Entrevista

. “A nova lei da IVG é inconstitucional”

Maria do Céu da Cunha RegoDefensora de uma mudança profunda e revolucionária da organização social, a ex-secretária de Estado para a Igualdade em governo de António Guterres diz, sem papas na língua, que com a aprovação das alterações à Lei da IVG, no dia 22 de Julho, “a mulher foi reconduzida à situação de incubadora”. E enquanto não se acabar com o preconceito que vê “o homem como ser absoluto e a mulher como criadora de filhos”, Maria do Céu da Cunha Rego admite que será difícil haver igualdade de género.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández

É feminista?

Sou pela igualdade entre homens e mulheres. Acho redutor falar de feminismo quando se defende a igualdade substantiva de homens e mulheres em todas as esferas da vida. A palavra parece dar uma noção de defesa da primazia das mulheres como ‘um grupo desfavorecido’ face aos homens, o que contribui para reforçar a ideia de que estes “são” o modelo do ser humano.

O que é o feminismo? Ainda há quem pense que é, digamos, a versão feminina de machismo.

Não é e, quanto a mim, nenhum dos feminismos o foi. Embora palavras maltratadas em termos de opinião pública - quer o feminismo quer o machismo têm carga negativa –, em síntese, o feminismo visa o reconhecimento da autonomia e dos direitos das mulheres, enquanto o machismo visa a persistência da supremacia dos homens na organização social.

Há vários feminismos?

Há. Há o feminismo da diferença, há o feminismo da igualdade, há o da primeira vaga, da segunda vaga, da terceira vaga, há muitos e, também por isso, o conceito acaba por ser pouco claro. Geralmente, fala-se em feminismo quando se trata da defesa dos direitos das mulheres. Mas não defendo só os direitos das mulheres, defendo também os dos homens na esfera privada, designadamente as licenças de paternidade obrigatórias – esse tem sido o grande investimento da minha atividade profissional e cívica.

Mas muitas feministas acham que isso é dar mais direitos a quem já tem todos os direitos…

É verdade que acham e por isso digo que a definição não é clara. Daí que, para simplificar, prefira explicitar pelo que verdadeiramente sou: e sou pela defesa da igualdade entre homens e mulheres em todas as esferas da vida.

E qual é a diferença entre ser feminista e ser humanista? Pergunto porque a atriz Meryl Streep, numa entrevista recente a pretexto do seu novo filme As sufragistas, disse: “não sou feminista, sou humanista”.

Talvez tenha referido humanista por entender tratar-se de um conceito mais vasto, abrangendo tanto mulheres como homens. Mas na opinião de muita gente e na minha, tal como escreveu Isabel Barreno, em 1985, o vocábulo neste contexto é um “falso neutro”.

Significa o quê?

Que retoma a centralidade de “homem” como padrão da humanidade. E persiste na construção social que entende que o homem é o ser e a mulher é mãe dos filhos dele. Daí que se defenda escrever a palavra Homem com letra grande e dizer que, assim, engloba as mulheres e os homens! Discordo que se tome a parte pelo todo. Considero que a anulação das partes numa unidade artificial em que o homem é simbolicamente dominante constitui o grande problema que subsiste e que impede a igualdade, de facto e em vários casos ainda de direito, entre homens e mulheres.

Quando é que começou a abraçar a luta pela defesa da igualdade de género?

Abraçar mesmo, com os dois braços, foi nos princípios dos anos 80. Sempre achei que as mulheres e os homens eram iguais, o que se revelou uma ilusão. A construção da desigualdade está tão interiorizada na organização social que não damos por ela. E, no entanto, havia manifestações concretas de desigualdade irritante, por exemplo os homens assobiarem às mulheres quando estas passavam na rua. Isso é absolutamente inaceitável. Um exemplo actual é o dos jogos infantis: há os jogos dos rapazes e os jogos das raparigas. Há também uma série de iniciativas que vão contrariando o estereótipo, mas sem evidência generalizada de que isso seja uma necessidade...

O que aconteceu nos anos 80?

Como sempre achei que tinha que se tornar visível a situação das mulheres, fui designada para representar a Secretaria de Estado da Emigração, onde trabalhava, no Conselho Consultivo da então chamada Comissão da Condição Feminina, que tinha e continua a ter uma secção intergovernamental. Aí comecei a perceber que as coisas não eram só o que eu achava sobre. Havia gente que pensava muito mais e há muito mais tempo, que tinha um know-how específico sobre essa matéria. A partir de então, e em vários contextos, a igualdade entre mulheres e homens tem sido o objetivo principal da minha vida profissional e cívica.

Acha que Portugal é um país machista?

Acho que todos os países são. Não gosto da palavra machista, porque é desagradável, mas a evidência demonstra, não só em Portugal como em todo o mundo, que – e cito um Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] – “nenhum país trata tão bem as suas mulheres como trata os seus homens”. No mundo inteiro. Nenhum. Se vir o Relatório das Nações Unidas (UN Woman) sobre O Progresso das Mulheres no Mundo 2015-2016, que celebra os 20 anos da Plataforma Ação de Pequim, continua, de diversas formas, a dizer o mesmo. E porquê? Porque não se quer enfrentar a essência da questão. Está mais que demonstrado onde reside o problema, mas as pessoas não têm coragem de mudar as coisas.

Onde está o problema? Nas mentalidades?

Está naquilo que referi há bocado: persistir na crença de que o homem é o ser humano padrão e a mulher é quem garante a reprodução. Dizer que este estereótipo é só um problema de mentalidade é descartar o problema. Está identificado que sem partilha do trabalho não pago de apoio à família entre mulheres e homens não pode haver igualdade substantiva na esfera pública, onde o domínio dos homens persiste. Daí que só medidas efectivas que, na visibilidade do espaço público - que é fonte de reconhecimento e de valorização -, liguem os homens à reprodução permitem a transformação social compatível com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que proclama que homens e mulheres nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

E essa é a função das licenças por paternidade obrigatórias e integralmente pagas para os homens?

Justamente. Acresce que a identificação dos homens no espaço público com a reprodução tem efeitos positivos para a abolição dessa forma nefasta de dominação dos homens e da sociedade sobre as mulheres, que é a garantia de que lhes controlam a sexualidade. São as mulheres, de fato, que sabem quem é o pai dos filhos. Esse poder é delas. Por isso, foi entendido que tinha de ser contrariado: na Idade Média eram os cintos, depois os véus, depois não sei o quê. E daí o ciúme, e daí a violência contra as mulheres, incluindo a doméstica. Só que esse poder das mulheres vem da natureza e é inelutável. As mulheres não têm que ser punidas por ele. Como os homens não têm que ser punidos com uma série de obrigações “inerentes ao seu papel social dominante” para que mantenham “o direito” de continuar a dominar.

Os papéis de género são violentos?

São violentos para mulheres e para homens, porque limitam a liberdade individual e afectam a dignidade das pessoas. Aboli-los através de medidas robustas que saibam respeitar o que é da natureza e abolir as construções sociais produtoras de injustiça e de infelicidade geral é obrigação de qualquer estado de Direito democrático. Não há que ficar à espera que o tempo resolva o que não queremos resolver e sabemos como se resolve. Quando reconhecemos a bondade de uma solução aceleramos o tempo: acelerou-se na ida à lua, nos telemóveis, nos computadores. Se, com os problemas e as soluções identificados, ainda não aceleramos o suficiente em matéria de igualdade de homens e mulheres, é porque não queremos.

Em todo o caso, com o 25 de abril muita coisa foi alcançada…

Muita, muita. De tal maneira que não tivemos que mudar uma lei em matéria de igualdade entre mulheres e homens quando aderimos à então CEE (atual União Europeia).

Mas ainda há muito a fazer. Ainda hoje, a esfera pública continua a ser o lugar da predominância masculina. Por que razão ainda é assim?

Porque a esfera pública é o lugar da autoridade e a lógica dos papéis de género é claramente a das mulheres no espaço privado e dos homens no espaço público. Sempre foi assim. Houve muita conquista, mas, na minha perspetiva, sem uma visão integrada, só com visões avulsas. O exemplo mais flagrante são as leis aprovadas pela Assembleia da República no mesmo dia - 22 de Julho último -, em que há normas a promover e outras a atacar a igualdade entre mulheres e homens. Se o símbolo de ser humano é o homem – e se for ao dicionário lê: homem = representante do ser humano ou da humanidade -, o que há que fazer é evidenciar que o ser humano não tem um representante-tipo. Seres humanos são homens e mulheres em paridade.

E é assim porquê?

É assim porque as pessoas, na escola e na vida, são socializadas para que seja assim. E como são socializadas para repetir aquilo que está validado, repetem-se os modelos de educação desigual em função do que sempre foram os papéis de género: não se tiram as bonecas às raparigas, que assim aprendem a gostar de bonecas e da domesticidade; por outro lado, entende-se “próprio” de rapazes brincar com monstros, com transformers, para aprenderem a gostar do perigo e para o saberem enfrentar…

Mas não é só por influência da família, pois não?

Claro que não. O poder dos pares é muito mais forte que o dos pais e das mães. O ambiente de violência relativamente ao género chegou a um ponto insuportável. Veja os desenhos animados. Agora já há umas meninas piratas, guerreiras e tal, mas não lhes falta o cor-de-rosa e o brinco e o adereço. Quer isto dizer que são sempre as mulheres e só elas que têm que mudar adotando o modelo masculino, mas mantendo a “feminilidade”. Ou seja, inventam-se seres híbridos como se fossem perfeitos e não se toca no que se assume ser a “verdadeira perfeição”: a masculina!

Transpondo para o mundo adulto, esse é o retrato do mercado de trabalho?

Não tenha dúvida. A conversa é, assim, muito mais funda e tem que haver uma organização social coerente. Daí que não chegue a ação isolada de cada pessoa, porque a pessoa sozinha não consegue. Nem uma ou 30 ONG conseguem. É a organização social que marca e faz mudar e a organização social, apesar de convenções e recomendações de Organizações Internacionais, e de compromissos políticos diversos, continua a ter medo de se desestruturar se adoptar as medidas preconizadas para atingir, de facto, a igualdade entre mulheres e homens.

Porquê?

Porque para isso tinha que incluir na vida pública tempos de cuidado à família e tempos de trabalho pago igualmente partilhados por homens e mulheres, recusando assumir – como continua a acontecer na prática, ainda que muito se fale de conciliação da vida profissional e familiar - que a principal responsabilidade pelo cuidado, pela esfera privada, é das mulheres e que a responsabilidade principal pelo trabalho, pela esfera pública, pelo sustento da família e pela autoridade é dos homens.

Acha que ainda é muito marcante a pressão sobre os homens para o sustento da casa? Que ainda se olha um homem desempregado de soslaio, como se vivesse à custa da mulher?

Claro que sim. Diz-se: “ah eles agora podem fazer mais trabalho de partilha da esfera doméstica por causa do desemprego...”. Podem e não podem, por isso é considerado como um duplo castigo: por um lado o desemprego e, por outro, a realização de “trabalho de mulher”, que para os homens é símbolo de desvalorização social. Os homens são muito marcados pelo seu trabalho profissional, que define a sua posição social face às mulheres que seduzem e face aos homens que enfrentam. É aí que está o ponto. Os homens têm sempre que se superar para marcarem o seu território. Porque têm que provar a sua masculinidade, enquanto sinónimo de superioridade, coisa que as mulheres não têm que fazer.

“Não se quer enfrentar a essência da questão. Está mais que demonstrado onde reside o problema, mas as pessoas não têm coragem de mudar as coisas. O problema está na crença de que o homem é o ser humano padrão e a mulher é quem garante a reprodução”.

Tendo presente os indicadores de participação nos processos de decisão e os do mercado de trabalho, quais são, atualmente, as falhas da sociedade portuguesa para com as mulheres?

A maior e última foi a que alterou a lei da IVG [Interrupção Voluntária da Gravidez]. Acho que isso tem que nos dar uma firmeza nova, porque ficou provado que o desrespeito pelas mulheres é total. O que a Constituição diz é que tanto o direito à vida como o direito à integridade física e moral são direitos fundamentais invioláveis e que, quando concorrem em indivíduos diversos, têm que ser acomodados com proporcionalidade. Era o que fazia a lei anterior numa hábil proteção das duas partes ao longo do processo de gestação: até às dez semanas protegia o embrião ou o feto com uma consulta obrigatória, em que se expunha à mulher o que tinha a expor, para que ela, só após deter a informação pertinente, tivesse três dias para refletir e decidir livremente. Se a mulher mantivesse a decisão, procedia-se à IVG, valorizando mais a opção da mulher. Após as 10 semanas, valoriza-se definitivamente a vida do feto, ficando a mulher proibida de abortar e cometendo crime se o fizer.

E entende que esta lei ataca direitos fundamentais das mulheres, incluindo a sua dignidade?

Sim, ao ponto de as que, por opção, pretendem realizar IVG até às 10 semanas nos termos que lhe são permitidos pelo Código Penal desde 2007 poderem não querer sujeitar-se à discriminação que esse ataque representa, perderem a confiança no sistema de saúde e, assim, recorrerem ao aborto clandestino que, para além de constituir crime, pode pôr em risco a sua saúde e mesmo a sua vida. Evidencia-se, assim, a subalternização pelo Estado dos direitos das mulheres à vida e à integridade pessoal no exercício de um acto legal, face a um embrião ou a um feto até às 10 semanas, que é uma forma de vida intra-uterina com protecção constitucional sim, mas que, por não ser juridicamente um indivíduo nem uma pessoa sujeito de direitos, não pode, sem violação do princípio da proporcionalidade, sobrepor-se a uma mulher.

Ou seja, se a lei que regula a IVG legal o sobrepuser, o que o Estado diz à sociedade é que o valor social de uma mulher, por um lado, é inferior ao de um embrião ou de um feto até às 10 semanas, e, por outro, que esse valor social se reconhece, principalmente, no exercício da função procriadora. É isso?

É isso. Com esta lei, a mulher foi reconduzida à situação de incubadora. E como tal, se não quiser fazer serviço de incubadora, é “banida”. E daí as taxas moderadoras e o seu estigma e todo o tipo de violências que a discriminação acarreta. Ora, não é este olhar sobre as mulheres que constitui a melhor forma de fazer progredir os indicadores da sua participação no processo de decisão – a lei atual passou a obrigá-las a quatro aconselhamentos para que lhes reconheça a capacidade de tomar a decisão de realizar uma IVG legal! – ou no mercado de trabalho.

Acha que a imposição de taxas moderadoras é grave, não tanto pelo valor, mas mais pelo símbolo? É a única situação em que as mulheres, quando estão grávidas, pagam taxas moderadoras.

Exatamente. A Lei de Bases da Saúde exclui todas as grávidas do pagamento de taxas moderadoras, portanto, além da inconstitucionalidade formal, porque uma lei simples não pode atacar uma lei de bases, isto é tremendo. Constitui uma dupla discriminação: contra as mulheres, porque as prejudica só porque são mulheres, e contra as grávidas, que, por opção, pretendem realizar IVG até às 10 semanas nos termos que lhe são permitidos pelo Código Penal desde 2007, porque, de entre os 5 grupos de grávidas a quem é permitido por lei realizar IVG, são estas as únicas que passam a pagar taxa moderadora. Tendo em conta que o aborto clandestino é um problema de saúde pública - como as organizações internacionais, designadamente a OMS [Organização Mundial de Saúde], e tudo o que se tem vindo a fazer desde a Conferência do Cairo em 1994, incluindo a Plataforma de Pequim e os seus desenvolvimentos sublinham - quando se diz “estamos a proteger a vida”, de fato, está a desprezar-se a vida de uma mulher.

Acha que sociedade culpa as mulheres pela baixa natalidade, em Portugal?

Acho. De resto, a Assembleia da República foi isso que disse [com as alterações à Lei 16/2007, da IGV], não foi?

“São as mulheres que sabem quem é o pai dos filhos. Esse poder é delas. Por isso, foi entendido que tinha de ser contrariado: na Idade Média eram os cintos, depois os véus, depois não sei o quê. E daí o ciúme, e daí a violência contra as mulheres, incluindo a doméstica”.

Vamos falar da nova Lei da Natalidade…

Não lhe chame isso, chame-lhe lei de encorajamento à natalidade. Sei que é para simplificar, mas não simplifique, porque a natalidade resulta da vontade livre das mulheres e dos homens, e o planeamento familiar constitui, face à Constituição, um direito e não uma obrigação.

Em Portugal, o horário flexível e o trabalho a meio tempo foram bem recebidos pelas famílias, mas é muito pouco, se compararmos com outros países como a Suécia, por exemplo, que garantiu a maior participação das mulheres, atribuindo a possibilidades aos homens de ficarem com os filhos em casa.

Acho que ainda não há estudos que permitam dizer que as famílias receberam bem essas medidas. Admito que, para determinados extratos, a nova lei dê jeito, sobretudo para as pessoas que ganham muito bem ou, pelo menos, não ganham tão mal como as outras. Uma das razões que mais provoca assimetria salarial é justamente o meio tempo e os horários reduzidos. E cada vez é pior, porque, antigamente, o meio-tempo era de manhã ou de tarde e agora é aos bocados, é duas horas de manhã, duas à tarde, hoje começa às três, amanhã começa às cinco. O que é isto? Há que distinguir as situações. Mesmo as aparentemente favoráveis são, a nível internacional e na sequência de vários estudos, consideradas prejudiciais.

Porquê?

Porque o trabalho a tempo parcial tem um nível de remuneração muito inferior e dificilmente corresponde ao desenvolvimento de carreiras profissionais. E, apesar de ser extensível aos homens, num casal, acabam por ser sempre as mulheres, que já ganham menos e cujo trabalho remunerado não merece a mesma consideração social do que o dos homens, a optar pelo meio tempo.

E quanto à licença parental? Agora, o pai pode gozá-la, em simultâneo, entre os 120 e os 150 dias e a licença exclusiva do pai foi alargada para 15 dias úteis. Foi, também, excluída a aplicação dos regimes de adaptabilidade e do banco de horas aos trabalhadores com filhos menores de 3 anos. Por outro lado, consagra-se o direito do trabalhador exercer a atividade por teletrabalho enquanto o filho não exceder os 3 anos, desde que este regime seja compatível com a sua atividade.

Isso é a aparência do falso neutro, porque, aparentemente, toda a gente pode gozar de licenças parentais mas vamos lá ver quantos homens as gozam. Vai melhorando, mas andamos a brincar se nos satisfizermos com a igualdade formal. Até por causa do estigma: um homem que goza licença por paternidade é, frequentemente, olhado de soslaio, mesmo pelos colegas. Por isso é que eu defendo licenças por paternidade obrigatórias. Da mesma maneira que as férias tiveram que ser obrigatórias para as pessoas não serem escravas de si próprias. As coisas funcionam assim: quando se quer mudar alguma coisa tem que ser obrigatório. A nível da União Europeia, pelo menos 14 dias de licença paga deviam ser obrigatórios para os homens quando são pais, em termos equivalentes ao que acontece às mulheres quando são mães. Qual é o problema? Não há justificação para que algumas organizações internacionais considerem problemático “obrigar os homens”. Quer dizer, se os obrigarem a ter férias não faz mal, mas se os obrigarem a ficar em casa com as crianças já é uma enormidade. E as mulheres não são ‘obrigadas’? Só que obrigar uma mulher não choca, porque ela é o ser da submissão.

Mas não há nada de bom neste pacote?

Há. Para mim, as coisas boas são a simultaneidade das licenças da mãe e do pai, o acrescento de cinco dias à licença obrigatória do pai e o teletrabalho.

Pensa que estas alterações não passarão, em muitos casos, de letra morta? Por causa do valor miserabilista das coimas, da ineficácia da Autoridade para as Condições de Trabalho e da excessiva morosidade da justiça laboral...

Sim, tirando o comentário sobre a Autoridade das Condições de Trabalho, porque considero que tem havido uma sensibilização muito grande dos inspetores e das inspetoras para esta área. É evidente que as prioridades podem não ser neste domínio, mas tem havido um trabalho grande, quer na sensibilização, quer nas metas. Para mim, a primeira prioridade da ACT, em matéria de cumprimento do direito aplicável sobre igualdade entre mulheres e homens, devia ser a verificação do cumprimento das licenças obrigatórias dos homens quando são pais e a aplicação de coimas por violação da lei sobre a matéria. A segunda prioridade devia ser a verificação das situações de homens que são despedidos ou que são mal vistos no trabalho por gozarem as licenças parentais voluntárias. A terceira, a verificação da legalidade na situação das grávidas.

Num plano ideal, como seria uma boa lei de encorajamento da natalidade?

Uma boa lei nessa matéria teria que servir a igual dignidade e a igual liberdade dos homens e das mulheres, teria que demonstrar, simbolicamente, que o problema da persistência da desigualdade de género está na divisão não igualitária entre homens e mulheres da esfera pública e da esfera privada, que permite a supremacia de estatuto social dos homens sobre as mulheres. Teria que integrar dimensões revistas da chamada “lei da paridade”, da legislação sobre licenças por maternidade, por paternidade e parentais, teria que incluir garantias de divisão equilibrada entre mulheres e homens dos tempos de trabalho pago e de cuidados com a família. Teria que ser uma lei de transformação integral da organização social, assegurando a igualdade efectiva, incluindo de resultados, entre mulheres e homens. Enquanto isso não acontecer o que se vai fazendo são remendos, é menos que um cobertor que não chega para cobrir os pés.

É a diferença biológica e natural de sexo que continua a determinar a desigualdade de género, por exemplo, pela indução de papéis diferenciados?

Claro. Por causa da reprodução física passou-se à reprodução social, que é o género com o determinismo da afectação de papéis diferenciados a homens e mulheres. É preciso romper isto, é preciso que a lei diga que a partilha tem de ser igual e nos casos em que não é, tem de haver penalização. E por isso é que é tão importante ligar os homens, no espaço público, ao trabalho não pago de apoio à vida familiar. Não é em casa, é no espaço público por via de lei, por via de sindicato, por via da organização social.

A verdade é que também na esfera privada a desigualdade entre homens e mulheres é uma evidência, a começar pelo tempo que as mulheres dedicam às tarefas domésticas e aos filhos… Faz ideia de quanto tempo mais do que os homens as mulheres trabalham em casa?

Tal como revelou o estudo do INE de 1999, continua a ser de cerca de duas horas, todos os dias, no conjunto do trabalho pago e não pago, o tempo que as mulheres em Portugal dedicam mais do que os homens ao trabalho de cuidar da casa e da família. Esta é outra das grandes causas da assimetria salarial. Porque enquanto as mulheres investem no trabalho não pago, esse tempo de investimento no afeto e no cuidado, não pago, é um tempo que os homens investem no trabalho suplementar (que é melhor pago), na formação para progressão na carreira ou no lazer, também propiciador do estabelecimento de redes sociais com reflexos nas suas carreiras. E como há uma grande assimetria salarial entre homens e mulheres, é evidente que se alguém tem de ficar em casa, é a mulher que fica. Não é por machismo, é porque, em termos financeiros, é mais vantajoso.

Por que razão as mulheres aceitam a sobrecarga?

Aceitam porque não têm outro remédio, porque têm de sobreviver, porque consideram inútil gastar energia a discutir um assunto que a maioria da sociedade entende que não tem discussão. Porque lhes ensinaram que o cuidado da família e da casa era obrigação principal delas. Porque aprenderam a gostar dessa ideia. Porque a casa e os afectos são ainda o seu espaço de poder. Porque a competição no trabalho é feroz.

Se no trabalho pode ser difícil dizer não, em casa supostamente é mais fácil. Ou não?

A assimetria de poder é muito grande, quer em termos reais, designadamente do ponto de vista financeiro, quer porque muitas mulheres se habituaram a sublimar esta situação por causa da sua autoestima. Não estão para entrar em guerra também em casa. E se entram um bocado, depois fica tudo bem. O ambiente não é propício: os homens acham-se o máximo quando põem a mesa. E até serão, porque a pressão sobre eles é enorme, já que o seu papel social lhes exige que trabalhem ou que estejam no local de trabalho até muito tarde… Um estudo recente da União Europeia demonstra que quanto maior é o número de filhos, mais os homens têm que trabalhar para os sustentar e mais as mulheres têm que realizar as tarefas não remuneradas inerentes ao cuidado da família com prejuízo da sua participação na vida pública e da sua independência económica. E todas estas situações de crise só agravam a vida desgraçada que, em geral, se leva.

Consegue identificar alguma área onde não exista desigualdade entre mulheres e homens ou verifica-se em todas as esferas da vida?

As oportunidades são desiguais. Basta as mulheres não terem o mesmo tempo livre para não terem as mesmas oportunidades. Em princípio, o único tempo de igualdade é aquele em que os homens e as mulheres ficam em casa quando os filhos nascem.

Fazem falta campanhas de promoção da igualdade de género, nas escolas por exemplo?

Com certeza. Defendo campanhas no ensino básico, mais importantes do que a matemática, quanto a mim. E os conteúdos, as mensagens só podem ser no sentido destes três pontos: a igualdade de todas as pessoas, a recusa do destino marcado e o apelo à liberdade. Por exemplo: podes ser o que tu quiseres e não o que a sociedade acha que uma menina deve ser e fazer porque lhe é próprio ou que um rapaz deve ser e fazer porque lhe é próprio. Não há “próprio” porque se nasceu com um ou outro sexo, há o que as pessoas aprenderem a fazer, forem capazes de fazer, e quiserem fazer, tudo, evidentemente, no respeito das leis do estado de Direito democrático.

Em todo o caso, a legislação concede mais às mulheres do que as mentalidades?

Sem dúvida. A legislação está muito à frente das mentalidades, o que, por outro lado, gera o problema de que se diga: vocês já têm tudo. E assim se evite a legislação verdadeiramente capaz de tornar a sociedade respeitadora e promotora da igualdade entre mulheres e homens. Como já disse, as mentalidades persistem no estereótipo porque a organização social não se quer transformar para o abolir.

Em 2001-2002, o que é que, enquanto secretária de Estado para a Igualdade fez para combater os fossos no campo da igualdade e da cidadania?

Não sei se se lembra do que aconteceu nesse governo. Foi a última remodelação do 2º governo de António Guterres. Foi no verão. Havia que preparar e fazer aprovar o orçamento. Em Dezembro houve eleições autárquicas perdidas pelo partido que apoiava o governo. O Primeiro-Ministro demitiu-se. Portanto, de tempo útil para iniciativa política, houve dois meses, porque até à posse do novo governo, em abril seguinte, o tempo foi de gestão. O que é que eu, mesmo assim, tentei fazer? Estava em curso a elaboração do segundo plano para a igualdade e eu procurei uma abordagem de transversalidade e uma negociação com cada área sobre o que é que em cada área era prioritário. E no governo seguinte, de Durão Barroso, parte desse trabalho foi aproveitado. Designadamente, a concretização - no regulamento de 2004 do Código do Trabalho, era Bagão Félix Ministro da Segurança Social e do Trabalho - da passagem de facultativa a obrigatória da licença de 5 dias por paternidade. Essa é, quanto a mim, a medida de ouro da governação de direita. Ainda hoje.

Como é que se pode encorajar as mulheres à participação na esfera pública? Apenas com leis que consagram limiares de paridade para órgãos eletivos?

Dando-lhes tempo livre. Não é preciso mais nada. Tempo livre que só se consegue com independência económica e partilha de tarefas. Felizmente a OIT, que é uma organização de vanguarda, passou a considerar, em 2013, que o trabalho de cuidar da família e da casa se incluía no conceito de “actividades de trabalho“.

E? As mulheres sabem que isso é trabalho, não precisam que a OIT lhes diga.

Sim, é verdade, mas a partir do momento em que é a OIT a dizer, esse trabalho não pago é valorizado no espaço público, deixa de ser percepcionado como “trabalho de mulher” e por isso já não é uma vergonha para os homens realiza-lo. A economia da igualdade e a dimensão financeira da igualdade representam muito dinheiro, que ganha ou que se perde. Como sublinhou neste verão a Comissão Europeia, estima-se que a assimetria de género no emprego, custe à União Europeia 325 biliões de euros, ou seja, 2,5% do seu PIB. Só o desperdício relativamente a mulheres qualificadas que não utilizam as suas qualificações e, portanto, não ajudam o mercado, é enorme. Mas porque as mulheres que não exercem um trabalho remunerado também não pagam impostos nem descontam para a segurança social, o prejuízo agrava-se.

Portugal foi um dos 21 Estados da União Europeia (UE) que subscreveram, recentemente, uma carta à Comissão Europeia apelando para a criação de uma estratégia para a igualdade entre homens e mulheres. Acha necessária uma Nova Estratégia sobre a Igualdade entre mulheres e homens depois de 2015?

É sempre necessária uma nova estratégia porque as existentes não alcançaram os objectivos a se propunham. Mas desconfio do conteúdo, porque é capaz de ser por fatias. E tudo o que não é integrado não faz sentido nenhum. Tem que se atingir o simbólico. Tem que se acabar com o estereótipo do homem como ser absoluto e da mulher como ser específico que tem e cria filhos.

Como é que uma Estratégia acaba com isso?

Uma Estratégia deve evidenciar que está errada uma organização social que continua a assentar na divisão assimétrica do trabalho entre homens e mulheres, “cabendo” àqueles o trabalho remunerado dito produtivo, e a estas o trabalho não remunerado dito reprodutivo, e que toda a legislação que tem a ver com a igualdade deve obedecer a uma forma integrada e simbólica, assumindo claramente que as medidas isoladas não resolvem o problema.

Os Planos Nacionais para a Igualdade (já vamos no V) não dizem isso?

Por vezes dizem, mas nem sempre são consequentes e a forma burocrática por que se vêm regendo tende a obscurecer a dimensão simbólica. O problema é a forma como a sociedade se organiza - tendo ainda como substrato os homens na esfera pública e as mulheres na esfera privada – e a falta de vontade de mudar essa organização.

Acha que a violência doméstica, a Mutilação Genital Feminina, os casamentos precoces e forçados e todo o tipo de violências contra as raparigas e mulheres têm na origem um denominador comum: a supremacia do masculino sobre o feminino?

Têm na origem a noção de que as mulheres são o necessário complemento para a reprodução e, por via disso, para a imortalidade dos homens. E é a paternidade certa que, custe o que custar, elas devem garantir.

Que importância atribui à intervenção da sociedade civil, especialmente das ONG direcionadas para o Desenvolvimento, nestas matérias? São quem conhece o terreno e quem mais próximo estão das vítimas.

Acho que têm um papel fundamental, mas considero muito importante não se fazer do apoio ao desenvolvimento uma nova forma de colonialismo. Há, nesta área como noutras, ONG que se constituem em função dos financiamentos. Mas há muita gente ótima, que trabalha muito bem e que tem ajudado imenso à compreensão das situações e a encontrar soluções dignas para resolver problemas.

Uma vez que foi secretária de Estado para a Igualdade, melhor do que ninguém saberá quais as diferenças na intervenção das ONG e das IPSS. O que as distingue em matéria de defesa dos direitos das mulheres?

As Instituições Particulares de Solidariedade Social desenvolvem respostas sociais que se inscrevem nos objectivos da Segurança Social e, se registadas junto desta, gozam do estatuto de entidades parceiras e como tal beneficiam de apoios diversos. As ONG desenvolvem actividade em qualquer domínio e, em princípio, dependem menos do Estado. O que principalmente distingue IPSS de ONG – e também em matéria de defesa dos direitos das mulheres – enquanto categorias de pessoas coletivas é o respetivo estatuto jurídico. Mas o que distingue qualquer destas entidades não é tanto a sua pertença a uma categoria, mas a relevância da sua intervenção e a qualidade do seu trabalho. Em todo o caso, acho que deve ser o Estado a realizar as tarefas fundamentais do Estado, designadamente em matéria de segurança social.

Mas há ONG que atuam mais ao nível da advocacia, da promoção, da sensibilização através, por exemplo, da realização de debates.

Atribuo importância a todas as formas de participação ativa da sociedade civil. A cidadania ativa é fundamental numa sociedade democrática e as ONG, face ao seu estatuto de maior liberdade institucional, podem intervir abertamente como “consciência crítica” nos respetivos domínios de atividade.

Tem boa opinião do desempenho da Cooperação Portuguesa?

Não estou a par, não tenho elementos fatuais nem estudo sobre a matéria, porque a Cooperação não é a minha área, mas pelo que sei do que ouço, as intervenções da Cooperação Portuguesa são, em geral, positivas.

Quem é Maria do Céu da Cunha Rego

MariaCeuCunhaRego 1 140x26064 anos, natural de Elvas, casada, 2 filhas, 2 netas e 1 neto. Jurista, com trabalho profissional e cívico no domínio das migrações internacionais, do apoio às comunidades portuguesas no estrangeiro e da igualdade de homens e mulheres. Nesta área, exerceu funções de representante de Portugal no Conselho de Administração e no Fórum de Peritas e Peritos do Instituto Europeu para a igualdade de género - EIGE (2007-2011), Secretária de Estado para a Igualdade (2001/02), Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego - CITE (1997/2001) e Vice-Presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres – CIDM (1991/92), sendo atualmente membro do Conselho Técnico-Científico do Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e igualdade de género - CIG. Foi técnica e dirigente na Administração Pública - Direcção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto do Emprego e Formação Profissional e Secretaria Geral da Presidência da República. É formadora, autora e coautora de referenciais de formação no domínio dos direitos humanos, igualdade de género e Migrações Internacionais, oradora em seminários e outras iniciativas, autora de artigos em revistas da especialidade sobre temas da igualdade de género, e membro de diversas organizações não-governamentais que desenvolvem atividade em várias dimensões da área da igualdade de homens e mulheres.

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