"Uma em cada dez pessoas é homossexual"
- Data de publicação 09 outubro 2015
Num país que permite aos casais do mesmo sexo casarem, mas nega-lhes o direito à adoção e à coadoção de crianças, o acesso às técnicas de procriação medicamente assistida e à doação de sangue em situação de igualdade, é um país homófobo, discriminador e preconceituoso. Para o vice-presidente da ILGA Portugal, Paulo Côrte-Real, há muito trabalho a fazer pela defesa das pessoas LGBT.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopez Fernández
Que significado tem para si o dia 8 de Janeiro de 2010?
Foi um marco histórico na luta pelos direitos das pessoas LGBT no nosso país. A aprovação, no Parlamento, da igualdade no acesso ao casamento fez de Portugal notícia internacional pelos melhores motivos. Foi, na altura, o 6º país da Europa e o 8º do mundo com casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse dia foi fundamental por vários motivos: porque foi o culminar de uma campanha em que a visibilidade de casais do mesmo sexo ajudou a quebrar tabus, trazendo a discussão sobre o preconceito, sobre a discriminação e sobre as nossas identidades para o espaço público, mudou a perceção pública sobre essas identidades, contribuiu para a igualdade de género (ao anular o requisito formal que ainda implicava papéis diferenciados para homens e mulheres no âmbito do casamento), ajudou a vincar a importância de lutar contra as diferentes formas de discriminação. E, pela centralidade que o processo teve em termos políticos, contribuiu para a criação de um espaço político e mediático para as outras questões fundamentais, incluindo as da parentalidade ou do reconhecimento da identidade de género das pessoas trans.
Portugal é um país de homófobos?
Qualquer país o é. Os preconceitos e a categorização de pessoas são-nos ensinados desde sempre. Desconstruir os vários preconceitos é um trabalho longo e há quem não o faça. Expressa-se desde logo nos insultos homofóbicos, que, além de evidentes, estão no topo da hierarquia de insultos. Os resultados do Observatório da Discriminação da ILGA Portugal (http://observatorio.ilga-portugal.pt) são sintomáticos do muito trabalho que há a fazer em Portugal.
Chamar a atenção para as desigualdades e para a discriminação que o preconceito gera, por exemplo?
Sim e, em simultâneo, tentar combater esse preconceito através da sensibilização da população em geral, mas, também de um trabalho dirigido a públicos que têm uma relevância especial no acesso à cidadania: da segurança à justiça, passando pela educação e saúde ou pela segurança social, há profissionais de várias áreas que precisam de fazer, com urgência, essa desconstrução do preconceito. É isso que na ILGA temos tentado fazer de forma mais sistemática.
Além da proibição da adoção de crianças por casais do mesmo sexo e da procriação medicamente assistida, que outras medidas (ou a falta delas) aponta como espelho do preconceito contra os homossexuais em Portugal?
As decisões tomadas [pela maioria parlamentar PSD-CDS PP] no sentido de continuar a proibir arbitrariamente a candidatura à adoção por casais do mesmo sexo ou de proibir o acesso a técnicas de procriação medicamente assistida (como a inseminação artificial) para mulheres solteiras ou casais de mulheres significa fazer prevalecer, precisamente, esse preconceito. E significa reforçá-lo e legitimá-lo a partir do próprio Parlamento. Já é evidente (até para o Parlamento) que não há dúvidas nos vários planos científicos e que as posições das várias áreas profissionais que lidam com crianças são de apoio ao exercício da parentalidade em casais do mesmo sexo. Portanto, restringir o acesso à parentalidade é limitar direitos fundamentais com base apenas no preconceito. A mensagem que o Parlamento passa ao manter a discriminação é simplesmente uma mensagem de desumanização: é dizer que a orientação sexual pode tornar uma pessoa menos pessoa. É uma mensagem violenta e que reforça o preconceito que o próprio Estado se obriga, na Constituição, a combater.
A coadoção foi uma questão particularmente marcante dos últimos anos…
Foi muito. Tratando-se do reconhecimento legal de famílias que já existem – e da garantia desse reconhecimento para crianças que evidentemente o exigem -, a aprovação inicial foi um sinal de que o preconceito, pelo menos, não se sobreporia ao bem-estar de crianças que estão no nosso País e cujas vidas já estão a ser afetadas por uma lei que nega a realidade das suas famílias. É evidente que uma criança que tem e sempre teve duas mães tem que ter ambas reconhecidas na lei. Os direitos que permitem exercer as responsabilidades só existem em função desse reconhecimento. É precisamente por ser evidente que o próprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos (que só intervém em questões que merecem um consenso forte a nível europeu) já se pronunciou sobre o assunto, condenando a Áustria, que teve que mudar a sua legislação. Esperaríamos que houvesse, aliás, unanimidade nesta questão em particular. Mas, em vez disso, após a aprovação na generalidade (que gerou expectativa em muitas famílias portuguesas) e após um processo de audições no Parlamento, a atual maioria parlamentar quis ignorar todo o trabalho parlamentar de quase um ano e reverter o processo, ameaçando primeiro com um pseudo-referendo, que já se sabia ser inconstitucional num processo de bullying político sobre deputadas e deputados que tinham viabilizado o projeto de lei, mas sobretudo sobre as famílias e crianças que estavam em jogo. A escolha final foi a de impor a recusa consciente de uma obrigação de Portugal face à Convenção Europeia de direitos humanos, como clarificado ao Parlamento pelo próprio Comissário. Este facto é inédito em Portugal e mostra bem o extremismo da atual maioria parlamentar, que não hesitou em negar famílias e crianças, mas também obrigações internacionais de Portugal.
Tem esperanças de que em Portugal os homossexuais e as lésbicas consigam adotar crianças em situação de igualdade com os heterossexuais?
Tenho a certeza de que, na sequência de todo o trabalho que foi feito nos últimos anos, e até na sequência da clarificação que o processo da coadoção gerou na sociedade, outra maioria parlamentar acabaria com a restrição à candidatura à adoção por casais do mesmo sexo. É já óbvio que existem em Portugal várias crianças criadas por casais do mesmo sexo e é também já óbvio que é irresponsável defender que nenhum casal do mesmo sexo tem condições para adotar (tal como é irresponsável defender que todos têm). A irresponsabilidade da exclusão automática tem que acabar. Caberá aos serviços que têm essa competência averiguar então, caso a caso, se uma determinada família tem ou não condições para adotar uma ou mais crianças.
Pois, mas será também importante garantir que os profissionais desses serviços não decidam com base no preconceito. Em que setores a homofobia é mais marcante? Na publicidade, por exemplo, é evidente.
Desde logo, nos setores mais masculinizados, porque a homofobia, tal como a transfobia, estão associadas ao sexismo. Mas há muitos mais. Diria que o problema ainda é estrutural e, portanto, transversal, e que é a esse nível que tem que ser combatido.
E na política? Acha que quem quer agradar a um eleitorado mais conservador tende mais a esconder a sua homossexualidade? Porquê?
O problema do armário em Portugal é abrangente. Assumir que se é lésbica, gay ou bissexual continua a ser absurdamente raro, tendo em conta o quadro legal e a evolução social do país. Estima-se que uma em cada dez pessoas seja lésbica, gay ou bissexual: isso significa uma em cada dez pessoas num supermercado, num centro de saúde, em cada turma de cada escola, em cada autocarro, em cada local de trabalho, em cada família. Ou seja, a política também estará cheia de armários que é fundamental abrir, para dar visibilidade à enorme diversidade de pessoas que são lésbicas, gays ou bissexuais. O silêncio que marca a experiência de quem vive no armário tem custos importantes, é mais do que tempo de termos pessoas assumidamente LGB (mas também pessoas T) na política.
Jorge Nuno Sá, o antigo líder da JSD que em 2011 protagonizou o primeiro casamento gay da política nacional, numa entrevista em Maio deste ano ao Jornal I, alertou para isso, para o facto de existirem “mais homossexuais do que aqueles que o assumem publicamente”.
O armário é ainda a regra e a regra é completamente anacrónica face ao país em que vivemos. Uma em cada dez pessoas significa mesmo um conjunto muito alargado de pessoas. Um milhão, dizia o Expresso, em 2005, com base numa sondagem. Estamos longe de ter a visibilidade que devíamos ter e que poderia ter tanto impacto para combater o preconceito e para mostrar a diversidade que caracteriza a população LGBT.
O Primeiro-ministro luxemburguês casou recentemente com um homem. Acha que em Portugal isso seria possível?
Sim. Acho que aquilo que achamos que é possível muda em função das realidades com que nos confrontamos. Em 2005, quando começámos a campanha pela igualdade no acesso ao casamento, eram mesmo muito poucas as pessoas que previam que isso aconteceria em 2010. Aconteceu, foi possível, com uma campanha bem planeada e um trabalho de sensibilização dirigido. A mudança somos nós. E também somos nós quando decidimos assumir-nos e mostrar com naturalidade que as pessoas LGBT são pessoas. A realidade é a melhor forma de desarmar preconceitos.
“Continuamos a ter taxas de ideação e tentativa de suicídio muito superiores para jovens LGBT, continuamos a ter episódios de violência a diversos níveis (na família, na escola, no espaço público) e precisamos de força para os combatermos. Essa força vem de sabermos que não estamos sós e que há mais pessoas como nós”.
Acha então importante que os políticos homossexuais assumam a sua orientação sexual… Mas isso mudaria o quê?
Acho, claro. Pelo exemplo, pela visibilidade que contraria o silêncio que tem marcado tantas vidas ao longo de tanto tempo. Porque há jovens que precisam de modelos identitários para se construírem como pessoas, contra o insulto, contra a invisibilidade e contra a sensação de isolamento que continua a ser frequente. Porque continuamos a ter taxas de ideação e tentativa de suicídio muito superiores para jovens LGBT, porque continuamos a ter episódios de violência a diversos níveis (na família, na escola, no espaço público) e precisamos de força para os combatermos. Essa força vem de sabermos que não estamos sós e que há mais pessoas como nós. As figuras públicas têm o poder de chegarem a muitas pessoas, pelo que têm também uma responsabilidade acrescida.
Falou nas taxas de ideação e tentativas de suicídio nos jovens LGBT, que são muito superiores, no silêncio a que muitos se obrigam, com medo do isolamento e da discriminação. Como se pode combater essa violência? Através da educação sexual nas escolas?
Para a ILGA Portugal é evidente que o trabalho tem que acontecer em simultâneo em vários planos – desde logo no apoio direto a quem é vítima de discriminação. É isso que fazemos com a Linha LGBT, que chega a todo o país – e também com serviços de apoio especializados (na área psicológica, jurídica ou social). E há todo um trabalho de fundo de contribuir para a alteração de leis, desde logo porque é impossível o Estado promover campanhas credíveis contra a discriminação quando o próprio Estado continua a discriminar. Mas há mais alterações necessárias, desde os requisitos da lei da identidade de género, até à inclusão desta categoria no artigo 13º da Constituição, ou ainda uma Lei-Quadro anti discriminação que abranja também a orientação sexual e a identidade de género e garanta a proteção contra a discriminação em áreas como o acesso a bens e serviços, a educação, a saúde ou a proteção social. E depois há toda uma outra vertente que tem crescido substancialmente e que exige um trabalho continuado durante muitos anos, no sentido da sensibilização aos mais diversos níveis: desde a educação nas escolas até à formação de profissionais de diversas áreas.
Voltando à política, e apesar de não termos o exemplo do Luxemburgo repercutido cá, assistimos, no entanto, a um facto histórico protagonizado por Miguel Vale de Almeida, o único deputado português a assumir-se publicamente como gay, em 2009, 35 anos depois do 25 de Abril.
Foi um facto histórico, sim. Aliás, tornou-se evidente no processo de discussão e aprovação da igualdade no acesso ao casamento que falar na primeira pessoa – como fez o Miguel - é também importante para que se aprenda a controlar pelo menos as manifestações de preconceito, até na própria Assembleia da República. E o impacto desse processo parlamentar em termos pedagógicos e em termos de empoderamento das pessoas LGBT foi reforçado pela sua presença no Parlamento. Nestas eleições, tivemos pela primeira vez um cabeça de lista assumidamente gay e claramente elegível e, no que é também uma novidade, uma candidata trans (ainda que não elegível), mas vamos continuar longe de uma representação minimamente proporcional de pessoas LGBT no Parlamento.
Nos discursos de campanha eleitoral dos vários partidos não se ouviu palavra sobre a defesa dos direitos das pessoas LGBT. Acha que foi uma lacuna ou propositado?
O espaço político e mediático tem sido dominado pela economia, mas é evidente, para nós, que as questões relativas à igualdade para as pessoas LGBT são também centrais na definição da democracia que queremos construir, na importância que atribuímos à igualdade, na valorização do respeito pelos direitos humanos em Portugal e pelo mundo. Foi por isso que a ILGA Portugal, para além de enviar um questionário a todos os partidos, organizou um debate que permitiu partilhar posições dos diferentes partidos (também expressas em quase todos os programas) em relação às várias prioridades que identificamos [o debate está disponível na íntegra em https://youtu.be/EmpCTezCtds].
A iniciativa mais mediática a favor dos direitos dos LGBT é a Marcha de Orgulho que se realiza todos os anos em Junho e integra 26 organismos. Qual é o objetivo?
É o de trazer para a rua reivindicações relacionadas com os direitos das pessoas LGBT e também celebrar as nossas identidades. Para a ILGA Portugal é fundamental promover este momento de visibilidade, que nos permite existir no espaço público e afirmar, com orgulho, que recusamos o preconceito e a discriminação.
Tem notado alguma evolução?
Há cada vez mais organizações e coletivos a juntar-se à Marcha e a mostrar que as reivindicações que apresentamos são justas e necessárias. É claro que já foram dados, ao longo dos anos, passos importantes, mas é também evidente que a luta pelos direitos das pessoas LGBT está bem longe do fim e é cada vez mais necessário uma mobilização de todas as pessoas para continuar a tornar a Marcha cada vez maior.
Ainda são recentes as notícias sobre a doação de sangue. Mas, apesar de os homossexuais já poderem voltar a dar sangue, mantém a exclusão (mesmo quando em causa está a possibilidade de salvar vidas). Quer explicar porquê?
A exclusão continua porque exige que não haja qualquer "contacto sexual" no último ano, o que, na prática, significa excluir quase todos os homens gays e bissexuais. Ou seja, a exclusão continua praticamente a ser definitiva. A discriminação continua porque se opta por manter a exclusão de "homens que têm sexo com homens" em vez de se perguntar sobre práticas, especificando diferentes tipos de contactos sexuais (com diferentes tipos de risco associados) e averiguando a proteção utilizada nesses contactos…
… Em 2009, na sequência de uma recomendação da AR, a pergunta discriminatória tinha sido retirada em Portugal, seguindo o exemplo espanhol.
Mas a exclusão de "homens que têm sexo com homens" foi reintroduzida em 2011 pelo IPST, já sob a tutela do atual Governo, sem recurso a qualquer estudo. Face à contestação, o Governo anunciou a criação de um grupo de trabalho para avaliar o questionário. A ILGA Portugal contactou o IPST por diversas vezes e foi-nos prometida uma oportunidade para partilhar as nossas sugestões com o mesmo grupo. Contactámos também o Ministro da Saúde pedindo uma audiência para falar desta questão e de outras questões relacionadas com o acesso à saúde para pessoas LGBT. As conclusões do grupo de trabalho foram publicadas e avalizadas pelo Ministro da Saúde, sem qualquer audição da ILGA Portugal.
O que é que a ILGA propunha?
Propúnhamos um novo conjunto de questões que fosse mais eficaz no controlo do risco e que não incidisse sobre uma noção de "grupo de risco", que é uma noção errada e ultrapassada. Propúnhamos que Portugal pudesse dar um exemplo a outros países que vão ter também que eliminar a discriminação nesta questão. Em vez disso, o resultado de três anos de trabalho do "grupo de trabalho" é a cópia de políticas ainda discriminatórias seguidas no Reino Unido ou nos EUA nos últimos anos. Ou seja, o resultado é medíocre e ainda discriminatório. E continua a ser uma escolha eminentemente política
Como avalia o acesso dos transsexuais aos cuidados de saúde e a resposta do SNS em matéria de soluções para todas as pessoas trans que aguardam cirurgia?
O acesso de pessoas trans a cuidados de saúde adequados e competentes é uma exigência de direitos humanos, já bem estabelecida a nível europeu. Temos documentado, no entanto, as dificuldades existentes em Portugal, primeiro, com o projeto TRANSformation e, depois, com o projeto mais recente Saúde em Igualdade, que, de resto, permitiu identificar também os muitos obstáculos que as pessoas lésbicas, gays e bissexuais também enfrentam [http://igualdadenasaude.ilga-portugal.pt]. Dos vários cuidados de saúde que são necessários para pessoas trans, os relacionados com cirurgias que podem ser absolutamente fundamentais para muitas pessoas continuam a não oferecer qualquer garantia de qualidade e de formação adequada por parte de profissionais no SNS. Temos repetidamente questionado o Ministério da Saúde sobre esta matéria, sem respostas minimamente satisfatórias, o que demonstra a falta de atenção dada a esta questão. Ainda assim, para além da urgência de a resolver, há também um problema estrutural de adesão aos standards estabelecidos internacionalmente para o conjunto de cuidados de saúde disponibilizados para as pessoas trans e vamos também continuar a alertar para a necessidade de uniformizar essa adesão, para que haja um respeito efetivo pelas pessoas trans e pela sua autonomia.
O Paulo alguma vez foi discriminado por causa da sua orientação sexual?
Quem é discriminado na lei é discriminado em permanência. A discriminação não significa só episódios de violência física ou psicológica ou o insulto ou as dificuldades várias que podem surgir nos planos laboral, do acesso a bens e serviços, etc.. É claro que já passei, como qualquer pessoa LGBT, já passou, por várias dessas dificuldades. Mas vivo num país em que a lei me diz que não posso ser pai, tendo estabelecido uma relação. É difícil pensar numa discriminação mais óbvia, que vem do Estado, ou seja, de todas e de todos nós.
Como é que um homossexual assumido e militante pelos direitos das pessoas LGBT se mexe” (ou sobrevive) num ambiente conservador como a economia e a universidade?
Eu podia dizer que sou Professor Universitário, mas isso, na realidade, é o que eu faço e não o que eu sou. O que eu sou é um ativista pelos direitos das pessoas LGBT, pela igualdade de género e pelos direitos humanos. Já fui de facto entrevistado na qualidade de Professor Universitário (nomeadamente quando o meu orientador de doutoramento em Harvard ganhou o Prémio Nobel) e aí era evidente a reverência de jornalistas, que chegavam a perguntar no final se me podiam citar, o que me surpreendeu pela diferença marcada em relação a todos os momentos em que falei com jornalistas enquanto homem gay e enquanto representante da ILGA Portugal (ou seja, enquanto representante de uma minoria que, pelos vistos, não merece reverência). Gosto de sentir que, em todo o caso, houve também aí uma evolução e que a consideração de questões relacionadas com os direitos das pessoas LGBT, enquanto questões políticas, tem sido cada vez maior ao longo da última década.
De qualquer forma, o seu percurso enquanto estudante brilhante de Economia e o doutoramento em Harvard são também um capital que lhe permite potenciar o contributo no plano associativo. Não nega isso…
Não, não nego. É um contributo que, em termos de impacto social, parece-me bem mais importante para ajudar a quebrar silêncios que prejudicaram e continuam a prejudicar muitas vidas. Até porque sei perfeitamente que não há igualdade de oportunidades e que tenho e tive privilégios vários no meu percurso que me obrigam também a assumir uma responsabilidade de lutar pela igualdade. Mas lembro-me, por exemplo, de usar o título académico em pedidos de audiência a partidos que defendiam a discriminação, porque tipicamente são também os partidos com mais reverência perante esses mesmos títulos. Nessas audiências, era portanto tratado enquanto “Sr. Professor”, o que era particularmente irónico – as mesmas pessoas que me explicavam por que defendiam a discriminação e, portanto, o reforço do insulto (porque toda a discriminação é um juízo de desvalor), usavam um tratamento socialmente visto como reverente para falar comigo. A lógica era simples: se me querem insultar e, portanto, se me querem chamar “Paneleiro”, chamam-me “Sr. Professor Paneleiro” para perceberem melhor o absurdo do sistema em que vivem e que querem manter.
Quem é Paulo Côrte-Real? |
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Homossexual assumido, muitos portugueses conhecem-no como ativista e porta-voz da ILGA PORTUGAL, uma associação que luta pela defesa dos direitos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais), de que foi presidente entre 2008 e 2014 e atualmente é vice-presidente. O que poucos portugueses sabem é que foi um estudante de economia brilhante (licenciou-se com 18 valores) e fez o doutoramento em Harvard, uma das mais prestigiadas universidades do mundo. Aos 41 anos, Paulo Miguel del-Negro Pamplona Côrte-Real é Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (desde 2003). |