Beatriz Pires e Mafalda Rodrigues são, respetivamente, Presidente e Vice Presidente do Núcleo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
P&D Factor: Tendo em conta que estamos a assistir a retrocessos em matéria de Direitos Humanos nas sociedades consideradas democráticas, incluindo Portugal, e assumindo que as OSC têm um papel de whatchdog, o que considera ser essencial fazer?
Beatriz Pires e Mafalda Rodrigues (BP e MR): É essencial denunciar os retrocessos; realizar campanhas públicas de forma a consciencializar para o que tem vindo a acontecer; investir na educação através de ações de formação e combater a desinformação; pressionar as instituições democráticas para a ação e continuar a reivindicar os nossos direitos junto delas; reforçar as parcerias entre organizações e promover protocolos. Apenas adotando uma estratégia e promovendo iniciativas conseguiremos combater o atual panorama.
P&D Factor: Na sua opinião, existe consciência dos Direitos Humanos não realizados e a realizar em Portugal? Que estratégias considera mais eficazes para manter/aumentar esta consciência, visibilidade e trabalho nas/das OSC, universidades e empresas?
BP e MR: Apesar dos avanços que se têm registado, ainda há muitas desigualdades estruturalmente normalizadas e a consciência para estes direitos acaba por ser muito superficial, sendo necessário aprofundá-la. Seria eficaz promover espaços de partilha de experiências que permitissem alertar para os problemas existentes; garantir representação a vozes sub-representadas; incentivar parcerias concretas entre as OSC, universidades e empresas e garantir a responsabilidade social das mesmas.
P&D Factor: Na sua opinião, uma abordagem interseccional em matéria de Igualdade, Saúde e Direitos Humanos é possível sem incluir os temas da Saúde e SSR, Autonomia Corporal, como e porquê?
BP e MR: Não esqueçamos que as pessoas que enfrentam múltiplas discriminações acabam por ter o acesso à Saúde e a garantia dos seus Direitos Sexuais e Reprodutivos e Autonomia Corporal dificultados. Não integrar estas temáticas na ordem do dia seria ignorar os mecanismos de controlo que a interseccionalidade pretende desmantelar.
P&D Factor: Tendo em conta que existe uma forte dependência de financiamentos governamentais, levando a que as OSC se financiem através de candidaturas a temas propostos pela agenda oficial, e não aos que integram a sua missão – e que responderiam às necessidades das suas populações-alvo (por exemplo, os financiamentos não abrangem a prevenção primária, educação e informação de que resulta o aumento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST), o aumento da Violência baseada no Género (VbG), incluindo violência sexual, dificuldades de acesso aos serviços de Saúde e consultas de especialidade de Planeamento Familiar (PF) e Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)) – o que pode ser feito diferente e qual o papel das OSC neste cenário?
BP e MR: Reconhecemos que a dependência das OSC de financiamentos governamentais limita a sua autonomia e as afasta das reais necessidades das comunidades, como a prevenção das IST, o combate à violência de género, o acesso ao planeamento familiar e à IVG. É fundamental que as OSC pressionem o Estado a reformular os mecanismos de financiamento. Devem procurar diversificar as suas fontes de apoio, não só através de parcerias com outras associações, mas também com universidades. Entendemos que as OSC devem reafirmar a sua missão, mesmo face ao défice de apoio e às pressões institucionais. Além disso, é urgente que o Estado assuma a responsabilidade de reformular os mecanismos de financiamento, garantindo que estes sejam construídos de forma participativa e alinhada com as necessidades das populações. As políticas públicas não podem continuar a responder a agendas externas ou interesses momentâneos.
P&D Factor: Tendo em conta que os financiamentos privados em Portugal estão mais direcionados para entidades públicas, incluindo as que atuam em matéria de DSR e IG, quais as estratégias e/ou soluções para aumentar a coerência entre o discurso e a prática sobre a importância da sociedade civil?
BP e MR: Quando os financiamentos privados privilegiam entidades públicas, mesmo em áreas habitualmente trabalhadas pelas OSC, gera-se uma concentração de recursos que desvaloriza a experiência acumulada e a relação próxima destas ao território. É necessário pressionar os financiadores privados a reconhecerem o papel estrutural das OSC, sobretudo nas áreas negligenciadas pelo Estado. Ao mesmo tempo, é imperativo fortalecer as colaborações entre OSC de modo a ampliar o seu poder coletivo, partilhar recursos e reivindicar condições de financiamento mais justas e sustentáveis. Por fim, entendemos que é crucial fomentar o diálogo entre o Estado e a sociedade civil, assegurando a participação política das OSC nos processos de decisão.
P&D Factor: De que forma as políticas públicas e as respostas das OSC podem ser melhoradas para promover uma verdadeira IG e respeito pelos Valores/Direitos fundamentais, incluindo a Educação Sexual Compreensiva e Saúde Reprodutiva?
BP e MR: Primeiramente, há que tornar as políticas públicas internacionalmente justas, bem como integrar as OSC na definição destas políticas e assegurar que todos os setores estão articulados. Há que tornar a ESC obrigatória, transversal e sistemática e garantir que todos os profissionais frequentem formações contínuas sobre estas temáticas. Quanto às OSC, cabe garantir uma atuação crítica, comunitária e interseccional e trabalhar com e para as comunidades invisibilizadas; desenvolver campanhas de mobilização públicas, bem como denunciar toda e qualquer violação de direitos.
P&D Factor: Que mudanças são necessárias para inverter a tendência de que as normas culturais e sociais influenciam a capacidade das mulheres, meninas e jovens para tomar decisões sobre os seus próprios corpos?
BP e MR: Ainda que possa parecer ambicioso, é necessária uma mudança estrutural e transformar o sistema. Tem de haver uma reforma legislativa que garanta o acesso real e universal à Educação Sexual Compreensiva, ao planeamento familiar, à IVG, a cuidados para pessoas trans e promoção de políticas públicas neste sentido. Combater a impunidade, que se tem registado cada vez mais, da violência sexual, doméstica e institucional enraizada na nossa sociedade. Investir em mudar as mentalidades desde cedo é também necessário para que as novas gerações não pequem pelo que as gerações anteriores pecaram. Há que garantir a presença ativa de mulheres, raparigas e jovens nos espaços de decisão, bem como garantir que é dada visibilidade a pessoas silenciadas, de forma a questionar e desmontar as relações de poder que sustentam o atual sistema. Deve também ser garantido apoio financeiro e judicial a quem desafia o status quo.
P&D Factor: Que medidas e estratégias concretas recomendaria para empoderar mulheres, meninas e jovens para se tornarem agentes de mudança nas suas próprias vidas?
BP e MR: A criação de espaços seguros para aprender, partilhar e construir pensamento crítico seria um bom começo para as mulheres, meninas e jovens se aperceberem do seu potencial para mudar as suas próprias vidas, bem como apoiar programas de mentoria com mulheres líderes. Consideramos essencial garantir o acesso a uma educação feminista, inclusiva e interseccional, que desconstrua os papéis de género e reforce a autonomia individual. Além disso, é fundamental garantir o acesso pleno à saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planeamento familiar, IVG e apoio psicológico, especialmente para jovens e mulheres em contextos de vulnerabilidade. Entendemos que o empoderamento exige também a participação política efetiva, que assegure não apenas a representação, mas uma influência concreta nos processos de decisão.
P&D Factor: O que considera essencial fomentar – onde e de que forma – para mobilizar mulheres, meninas, raparigas, e grupos com menos visibilidade, para posições de liderança em OSC, cargos públicos e/ou governamentais?
BP e MR: Devemos sempre começar nas escolas, associações juvenis, universidades, centros comunitários e, devido a vivermos numa era digital, nas redes sociais e promover iniciativas nestes meios que estimulem o pensamento crítico sobre género e desigualdades. A garantia da visibilidade nestas matérias, assegurando que não se limitam a exceções elitizadas, mas envolvendo também percursos coletivos e comunitários, é também necessária.
P&D Factor: Como imagina o futuro da sociedade portuguesa em termos de Saúde, incluindo a Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade e Direitos Humanos nos próximos 10 anos?
BP e MR: Enquanto feministas, caber-nos-á sempre permanecer otimistas, mesmo que o panorama atual nos aflija. É necessário realismo, mas também esperança. Face aos avanços legais e retrocessos sociopolíticos estamos perante dois cenários: ou nada muda ou são tomadas medidas estruturais urgentemente. Se nada mudar, nos próximos 10 anos, arriscamo-nos a assistir ao enfraquecimento da IVG, à limitação do planeamento familiar, bem como ao desaparecimento da educação sexual nas escolas, o que levaria a um aumento indesejado de IST e gravidezes indesejadas. A desigualdade de acesso à saúde agravar-se-á, bem como o crescimento da violência baseada no género, como temos assistido, através da culpabilização das vítimas e respostas institucionais ineficazes. As medidas que necessitam de ser tomadas urgentemente incluem o reconhecimento da Saúde Menstrual e da Saúde Trans, bem como o investimento no acesso à IVG e planeamento familiar no SNS; paridade em cargos de decisão e reformulação da justiça criminal para proteger efetivamente as vítimas e que pare a impunidade dos agressores.
Projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" |
---|
Estas entrevistas, efetuadas no âmbito do projeto "Lugar e Voz - Agência e Combate às Invisibilidades e Exclusão" (financiamento NHC), recolheram os contributos das mulheres na liderança e/ou nos órgãos sociais de organizações da sociedade civil (OSC) nas áreas de ação do estudo do projeto, bem como pretenderam identificar bloqueios, caminhos e soluções que as próprias identificam ao nível da visibilidade e da participação de mulheres nas organizações. |