“A interrupção voluntária da gravidez é uma decisão que compete exclusivamente à mulher”
- Data de publicação 28 setembro 2015
A Maria Purificação Araújo se deve, por assim dizer, a emancipação sexual feminina em Portugal. Não fosse o seu empenho na criação do planeamento familiar em Portugal, nomeadamente com a introdução da pílula contracetiva, contra uma Igreja católica muito fechada que associava sexo a fecundação e reprodução, as mulheres continuariam a ter gravidezes indesejadas. Também a esta médica ginecologista e obstetra se devem outros marcos importantes na saúde da mulher, como a introdução do Teste Papanicolau e a promoção do parto hospitalar. Ela, que tantos bebés ajudou a nascer fora do hospital, filhos de mulheres na clandestinidade antes do 25 de abril, sempre foi defensora acérrima do fecho de maternidades que não têm hospitais integrados.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández
Escolheu ser médica ginecologista e obstetra porquê?
Porque estando relacionadas com assuntos específicos da saúde das mulheres, achei que a minha ação podia ser mais direta e mais útil se trabalhasse nessas especialidades.
Por que razão nunca exerceu cargos públicos, a não ser nos hospitais? O regime não a deixava?
Encontrei restrições políticas para a minha entrada na função pública, embora houvesse maior abertura no acesso aos hospitais. Mesmo assim, para além do Internato no Hospital de Santa Maria, fui Consultora de Obstetrícia no Instituto Maternal e na Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários. Posteriormente, fui responsável pelos Serviços de Saúde Materna da Direcção-Geral de Saúde e membro da Comissão Nacional da Saúde da Mulher e da Criança.
Nessa altura, antes do 25 de abril, quais eram as principais causas de morte nas mulheres parturientes? E nas crianças?
Aborto e hemorragia, no caso das mulheres. Nas crianças, asfixia perinatal e malformações congénitas.
De que forma se combateram estes principais fatores de risco?
Os valores elevados de mortalidade materna (42,9%) e de mortalidade perinatal (31,9%) refletiam a ausência de cuidados à grávida, ao feto e ao recém-nascido. A taxa de vigilância à gravidez era de 67% e a taxa de parto hospitalar era de 65%. A criação da Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (de que era diretor o Prof. Arnaldo Sampaio) e a expansão dos Centros de Saúde aumentaram a disponibilidade e a acessibilidade aos Cuidados de Saúde Primários, que incluíam o planeamento familiar, a vigilância da gravidez e os Cuidados de Saúde Infantil. O parto hospitalar foi estimulado. Estas medidas, no seu conjunto, contribuíram decisivamente para combater os fatores de risco de então.
Quando começou a colaborar como consultora no Instituto Maternal, no âmbito dos dispensários materno-infantis, em 1967, que trabalho se fazia nesses dispensários?
Fazia-se vigilância da gravidez e do desenvolvimento e saúde das crianças.
É considerada a ‘mãe’ do planeamento familiar em Portugal. Isso deixa-a orgulhosa?
Sinto-me satisfeita por ter colaborado na divulgação e na introdução do planeamento familiar (legalizado por Despacho do Dr. Albino Aroso, em 1976) nos Serviços de Saúde. Devo acrescentar que a Associação para o planeamento familiar (APF) teve também um importante papel na formação de assistentes sociais, psicólogos, professores e outros profissionais, e na divulgação do planeamento familiar junto das comunidades.
É o seu ‘bebé’ favorito, o planeamento familiar?
Sim é. Permitindo evitar as gravidezes não desejadas e favorecer as gravidezes desejadas, espaçando os nascimentos e fornecendo informação sexual, o planeamento familiar contribui para a promoção da saúde da mulher e da criança e para uma melhor qualidade de vida.
Se tivesse que escolher outro, qual seria?
Escolheria o Teste de Papanicolau para rastreio do carcinoma do colo do útero, introduzido nas normas de vigilância de saúde da mulher. Segundo a publicação The American College of Obstetricians and Gynecologists, “entre 1950 e 1992, a taxa de mortalidade por cancro do colo uterino diminuiu 74%”. Já agora, deixe-me dizer-lhe que tenho um terceiro ‘bebé’: o empenho pelo parto hospitalar.
O planeamento familiar foi implementado em 1976, mas, já antes, e com o aval do professor Arnaldo Sampaio, introduziu atividades clandestinas de planeamento familiar. Em que consistiam?
Eram atividades realizadas nos Dispensários Materno-Infantis e consistiam basicamente na divulgação de informação sobre os métodos contracetivos e no aconselhamento do método mais adequado à mulher/casal. Em 1975, o serviço médico à periferia deu uma grande contribuição para a divulgação e aplicação do planeamento familiar e mais tarde, em 1978, a convite da Organização Mundial de Saúde e com o seu apoio, realizou-se, em Lisboa, um Curso Internacional de Saúde da Família e planeamento familiar.
Num país tão católico, e uma vez que a Igreja associava o sexo à fecundação e à reprodução, foi fácil convencer as mulheres a aceitarem a pílula?
Houve resistências, principalmente da Igreja e dos meios católicos, utilizando por vezes argumentos ridículos como o de um padre que disse, no cimo do púlpito, que tomar a pílula provocava um buraco no estômago. Mas, com maior ou menor dificuldade, fomos sempre ultrapassando os obstáculos. As mulheres eram muito recetivas ao problema. A pílula era símbolo da sua emancipação, porque permitia (permite) à mulher controlar a sua sexualidade e ter uma gravidez desejada.
O seu nome, juntamente com o de Ana Vicente e o da libanesa Wadad Haddad, também está ligado aos cursos de formação cá e nos Países de Língua Portuguesa sobre contraceção e aborto a profissionais de saúde, a médicos e, sobretudo, a enfermeiras…
Sim, tanto a Ana Vicente como a Wadad Haddad deram apoio aos cursos de formação de formadores em planeamento familiar nos PALOP, financiados pelo FNUAP [Fundo das Nações Unidas para a População] e realizados entre 1989 e 1996. Foi um passo muito importante, esse.
Mais tarde, com Leonor Beleza, fez-se um levantamento das deficiências dos serviços e foi criada a primeira Comissão da Saúde da Mulher e da Criança. Um dos pontos do plano de ação deste grupo de trabalho era o encerramento de algumas maternidades, coisa que sempre defendeu, de resto. Porquê?
Defendi, porque a maior parte das maternidades não integradas em hospitais não estavam equipadas com bloco operatório nem tinham a presença de obstetras e neonatologistas, o que não permitiria fazer face a certas complicações que podiam surgir repentinamente. Ainda hoje mantenho essa posição.
“Houve resistências [na aceitação da pílula], principalmente da Igreja e dos meios católicos, utilizando por vezes argumentos ridículos como o de um padre que disse, no cimo do púlpito, que tomar a pílula provocava um buraco no estômago. Mas, com maior ou menor dificuldade, fomos sempre ultrapassando os obstáculos”.
Como é que o País estava dotado de centros de saúde?
Estava bem equipado em centros de saúde, mas a sua relação com os hospitais era praticamente inexistente. A Comissão Nacional de Saúde Materno-Infantil, criada em 1989 pela então ministra da Saúde, Leonor Beleza, contribuiu decisivamente para a resolução deste problema, com a construção das Unidades Coordenadoras Funcionais, que estabeleciam uma articulação entre os centos de saúde e os hospitais. Tornou-se obrigatória a utilização do Boletim de Saúde da Grávida.
Que ligações tinha a Direção Geral de Saúde de então com a Organização Mundial de Saúde (OMS)?
Tinha ligações de alguma proximidade. A partir de 1976, integrados num Projeto de Formação em planeamento familiar apoiado pela OMS, através do FNUAP, realizaram-se em todo o País Cursos de planeamento familiar, que permitiram o desenvolvimento destas atividades em todos os Centros de Saúde do país. Foi então que fui nomeada Consultora Temporária da OMS.
A analgesia e a redução da dor no parto foi outra conquista muito importante…
Oh, sim, sem dúvida. Em 1954, por iniciativa de Pedro Monjardino, foi introduzido em Portugal, e com grande êxito, o Método Psicoprofilático do Parto sem dor. Continua a ser importante, pela consciência que a mulher adquire de todo o processo por que está a passar e pela maneira como colabora nele.
O aborto foi outra das suas grandes lutas…
Sim, digamos que estive, de facto, verdadeiramente empenhada em todas as atividades de defesa da interrupção voluntária da gravidez como um direito da mulher. Acho que a interrupção voluntária da gravidez é uma decisão que compete exclusivamente à mulher.
A recente alteração da lei do aborto, proposta pelo governo de coligação PSD/CDS-PP, passa também pela introdução de taxas moderadoras. Está de acordo?
Não, não estou, porque nenhum ato obstétrico paga taxas moderadoras e a interrupção voluntária da gravidez é um ato obstétrico.
A mortalidade materna em Portugal é agora de 2,7%, a mortalidade perinatal é de 4,9%, e a mortalidade infantil é de 3,8%. Estes valores estão a par dos nórdicos e são melhores do que os ingleses. Desde o tempo em que começou a exercer até hoje, a evolução da saúde da mulher e da criança é a que esperava?
Perante as medidas que foram sendo tomadas ao longo dos anos, esta era a evolução esperada. Espero que se mantenha.
Portugal foi considerado pela OMS um case-study, tal foram as melhorias nessa área. Mas pode-se fazer mais. O quê, por exemplo?
O Professor Torrado da Silva, foi, enquanto Presidente da Comissão Nacional da Mulher e da Criança, um dos grandes defensores de soluções que permitam melhorar não apenas os aspetos técnicos como também o relacionamento humano. Mas este é um processo contínuo que nunca acaba. Haverá sempre coisas para fazer.
Está afastada do serviço hospitalar há muitos anos. Tem saudades?
Não. Gosto muito de fazer clínica.
Faz ideia de quantos partos fez?
Honestamente não, não faço. Uns milhares.
Muitos deles fez fora do hospital. Como não conduzia, era o seu marido que a levava. Ele não ficava aborrecido?
Bem, quando os partos eram às quatro ou cinco da manhã, não ficava muito contente
Muitas vezes foram buscá-la a casa para fazer os partos de mulheres de políticos na clandestinidade. A esses, o seu marido não a levava…
Claro que não, porque era potencialmente perigoso. O meu marido não ia por razões de segurança.
Além da medicina, tem a arte como uma segunda paixão. De que tipo de arte gosta?
Aprecio particularmente pintura, música e literatura.
Quem é Maria da Purificação Araújo? |
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Licenciada em medicina e tendo seguido a carreira hospitalar pública no âmbito da ginecologia e obstetrícia, foi pioneira na assistência às puérperas e nascituros. Esteve envolvida nos programas para a introdução da pílula, defendendo não só o parto profilático como a assistência pré--natal e o acompanhamento parental durante a gestação e o parto. Dirigiu as Consultas de planeamento familiar e Saúde Sexual e Reprodutiva em Portugal e militou a favor da Interrupção Voluntária da Gravidez. Enquanto diretora-geral das consultas de planeamento familiar, promoveu cursos para médicos, enfermeiras e outro pessoal de saúde. Atualmente, dedica-se à clinica privada. |