Entrevista

. “A redução da Ajuda Pública ao Desenvolvimento já atingiu o limite"

Ana Paula LobrinhoDeixou a carreira académica e a investigação nas áreas da Literatura e Descobrimentos para presidir ao ex-Instituto Camões, hoje Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, que além de promover a língua e a cultura portuguesas, coordena a cooperação e o desenvolvimento. E neste domínio, Ana Paula Laborinho reconhece os impactos negativos da diminuição, nos últimos anos, da Ajuda Pública ao Desenvolvimento de países parceiros da Cooperação Portuguesa. Mais: admite que essa ‘baixa’ atingiu já o limite.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández

 

A língua foi definida como estratégia da internacionalização de Portugal. Ao fim de cinco anos e meio na presidência do Camões, que balanço faz desse esforço?

Faço um balanço positivo. Temos mais programas e assumimos o ensino básico e secundário no estrangeiro para as comunidades portuguesas. Quando reunimos, neste organismo, a política de internacionalização da língua portuguesa e a política de cooperação para o desenvolvimento, passamos também a ter um programa mais forte e consolidado em torno da língua como instrumento de desenvolvimento. Desde logo, porque estamos em mais países (em 82) e temos uma atuação mais consistente e concertada em função dos públicos-alvo. Tem havido um crescimento grande em países africanos, que estão a introduzir o português nos seus sistemas de ensino, como a Namíbia, República Democrática do Congo, Suazilândia, Zimbabué e Senegal.

 E que medidas têm sido implementadas para dinamizar a cooperação, que é a outra grande valência do Camões desde a fusão com o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento?

Mas o [antigo] Instituto Camões já contribuía para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) através de programas de formação. O sistema de ensino sempre teve um papel relevante (aliás, 60% dos nossos programas são na área do ensino), mas, por vezes, havia uma sobreposição de programas do Instituto Camões e do IPAD e também por isso esta fusão era necessária. Além disso, era notória a incapacidade técnica da agência da cooperação, que usava metodologias desadequadas, não tinha em atenção que os PALOP não têm a língua portuguesa como língua materna e, portanto, não podia aplicar uma metodologia de ensino de língua materna mas sim uma metodologia de ensino de língua segunda, que tenha sempre em consideração as línguas nacionais. Desse ponto de vista, o Instituto Camões do passado já tinha essa consciência.

Como avalia o trabalho das ONG, em particular as que intervêm na área do Desenvolvimento?

Têm uma intervenção fundamental e, por essa razão, temos procurado trabalhar muito com a sociedade civil. Mas o que gostaria – e temos trabalhado um pouco nesse sentido – é que as ONG tivessem mais capacidade de intervenção e de organização. Além de estarem muito fragmentadas, em termos de organização não têm capacidade para responder a projetos. É preciso que essa pulverização seja resolvida, sem perda das identidades de cada uma.

Como?

Eventualmente, criando sinergias entre si, por áreas de atuação.

Mas o problema é a fragmentação ou a concentração de financiamentos em algumas ONG e Fundações com maiores recursos? É que isso não coloca todas as ONG, em especial as pequenas, em igualdade de oportunidade …

Sei que muitas vezes somos criticados por serem apenas as grandes ONG a terem os seus projetos financiados, mas isso tem uma razão de ser. Hoje em dia é tudo medido, nomeadamente o trabalho administrativo que os projetos dão. Um pequeno projeto de 10 mil euros exige o mesmo trabalho administrativo que um projeto de 10 milhões de euros. A União Europeia tem muito esta perspetiva e as pequenas ONG deviam começar a ter esta noção.

No entanto, são tratadas como se fossem grandes empresas, com rigorosas auditorias financeiras. Faz sentido?

Há uma obrigação de transparência e de credibilidade, que é transversal às pequenas, às médias e às grandes organizações, o que só é possível se houver respeito pelas normas de transparência que nos são impostas. Mas deixe-me reforçar a questão anterior, porque é importante: é preciso que as ONG pequenas ultrapassem a fragmentação e organizem formas de trabalho em conjunto. Temos apoiado projetos co-financiados, comparticipando com 5% ou 10%, o que não é muito, mas é essencial para que depois os projetos sejam financiados pela UE. É óbvio que a este patamar de competição muitas das pequenas ONG não conseguem chegar, mas nós temos pensado no que podíamos fazer neste aspeto. Uma das medidas que ponderamos é criar uma linha de financiamento mais pequena para que essas organizações possam crescer e ganhar dimensão.

Encara a possibilidade de o site do Camões publicar os Relatórios dos Projetos apoiados pela Cooperação Portuguesa (do mesmo modo que publica os projetos em candidatura aprovados). Pergunto, porque parece-me importante a partilha de resultados, além de que seria uma forma de reforçar a transparência…

Nós somos pela transparência, portanto, temos de encarar essa possibilidade. Achamos que é cada vez mais útil que haja investigação sobre as questões para a Cooperação e Desenvolvimento e, para isso, temos neste momento dados disponíveis (em tabelas dinâmicas) que permitam essa investigação.

Algumas ONGD portuguesas queixam-se do ‘gap’ que existe entre os compromissos assumidos, por exemplo no Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020, e as prioridades orçamentais, quer nos apoios bilaterais, quer multilaterais, o que acaba por abafar’ a voz de Portugal nos fóruns e agências internacionais. Como explica esse ‘gap’ e como é que se poderia atenuá-lo?

Não há dúvida de que muitas fusões (incluindo a do Instituto Camões e da agência para a cooperação) resultaram da necessidade de diminuição de custos administrativos. A Agência da Cooperação para o Desenvolvimento tinha 17% de custos administrativos do seu orçamento e o facto de trabalharmos de forma integrada diminuiu muito estas despesas. Em relação à Cooperação Portuguesa, e apesar de não sermos nós que respondemos pelo orçamento que nos é dado, temos a noção das dificuldades e temos preocupações em relação à diminuição da Ajuda Pública ao Desenvolvimento. Diria que estamos num patamar já de limite, que é preciso ultrapassar.

Mas o Conceito Estratégico cria uma panóplia de áreas de intervenção e de parcerias e depois…

Porque é ambicioso e é assim que tem de ser. É evidente que um conecto estratégico tem de ser ambicioso. Se não fosse, seria criticado, porque não tinha amplitude que nos permitisse trabalhar nessa dimensão. Também é verdade que o Conceito Estratégico procurou alinhar-se com os compromissos internacionais que Portugal tinha assumido e com novas visões para a Cooperação que, entretanto, foram surgindo em termos de parceiros e de áreas de intervenção. Mas, deixe-me dizer-lhe que apesar de todo o esforço para medir e contabilizar a APD, ainda existe uma malha por onde escapa muita coisa. Há muita coisa que fazemos e que não é contabilizada. Fazemos porque somos generosos, somos solidários com os países, mas nem sequer é configurado como Ajuda Pública ao Desenvolvimento.

Em matéria de saúde materno-infantil e de saúde sexual e reprodutiva, Portugal tem dado cartas, mas, em contrapartida, a nossa Ajuda Pública ao Desenvolvimento de países parceiros da Cooperação Portuguesa tem baixado nestas áreas, em favor de outras. Sendo o único organismo que coordena a APD, como é que o Camões explica esta carência?

É verdade que os investimentos nessas áreas têm baixado, mas continuamos a ter um trabalho significativo e, às vezes, em colaboração com outras organizações. Estou a lembrar-me que, no final do ano passado, nós e o FNUAP [Fundo das Nações Unidas para a População] apoiamos um projeto na Guiné-Bissau precisamente nesses domínios. E o trabalho que temos feito em São e Príncipe também segue muito essa linha. Uma outra parte em que estamos muito envolvidos, mais do que antes, e que é preciso contabilizar é a cooperação delegada. Não a consideramos como financiamento nosso, mas, na verdade, é. De resto, Portugal tem vindo a assumir cada vez mais a responsabilidade de gerir programas da União Europeia, sendo que esses programas também são financiados por nós, ainda que de forma indireta.

“É verdade que os investimentos nas áreas da saúde materno-infantil e de saúde sexual e reprodutiva têm baixado (…), mas, no ano passado, nós e o FNUAP apoiamos um projeto na Guiné-Bissau precisamente nesses domínios.”

Este é o Ano Europeu para o Desenvolvimento e o Camões é a entidade coordenadora para a sua celebração. Que balanço faz do impacto das iniciativas realizadas?

Nós somos a entidade coordenadora, mas houve um envolvimento muito grande, quer de parceiros da sociedade civil, quer das autarquias, onde vai acontecendo muita coisa. Há uma parceria bastante alargada, sobretudo com o interior de Portugal. O Ano Europeu para o Desenvolvimento foi lançado no Porto, justamente para dar o sinal de que não poderia ser uma iniciativa ‘colada’ à capital, queríamos que fosse associada a outros lugares e conseguimos, a tal ponto que estão a realizar-se atividades em vários lugares. O objetivo é estimular a discussão, para que não sejam sempre os mesmos a falar das questões do desenvolvimento, e passar a mensagem de que temos duas linhas fundamentais de atuação: uma é a dos Direitos Humanos e outra é a erradicação da pobreza. E, depois, fazer perceber internamente que quando melhoramos as condições de vida dos nossos parceiros, isso também tem implicações na nossa vida. Se os países crescerem, nós também cresceremos. Portanto, é preciso que se compreenda que já passamos a fase da ajuda aos pobrezinhos. Isso já não é a Cooperação para o Desenvolvimento. A Cooperação para o Desenvolvimento já não passa por dar o peixe, mas sim as canas.

Com a definição da nova Agenda para os próximos 15 anos, começamos um novo ciclo. De que maneira o Camões vai cooperar nesta luta? Já pode falar de programas concretos?

Recentemente ouvi uma intervenção da Christine Lagarde em Washington sobre os ODS, em que foi bastante crítica contra a ideia geral de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são a utopia máxima, de tal forma que, se conseguíssemos alcançar tudo aquilo, tínhamos os problemas todos resolvidos. Até pode ser utópico, mas acho que a agenda tem de ser ambiciosa, porque se não houver ambição, não chegaremos a lado nenhum. Vamos ficar aquém da ambição? Ok, mas esse aquém será sempre mais além de uma agenda pequena. De resto, a maneira como os Objetivos foram traçados e concebidos a nível nacional é muito inspiradora. Trabalhamos com muitos parceiros.

Em que Objetivos?

Por exemplo, o Objetivo 14. Se não tivéssemos trabalhado na sua definição com os parceiros da CPLP, não teria havido concertação. Todos os países da CPLP têm dimensão marítima, três deles são ilhas com plataformas marítimas consideráveis. Mar é economia, é investigação, é recursos marinhos e é sustentabilidade do planeta e o reconhecimento disto traduz-se no objetivo 14.

Mas um novo estudo do Overseas Development Institute, com sede em Londres, alerta para a possibilidade de os ODS não se concretizarem se não for feita uma “abordagem revolucionária”, sobretudo em 14 dos 17 Objetivos chave. Concorda com esta visão?

Partilho-a. Nós temos que perceber que vivemos numa casa comum. Aquando da Cimeira Rio + 20, ainda nem sequer se tinha a ideia de que a agenda do desenvolvimento poderia conciliar objetivos como a erradicação da pobreza extrema e a proteção do ambiente. Eram duas agendas separadas, não havia a noção de que é muito importante acabar com a pobreza, mas também é importante cuidar do planeta.

Como exemplos, os mesmos investigadores referem os países da África Subsaariana, onde terá de haver “um grande apoio para avançar mais rápido em quase todos os objetivos”, e os países do Sul da Ásia, onde “o foco deve ser a redução da mortalidade materna”.

Penso que África, apesar de tudo, é um continente de esperança. Temos que trabalhar mais nas práticas culturais, até porque é uma área muito presente nesta nova agenda. Uma intervenção mais focada nesse domínio pode gerar efeitos nas questões da Mutilação Genital Feminina, na consciência ambiental e numa maior auto estima destes povos, para que percebam que podem ser os sujeitos da sua própria história. No Camões temos um programa que se chama precisamente cultura e desenvolvimento, que consiste na formação dos artistas locais. Por exemplo, se conseguirmos incentivar os artistas da Guiné-Bissau a usar o teatro como um instrumento de formação nesses temas, os resultados podem ser positivamente surpreendentes.

A Guiné-Bissau tem uma das taxas mais elevadas de mortalidade materna e acredita-se que existe uma relação com a MGF.

Há um novo programa financiado pelo Camões e pela UE, que é o Ativa, que vai incidir especialmente no domínio da mortalidade materno-infantil, com uma intervenção muito direcionada também para a questão da MGF na Guiné-Bissau. Está em fase de assinatura.

Quais os maiores desafios que enfrenta a Cooperação Portuguesa?

Em termos da Cooperação Portuguesa, vamos assinar uma nova geração de programas estratégicos de cooperação com os países parceiros, que já não querem ser meros beneficiários, querem ser cada vez mais os atores desses programas. No passado, quando desenhávamos os programas e os países limitavam-se a aceitar o que fazíamos, era muito mais fácil; hoje em dia, dizem o que querem. E nós temos que ouvi-los mais (nem sempre os ouvimos). A nova geração de políticas que temos que encetar tem que ter isso presente.

Como mulher e dirigente, que papel atribui ao papel de outras mulheres em Portugal e das ONGD que se focam, por exemplo, nos desafios da Agenda da Igualdade de Género e Saúde das Mulheres enquanto fatores essenciais ao desenvolvimento e direitos humanos?

Por acaso, ainda não há muitas mulheres à frente das ONGD. É preciso que haja mais. A única coisa que posso dizer é que a igualdade de género está presente em todos os projetos que o Camões apoia. E estando à frente de uma organização como esta, não deixo de ser mãe e avó. Como dizia Maria de Lourdes Pintasilgo, com quem trabalhei a ideia da conciliação do espaço privado com o espaço público, um indicador importante no desenvolvimento das sociedades é a forma como as mulheres estão no mercado de emprego e como conseguem conciliar a sua vida privada com a sua vida profissional.

Teve uma relação muito próxima com Pintasilgo?

Sim, tive. Conheci-a quando tinha 17 anos e a partir daí comecei a frequentar também o Graal. E até à sua morte estive sempre muito ligada a ela. A certa altura, nos anos 80, 90, Maria de Lourdes Pintasilgo, que participava na Universidade das Nações Unidas, tinha percebido que esse dinamismo da mulher na conciliação da esfera privada e pública era um fator importante para o desenvolvimento das sociedades. De modo que é muito isso: as mulheres têm que estar multi-programadas e em muitas plataformas ao mesmo tempo e ter um grande interesse por cuidar das pessoas. É nisso que eu me revejo. Para mim, o mais importante é a missão.

Quem é Ana Paula Laborinho

AnaPaulaLaborinho2 140x200Tem 57 anos, é licenciada em Filologia România, mestre em Literatura Francesa e doutorada em Estudos Literários pela Universidade de Lisboa. Foi professora universitária e investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa - entre os seus principais tópicos de investigação, tem os temas de Literatura e Descobrimentos, Narrativas de Viagens (séculos XV-XVII), Literatura Colonial, Orientalismo, Literatura de Macau e Estudos Pós-coloniais. Desde 2012 que preside ao Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, que resultou da fusão do Instituto Camões (de que era presidente desde 2010) e do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD). Na tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o organismo é responsável pela coordenação para a cooperação e o desenvolvimento bem como a promoção da língua e cultura portuguesas.

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