sta tendência exige mudanças profundas a vários níveis — individual, institucional, estrutural e cultural. As normas sociais e culturais que condicionam a capacidade de decisão das mulheres, meninas e jovens sobre os seus corpos estão enraizadas em visões desiguais de poder, género e controlo, que continuam a ser reproduzidas no seio das famílias, nas escolas, nos media, nas instituições e mesmo nas políticas públicas.
Em primeiro lugar, é fundamental apostar na educação desde cedo – uma educação que promova a igualdade de género, os direitos humanos e a autonomia corporal. A Educação Sexual, baseada em evidência científica e livre de estigmas, é uma ferramenta indispensável para desconstruir mitos, promover o pensamento crítico e capacitar meninas e raparigas a reconhecerem e afirmarem os seus direitos.
É igualmente necessário envolver ativamente rapazes e homens neste processo de mudança, promovendo modelos de masculinidade positivos, que rejeitem o controlo e a violência como formas de afirmação. A igualdade de género não é uma luta exclusivamente das mulheres — é uma responsabilidade coletiva. No plano institucional e político, as mudanças passam por garantir o acesso efetivo a informação, serviços de saúde sexual e reprodutiva, e mecanismos de proteção contra todas as formas de violência e coação . As leis e políticas devem ser não apenas asseguradas no papel, mas acompanhadas de condições reais para que sejam cumpridas.
Além disso, é essencial assegurar e proteger os direitos já conquistados, como o direito à interrupção voluntária da gravidez, que continuam a ser postos em causa por motivações políticas, mesmo em sociedades democráticas . Estamos a assistir a retrocessos concretos em matéria de igualdade de género e de direitos sexuais e reprodutivos — e é precisamente por isso que é tão urgente reforçar o compromisso coletivo com a autonomia corporal como um direito humano fundamental.
Por fim, importa atuar também a nível comunitário e cultural, com campanhas de sensibilização, diálogo intergeracional e envolvimento de líderes locais, para transformar os imaginários sociais que continuam a normalizar a desigualdade, a vergonha ou o silêncio em torno do corpo e da sexualidade femininos . Em suma, promover a autonomia corporal plena de mulheres, meninas e jovens exige um compromisso estrutural com a justiça social e a igualdade de género. É um processo que requer tempo, persistência e ação coordenada — mas que é indispensável para uma sociedade verdadeiramente livre, justa e igualitária.
P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?
JFC: Empoderar mulheres, meninas e jovens para que sejam agentes de mudança nas suas vidas exige mais do que palavras inspiradoras – exige ações concretas que lhes deem voz, espaço e confiança para agir. As estratégias devem ser pensadas com elas e para elas, valorizando as suas experiências e promovendo o seu crescimento em todas as dimensões.
Na nossa experiência, uma das estratégias mais impactantes é a criação de espaços seguros de inspiração, escuta e partilha, onde meninas e jovens possam contactar com histórias reais de mulheres diversas, que enfrentaram desafios e alcançaram objetivos em diferentes áreas da vida pessoal e profissional. Através da metodologia de role models, promovemos esse encontro transformador entre gerações, que ajuda a alargar horizontes, combater estereótipos e ativar novas ambições.
Um exemplo concreto é o nosso projeto strongHER, um clube de autoestima para raparigas dos 15 aos 21 anos, onde trabalhamos temas como autoconhecimento, confiança, resiliência, valores e autoexpressão. Acreditamos que desenvolver estas competências é essencial para que as jovens reconheçam o seu valor e a sua capacidade de tomar decisões, influenciar o meio que as rodeia e ocupar espaços de liderança – sejam eles formais ou informais.
Outro exemplo é o trabalho que temos vindo a desenvolver na área da literacia financeira, essencial para promover a autonomia financeira das jovens. Através de oficinas práticas e conteúdos adaptados, abordamos temas como gestão de dinheiro, planeamento de objetivos e noções de economia do dia a dia. Sabemos que a independência económica é uma condição fundamental para o exercício da liberdade pessoal e da capacidade de escolha.
Também consideramos essencial trabalhar a diversificação de horizontes profissionais, estimulando o interesse por áreas com sub-representação feminina, como as STEM, e desconstruindo estereótipos de género associados a determinadas carreiras. Simultaneamente, é importante valorizar socialmente e simbolicamente as áreas do cuidado, historicamente associadas às mulheres e muitas vezes desvalorizadas. O empoderamento passa por legitimar todas as escolhas, desde que livres e informadas. Recomendamos ainda que as medidas de empoderamento sejam:
Sistemáticas e sustentadas no tempo, e não ações pontuais ou episódicas; Adaptadas à realidade das participantes, com escuta ativa das suas necessidades, sonhos e obstáculos; Assentes numa abordagem interseccional, que tenha em conta as múltiplas dimensões que atravessam as suas vidas (género, origem, condição económica, território, entre outras); Apoiadas por políticas públicas e por redes de suporte, como escolas, famílias e comunidades.
Além disso, é essencial garantir o acesso à educação de qualidade, a espaços de participação real e à informação sobre os seus direitos como base para qualquer processo de transformação pessoal e social .
P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?
JFC: Exige, em primeiro lugar, acesso real a experiências transformadoras, oportunidades de participação e referências que lhes permitam acreditar que esses lugares também lhes pertencem. Como costumamos dizer: não podemos ser o que não vemos . É essencial que todas as raparigas, independentemente do seu contexto, possam ver-se refletidas em histórias de sucesso que sintam como possíveis e alcançáveis.
Na nossa atuação, apostamos precisamente nessa lógica: democratizar o acesso à inspiração. Não se trata apenas de levar “mulheres de sucesso” às escolas — trata-se de garantir que essas histórias sejam relevantes e próximas da realidade das alunas. Por exemplo, em escolas TEIP, onde sabemos que muitas crianças e jovens vivem em contextos que requerem intervenção prioritária, é especialmente importante apresentar modelos que tenham percursos com os quais se possam identificar. Fazemos um esforço consciente para encontrar mulheres que tenham ultrapassado barreiras sociais, económicas ou culturais, e que possam dizer com verdade: “eu estive exatamente onde vocês estão”. É esse tipo de identificação que gera impacto, e que permite às jovens verem-se também nesses lugares de liderança.
É também essencial trabalhar desde cedo competências de liderança, pensamento crítico, autoestima e consciência de direitos. Os clubes de autoestima como o strongHER, os programas de literacia financeira, a exposição a diferentes percursos profissionais (incluindo nas áreas onde há sub-representação feminina) e a valorização de todas as escolhas são ferramentas que ajudam a construir essa base. Além disso, é importante criar:
Espaços de participação reais – nas escolas, nas organizações, nas comunidades – onde as jovens possam tomar decisões e ver o impacto da sua voz; Programas de mentoria e acompanhamento contínuo, especialmente para quem não tem acesso fácil a redes de apoio ou capital social; Canais de comunicação inclusivos, onde as suas histórias possam ser contadas e valorizadas; Políticas públicas e programas que apoiem a igualdade de oportunidades no acesso à formação, ao mercado de trabalho e à ocupação de cargos de liderança.
A promoção da liderança deve ser pensada como um processo coletivo, contínuo e contextualizado, que reconhece os pontos de partida desiguais e atua para os equilibrar. Só assim poderemos garantir que as lideranças do futuro são verdadeiramente representativas, diversas e comprometidas com uma transformação social mais justa.
P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?
JFC: Imagino – e quero acreditar – numa sociedade portuguesa mais informada, mais justa e mais consciente dos seus direitos. Uma sociedade onde a saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, seja efetivamente para todas as pessoas, sem discriminações, sem estigmas e sem barreiras. Uma sociedade que valoriza a igualdade de género não só no discurso, mas nas práticas e nas políticas públicas, com impacto real na vida quotidiana das pessoas.
Não tenho outra forma de olhar para o futuro a não ser com esperança. Essa esperança não é ingénua – é construída todos os dias com base no trabalho que fazemos, e que vemos ser feito por tantas outras associações da sociedade civil. Sabemos que os desafios são muitos, mas também sabemos da força transformadora que existe quando agimos em rede, quando somos persistentes e quando colocamos as pessoas no centro das soluções.
Acredito, e só posso acreditar, que estaremos melhor: com mais jovens empoderadas, mais políticas informadas por evidência e mais espaços de decisão ocupados por vozes diversas. Esse é o futuro pelo qual trabalhamos – e é o futuro que queremos ajudar a construir.
Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" |
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Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações. |