Paula Allen é Presidente da Associação COM ALMA
P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?
Paula Allen (PA): Considero essencial que as "vozes" ativistas individuais, sociais, políticas, se façam ouvir e representar, garantindo que "abafam" o ruído emitido por grupos fascistas, racistas, homofóbicos, entre outros. Devem ser solicitadas audiências junto de grupos políticos e de representação política e devemos sair à rua representando toda a sociedade, sobre aqueles e aquelas que não conseguem fazê-lo.
P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?
PA: Depende de quem estamos a falar. Há muita iliteracia nesta área e nem todas as pessoas conhecem os seus direitos. Infelizmente, as escolas estão com pouco terreno para poderem atuar ao nível da educação para a cidadania e as redes sociais ganharam um espaço demasiado grande na vida das pessoas. Nas redes sociais a desinformação é gigante. No que diz respeito às Universidades, deveria ser obrigatório, em todos os cursos, a cadeira (não optativa) de Direitos Humanos, cidadania, diversidade e interculturalidade. As empresas do setor privado só terão necessidade de mudar se a lei mudar e aí a CITE poderá ter um papel crucial, sendo que o ACT deveria ser mais vigilante. No que diz respeito às OSC, a falta de meios financeiros leva, muitas vezes, ao cumprimento de mínimos e a uma enorme rotatividade de pessoal. Desta forma quando as pessoas se tornam especialistas e começam a ter uma visão sistémica e crítica, muitas vezes têm de abandonar projetos por falta de financiamento. Ou seja, há que investir em políticas públicas mais estruturas e financiadas.
P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?
PA: Não só não é possível, como é obrigatório. Não existem 2 pessoas iguais e como tal, quando pensamos em abordagens, temos de garantir que as mesmas são adequadas para um conjunto de pessoas com diversidades a vários níveis, e uma delas é a diversidade sexual.
P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?
PA: As OSC já tentam (na minha opinião) fazer o melhor que conseguem com o pouco que recebem e as barreiras que lhes são impostas. Contudo, seria fundamental que as OSC se tornassem mais unidas e lutassem em conjunto contra este sistema de limitações, ao invés de lutarem umas contra as outras por financiamentos parcos.
P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?
PA: Promover o conhecimento do fantástico trabalho que é feito pelas OSC. Na minha opinião, devido a políticas internas, direções que não são de terreno e baixos recursos financeiros, as OSC não divulgam adequadamente os seus dados de trabalho e não têm um departamento de investigação. Isto leva a que, haja uma grande fatia da população que desconheça as OSC, e acima de tudo, a sua maioria desconhece as suas fontes de financiamento. Há que deixar sair esses dados e mostrar que se está há anos a fazer omeletes sem ovos.
P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?
PA: Dotar as OSC de formação especializada. Ao contrário do que se pensa, as pessoas que vão para as OSC ganham muito pouco e estão lá "por amor à causa". Essa boa vontade, nem sempre é sinónimo de especialização profissional. E as pessoas especializadas procuram empregos com um rendimento capaz de responder às suas necessidades. Ou seja, quando as entidades têm os/as especialistas, começa a rotatividade porque eles/as saem para propostas mais adequadas.
P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?
PA: Queria ter essa resposta. Educação, educação, educação. Formar jovens desde cedo e de forma consistente para garantir gerações com maior literacia. Abordar publicamente de forma "escancarada" a raiz dos problemas da Violência de Género - a falta de igualdade de género!
P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?
PA: Deixaria a importância de se unirem e se tornarem um grupo mais forte. Sinto que uma das grandes falhas está na falta de suporte entre mulheres e na consequente crítica e acusação das mesmas.
P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?
PA: Dar voz a modelos que possam seguir e abrir portas, fazer convites, empoderar e incluir.
P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?
PA: Comecei a trabalhar em 1995 nesta área e sinto que os meus pedidos/desejos continuam muito idênticos. Gostaria que as mulheres não fossem obrigadas a cumprir com papéis de género tradicionais, e apenas os fizessem por sua vontade e não por pressão (obrigatoriedade da gravidez, nº reduzido/escasso de parceiros/as sexuais, heterossexualidade e cissexualidade impostas, masturbação limitada/proibida, falta liberdade de falar, vestir, ..., constante assédio sexual na rua, escola, trabalho, respeito pelo seu corpo e pelas suas decisões sem atribuição de etiquetas ou conotações maltratantes, entre muitas outras). Espero viver um dia nesses tempos.
Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" |
---|
Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações. |