Entrevista

. As pessoas em primeiro lugar

2015 é o Ano Europeu do Desenvolvimento e para Graça Campinos Poças é o ano da acção. A presidente da P&D Factor adverte que não podemos consentir o aumento da pobreza, das desigualdades sociais e da discriminação de género. Em Portugal e no resto do mundo.

Fotografia de Graça Campino Poças

Graça Campinos Poças, presidente da P&D Factor, lembra-se bem do tempo em que Portugal se debatia com muitos dos problemas que hoje identificamos com os países em desenvolvimento e que incidem particularmente sobre as mulheres: «Investimos e mudámos porque houve vontade política.»

 

Entrevista: Célia Rosa 

Esta semana assinala-se o Dia Internacional da Mulher e o enfoque é a Declaração e o Programa de Acção de Pequim. No que respeita à igualdade de género o que mudou nestas duas décadas?
Mudou o enquadramento jurídico e o discurso institucional de líderes e governantes nacionais e internacionais e, por isso, a igualdade de género e os direitos das mulheres ganharam o espaço que merecem e passaram a estar reflectidos nas leis e nas normas. Mas uma coisa é a igualdade formal, que está assegurada na maioria dos países desenvolvidos, outra é a igualdade de facto, que continua por realizar apesar dos progressos registados. Ainda não conseguimos prevenir a violência doméstica, que é uma violência de género, e as mulheres continuam a ser discriminadas no trabalho – veja-se a desigualdade salarial –, na política, na tomada de decisão. A igualdade de género tem de estar presente nas agendas políticas, mediáticas e da sociedade civil.

Nos países em desenvolvimento que reflexos teve o Programa de Ação de Pequim?
O Programa de Acão de Pequim é, conjuntamente com o Programa de Ação sobre População e Desenvolvimento, uma das Agendas inacabadas das Nações Unidas. Os ganhos são sobretudo políticos e de visibilidade nas agendas nacionais e de doadores, desde logo os ganhos que vieram com os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), aprovados no ano 2000. Nestes vinte anos registaram-se melhorias significativas, mas o dia a dia das mulheres dos países em desenvolvimento continua a escrever-se com discriminação. O acesso à educação, que é determinante, continua a ser vedado a milhões de raparigas; o acesso à saúde está longe de ser garantido e todos os dias morrem 800 jovens e mulheres por causas relacionadas com a gravidez e o parto; a mutilação genital feminina ainda é uma prática recorrente em vários países, tal como os casamentos forçados e precoces.

Fizeram-se progressos, mas a igualdade de género continua a ser uma miragem?
O empoderamento das mulheres está diretamente relacionado com o desenvolvimento e embora vejamos algumas mudanças formais e reais – por exemplo, na Guiné-Bissau já há pessoas condenadas pela prática do crime de Mutilação Genital Feminina – o que tarda mais são mudanças de mentalidade. Mas este caso demonstra que os direitos das raparigas e das mulheres e os direitos humanos estão a ganhar consistência e fundamentação nos vários cenários de direitos e desenvolvimento.

A Guiné-Bissau é um dos países do mundo com piores indicadores de saúde materna, neonatal e infantil enquanto Portugal tem dos melhores. Mas nem sempre foi assim. O que nos pode dizer sobre isso?
Precisamente. Até à primeira metade do século passado Portugal debatia-se com muitos dos problemas que hoje identificamos com os países em desenvolvimento e que incidiam particularmente sobre as mulheres. Pobreza, elevadas taxas de mortalidade materna e infantil, discriminação das meninas no acesso à educação, falta de abastecimento de água potável e de saneamento são alguns deles. Esta realidade mudou com a democracia e nesse sentido Portugal exemplifica bem o que é possível fazer em prol do desenvolvimento e dos direitos humanos se existir vontade política. E do meu ponto de vista, os ganhos que vieram com a nossa história recente dá-nos uma responsabilidade acrescida sobretudo junto dos países de língua oficial portuguesa.

«Portugal é um exemplo a seguir nas áreas da saúde materna, educação e igualdade de género.»

Que avaliação faz do trabalho das entidades oficiais portuguesas em matéria de desenvolvimento?
É responsabilidade dos países desenvolvidos apoiarem e colaborarem com os países em desenvolvimento, em parceria com organizações oficiais e da sociedade civil, envolvendo as comunidades e os líderes locais e regionais, sempre no respeito pela cultura e identidade locais, sem impor modelos. Só quando os direitos humanos estiverem nas agendas dos governos, forem garantidos recursos e houver vontade política é que podem ocorrer mudanças, com benefícios claros para toda a sociedade. Portugal, à semelhança de outros países democráticos, tem investido no desenvolvimento sobretudo através dos vários projetos apoiados pela Cooperação e apoiando organizações não governamentais para o desenvolvimento (ONGD), programas bilaterais, entre outros. Há necessidade de um maior investimento bi e multilateral nas temáticas de população, sobretudo as associadas a direitos, educação, saúde sexual e reprodutiva e fim de todas as formas de violência e discriminação de género, essenciais à igualdade de direitos, oportunidades e combate à pobreza. Portugal é um exemplo a seguir nas áreas da saúde materna, infantil e dos adolescentes, vacinação, educação e igualdade de género, mas também na inclusão. Basta pensar no trabalho gigantesco que conseguimos fazer quando, na sequência da descolonização, acolhemos e integramos mais de meio milhão de pessoas.

Este é um ano determinante para os direitos humanos. Faltam poucos meses para o final da campanha dos ODM, define-se o pós-2015 e é Ano Europeu para o Desenvolvimento. O que é que não pode ser esquecido?
Este é o tempo da acção. Não podemos consentir o aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Não podemos continuar a deixar morrer mulheres por causas evitáveis. Não podemos fechar os olhos à morte de crianças por infecções preveníveis através da vacinação ou por ingestão de água imprópria para consumo. Não podemos tolerar raptos de meninas e mulheres como o que sucedeu na Nigéria e que acabou por cair no esquecimento. Não podemos consentir que os jovens, que representam um terço da população mundial, continuem excluídos da sociedade, do mundo do trabalho e dos processos de tomada de decisão. Não podemos permitir que milhares de refugiados, vítimas de conflitos armados, continuem a procurar abrigo na Europa e nada fazer. Não podemos continuar à espera de supostas condições ideias para investir nas pessoas e no seu desenvolvimento. Está na hora de agir. O repto é para os decisores políticos, para os líderes, para a sociedade civil – que deve fortalecer-se – e para a comunicação social, que tem o dever e a responsabilidade de pôr o desenvolvimento na agenda noticiosa de todos os dias.

Essas são algumas das temáticas que estão na génese da criação da P&D Factor, certo?
Precisamente. A P&D Factor é uma jovem ONGD – temos dois anos de vida – fundada por pessoas com muita experiência, conhecimento e totalmente empenhadas na promoção e protecção do desenvolvimento, igualdade de género e direitos humanos. Damos especial atenção à educação e saúde sexual e reprodutiva, à igualdade e à violência de género, incluindo a Mutilação Genital Feminina, crimes de honra e outras práticas nefastas. Dinamizamos iniciativas e parcerias de cooperação, informação, sensibilização, comunicação e acção juntamente com outros organismos congéneres, com entidades e agentes de decisão técnica e política nacionais e internacionais e com o público em geral. O trabalho que vimos desenvolvendo com o Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento, com o Forúm Europeu de Parlamentares, Fundo das Nações Unidas para a População e outras organizações internacionais, com quem atuamos em rede, são uma constante plataforma de conhecimento e ação para melhor fazer e ser enquanto organização da sociedade civil.

«A exposição 'Novas Demais para Casar' foi visitada por seis mil pessoas e teve grande impacto mediático e político.»

Entre as iniciativas desenvolvidas pela P&D Factor está a campanha «Continuamos à Espera» e a exposição «Novas Demais para Casar». Como é que avalia o impacto destas iniciativas?
Quisemos alertar para todas as formas de discriminação de género que enfrentam as mulheres e raparigas em diversas regiões, especialmente no acesso à educação, ao emprego e aos sistemas de saúde, bem como para o casamento forçado, a exploração sexual, a mutilação genital e outras práticas nefastas condenáveis. Estas iniciativas, tal como a exposição «Marias – Por todas as meninas e mulheres», as conferências e os workshops que organizamos são chamadas de atenção para as situações de profunda desigualdade que continuam a existir em qualquer parte do mundo e têm colhido a adesão do público. A exposição «Novas Demais para Casar» foi visitada por seis mil pessoas e teve grande impacto mediático e político. Pela primeira vez, além de números de relatórios, debatemos realidades, conhecemos rostos e foi possível apresentar propostas aos vários níveis da decisão política e ação técnica e social. A parceria da P&D Factor com a Corações com Coroa (CCC), com a Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e Saúde (AJPAS) e a Oikos mobilizou, debateu, propôs e apoiou não apenas a construção da Agenda Pós-2015 mas também os debates sobre a Convenção de Istambul e MGF.

A agenda pós-2015 deverá continuar a centrar-se nos países mais pobres ou aplicar-se também aos países desenvolvidos, onde alguns direitos fundamentais estão agora ameaçados?
Os direitos humanos são universais e mesmo nos países mais desenvolvidos e preocupados com a sua realização temos assistido a retrocessos. Por outro lado, as consequências da crise económica e financeira têm-se feito sentir em todas os países e latitudes e têm afectado o desenvolvimento humano direta e indiretamente. Os direitos humanos e o desenvolvimento não estão garantidos, a sua realização exige empenho e investimento permanentes e para isso têm de continuar nas agendas políticas nacionais e internacionais, sob pena dos grupos mais vulneráveis, é o caso das mulheres, mas também das crianças, das raparigas, dos seniores e dos migrantes serem ainda mais excluídos. A Agenda pós-2015 requer que, além dos tradicionais investimentos, se identifiquem novas abordagens, recursos e mecanismos vinculativos de implementação. Não podemos continuar a assinar e depois esquecer as pessoas. O presente e o futuro da humanidade depende do que fizemos ontem, mas sobretudo do que estamos empenhados em fazer hoje e no amanhã. Não são questões de boa vontade ou caridade, são sim determinantes de solidariedade responsável e cidadã com o mundo em que vivemos e que queremos para as gerações futuras.

O que espera de 2015, Ano Europeu do Desenvolvimento?
Já era tempo de ter o desenvolvimento na esfera política da União Europeia.
A crise tem tido efeitos terríveis na Europa e tem sido usada para justificar retrocessos, por exemplo no acesso à saúde, no emprego, na inclusão dos jovens e dos migrantes, no aumento da pobreza. A percepção dos cidadãos sobre a ajuda financeira ao desenvolvimento também mudou pois, com os problemas dentro de casa e por falta de informação, os europeus começaram a questionar a ajuda concedida aos países mais pobres. Mas nós queremos uma Europa mais solidária e capaz de sensibilizar todos os cidadãos para o papel que cada governo e cada um de nós pode ter na luta contra a pobreza nacional e mundial. É preciso lembrar que, dos 7,2 mil milhões de pessoas que constituem a população mundial, 1,3 mil milhões vivem ainda em condições de pobreza extrema. É responsabilidade de todos, governantes e sociedade civil, acabar com isto. Não basta assinar acordos e criar planos, é necessário aumentar a centralidade das pessoas e da resolução dos problemas sociais nas políticas de desenvolvimento. O desenvolvimento nos seus vários pilares, incluindo o económico faz-se com as pessoas nos seus vários papeis e estatutos. Não basta trabalhar para as pessoas é necessário trabalhar com as pessoas, aumentar e identificar novas formas de ação e participação.

Como é que se interessou pelos direitos humanos?
O meu percurso profissional, de 35 anos, desenvolveu-se especialmente nas áreas da toxicodependência e da saúde em meio prisional, o que me permitiu trabalhar com utilizadores de droga e reclusos, dois grupos heterogéneos mas ambos excluídos, empobrecidos, com poucas competências sociais e educacionais e com graves problemas de saúde, incluindo a mental. Vi e senti a diferença que faz na vida daquelas pessoas ter acesso à educação e a um diploma escolar ou a um médico dentista, por exemplo. A educação, a saúde, o desenvolvimento e os direitos humanos têm o poder de mudar a vida das pessoas. Por mais vulneráveis e desfavorecidas que sejam. Essa é a minha convicção. As pessoas e os direitos das pessoas estiveram sempre no centro da minha vida. Por isso, pouco tempo depois de me aposentar, em 2008, senti necessidade de continuar ativa e de retribuir à sociedade o que ela também me deu. É o que tento fazer na P&D Factor.

 

Quem é Graça Campinos Poças?

Fotografia de Graça Campino PoçasEstudou medicina, mas acabou por se formar em psicologia clínica no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa. Em 1976, integrou a primeira equipa do Centro de Estudos e Profilaxia da Droga/Sul (CEPD) – organismo dependente do Gabinete de Coordenação e Combate à Droga, o atual Instituto da Droga da Toxicodependência – onde, durante 12 anos, trabalhou nas áreas da prevenção primária e secundária. Em 1986, entrou para Direcção-geral dos Serviços Prisionais, onde foi diretora dos Serviços de Educação, dos Serviços de Saúde e do Hospital Prisional São João de Deus. Foi mentora do programa de intervenção na toxicodependência em meio prisional e criou a primeira Unidade Livre de Drogas, no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Pelo meio, liderou a equipa que lançou a Fundação Portuguesa para o Estudo, Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, que funciona na dependência da Santa Casa da Misericórdia de Cascais. Em 2008 aposentou-se. Há dois anos, aceitou o repto de lançar a P&D Factor – Associação para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento, de que é presidente. Graça Campinos Poças tem 69 anos, três filhos e 13 netos.

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