“As uniões precoces deviam ser criminalizadas”
- Data de publicação 06 novembro 2015
Eleita há dois anos coordenadora do Secretariado Internacional da Marcha Mundial Feminista, Graça Samo encabeça uma luta hercúlea em Moçambique, seu País, para acabar com os casamentos precoces e forçados, responsáveis por muitos casos de fístula obstétrica e pela alta taxa de gravidez na adolescência, a elevada mortalidade materna por causas relacionadas com a gravidez, parto e pós parto, e a exploração da força de trabalho das mulheres. A ativista acredita que, marchando pelo mundo, fazendo-se ouvir, as mulheres e as meninas moçambicanas vão conseguir vencer todas estas batalhas.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández
A Caravana Feminista começou no Curdistão turco em Março, percorreu dezassete países e acabou há uns dias em Lisboa. Que balanço faz desses meses?
Apesar das circunstâncias difíceis, porque alguns territórios estão em conflito armado, faço um balanço positivo. As mulheres que participaram na Marcha Mundial das Mulheres (MMM) conseguiram permanecer firmes no grande desafio que foi a travessia da Europa para mostrar ao mundo a resistência das mulheres nas várias esferas da vida.
Houve contratempos?
Contratempos há sempre. Houve vários ataques terroristas durante o percurso. No Curdistão, onde iniciamos a Marcha, reinou um certo medo por causa do contexto político que o País vive atualmente, dominado pelo fundamentalismo religioso e pelo Estado Islâmico. Mas há lá mulheres que resistem, assumindo a força militar em defesa própria. A MMM é um movimento pela paz, contra a militarização, mas reconhece o uso da força em legítima defesa.
O que se espera hoje com a Marcha Mundial das Mulheres? O mesmo que da primeira, em 2000?
A primeira surgiu antes, em 1995, no Canadá, com o lema Pão e Rosas, na qual 850 mulheres percorreram 200 quilómetros entre o Quebec e Montreal, em protesto contra a pobreza [uma das conquistas desta manifestação foi o aumento do salário mínimo e de mais direitos para as mulheres imigrantes].
Mas essa foi uma inspiração…
É verdade, porque na altura achou-se que a Marcha Pão e Rosas não devia terminar aí, devia ganhar projeção internacional. Foi assim que surgiu a Marcha Mundial das Mulheres, em 2000, cujo objetivo continua, hoje, a ser o mesmo: denunciar a opressão, a violência e a pobreza que as mulheres sofrem no seu dia-a-dia. As mulheres pagam um preço muito alto por serem mulheres.
Quão alto?
São exploradas, trabalham sem serem pagas ou recebem muito menos que os homens. O seu trabalho produtivo não é reconhecido. Sofrem muito para terem direito à saúde, sendo que em muitos países, sobretudo africanos e asiáticos, não têm sequer acesso a serviços de saúde públicos. É por isso que os níveis de mortalidade materna são muito elevados.
E como é que o feminismo pode mudar a situação das mulheres, marchando?
Durante a MMM, realizamos várias ações com as mulheres locais e chamamos a atenção para várias questões que as oprimem. Em primeiro lugar, apelamos à construção do empoderamento das mulheres, para que elas se tornem sujeitos da mudança da sua própria vida, em vez de serem o centro das disputas do patriarcado e do capitalismo – é que toda a luta é feita à custa do corpo das mulheres; isso é muito claro quando as economias mais poderosas instalam as suas indústrias nos países mais pobres para explorar a força de trabalho das mulheres. Os países ricos exploram os recursos dos países mais pobres a baixo custo, vendem-nos a baixo custo e fazem mais dinheiro a baixo custo. E quem está a pagar isso? São as mulheres africanas e asiáticas, através da mão-de-obra barata.
Qual é a importância de Moçambique ter assumido o Secretariado Internacional da MMM?
O convite do Comité Internacional da Marcha Mundial significou o reconhecimento das mulheres moçambicanas como um sujeito político e a internacionalização da sua luta pela defesa dos seus direitos.
E a Graça, o que sentiu quando foi eleita coordenadora da MMM?
Fiquei muito feliz, mas não sinto que foi uma eleição individual. Como membro do Fórum Mulher, uma rede de organizações que assumiu a Marcha em 2000 e da qual eu fazia parte antes de ser eleita coordenadora, represento todas as mulheres moçambicanas. Portanto, foram as mulheres moçambicanas que foram eleitas.
Que caminhos percorreu antes de liderar a Marcha Feminista? Quando é que começou esta luta?
Acho que comecei no ventre da minha mãe, porque lutei para sobreviver, sair e nascer. Nasci numa família rural, em Inhambane, uma província do sul de Moçambique que os portugueses chamavam Terra de Boa Gente. Tenho 12 irmãos. Sou filha de pai professor primário e de mãe camponesa. Como a minha povoação não tinha escola, tive que sair de casa dos meus pais muito cedo, aos seis anos. Aos 12 fui para Maputo, para poder continuar a estudar. Arranjei o meu primeiro trabalho durante o período da guerra civil em Angola, numa ONG Irlandesa com intervenção na área social, onde trabalhei em programas de emergência, sobretudo nas vertentes infância e nutrição. Depois voltei para Moçambique, onde continuei a desenvolver trabalho de emergência. Mais tarde fui para o Brasil, onde tirei a licenciatura em Administração de Empresas e, em 2004, voltei ao meu País e concorri para uma vaga no Fórum Mulher. Fui admitida como Diretora Executiva e aí estive até ser convidada para coordenadora do Secretariado Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.
Qual é o legado que gostaria de deixar para a próxima coordenadora?
São seis anos de mandato, ainda tenho quatro pela frente, mas já estamos a preparar o próximo secretariado. Gostaria que as mulheres continuassem a seguir em marcha até que todas as mulheres moçambicanas e do mundo inteiro sejam livres.
Quais são os principais desafios das mulheres moçambicanas?
A violência. A sociedade moçambicana está muito violenta. Muito trabalho está a ser feito, mas existem muitas ameaças. São precisos mais esforços para fazer de Moçambique uma pérola do Índico.
“Os países ricos exploram os recursos dos países mais pobres a baixo custo, vendem-nos a baixo custo e fazem mais dinheiro a baixo custo. E quem está a pagar isso? São as mulheres africanas e asiáticas, através da mão-de-obra barata.”
Então vamos por partes. Nessa luta que a Graça encabeça, faz parte a defesa de causas como a melhoria das condições da saúde materna no seu País? Em Moçambique, o número de mulheres que morrem por causas relacionadas com a gravidez, parto e pós-parto é muito alto: morrem onze por dia.
Sim, essa é uma questão muito crítica. A hemorragia após o parto, a sépsis puerperal, a eclâmpsia, a rutura uterina devido ao trabalho de parto prolongado ou obstruído e as complicações do aborto, principalmente o aborto ilegalmente induzido, figuram entre as principais causas de morte materna. Primeiro, porque as mulheres não conseguem ter acesso aos cuidados sanitários (muitas vivem distantes destes serviços). Segundo, ainda há uma relação de poder entre as famílias, sobretudo do meio rural, de maneira que a mulher não tem autonomia para ir a uma unidade de saúde quando está gravida e começa em trabalho de parto ainda em casa. E, nesses casos, se surgem complicações, a situação dela e do bebé agrava-se. Terceiro, o atendimento nas unidades sanitárias é muito precário, faltam medicamentos e técnicos qualificados. Digamos que o nível de crescimento dos serviços não acompanha o crescimento da natalidade, que é muito elevado em Moçambique.
Mas uma das prioridades do ministério da saúde moçambicano era a diminuição da mortalidade materno-infantil através do atendimento na gravidez e no parto e do planeamento familiar. Estas medidas não estão em marcha?
Não, não estão. Agora temos uma ministra da Saúde que demonstra essa vontade política. Diz que é necessário melhorar esse atendimento, mas as condições que o País tem são muito limitadas. Não há funcionários nem unidades sanitárias suficientes para responder à demanda. Aumentou o número de clínicas privadas, mas quantas pessoas têm condições de pagar consultas particulares? A maioria da população não tem rendimentos. A solução é apostar na melhoria e no alargamento dos serviços públicos.
O HIV/Sida, a par da mortalidade materna, continua a ser um dos grandes problemas em Moçambique? Estima-se que um milhão e quatrocentas pessoas estão infetadas e 120 mil novas infeções acontecem por ano.
É um problema tão grave que coloca o país entre os 10 mais afetados por esta pandemia a nível mundial. E as mulheres são as principais vítimas: do total de infetados, 200 mil são crianças entre os 0 e os 14 anos, 460 mil são homens e 770 mil são mulheres. Dentro da nossa ‘comunidade’ temos mulheres incríveis que lideram o movimento de mulheres que vivem com HIV, fazendo um trabalho de base para visibilizar o problema junto das comunidade locais e tentando criar alternativas para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. Há pessoas a viverem situações complicadas, porque o acesso ao tratamento é difícil. Também há muita gente que tem dificuldade em fazer o exame, não só por falta de informação como também por preconceito (preferem dizer que têm tuberculose do que HIV). Significa que temos seguramente mais gente infetada que não constam das estatísticas.
E num país onde muitas pessoas infetadas passam fome, tomar os retrovirais faz pouca diferença…
Pois, essa é também a questão. A fome cria mais fragilidades e efeitos colaterais nas pessoas em tratamento. É por isso que a mortalidade realmente ainda é muito grande.
A mortalidade crescente devido ao HIV/Sida tem dado origem a números crescentes de viúvas e de órfãos, o que que aumenta os desafios que mulheres e crianças em muitos países da África sub sahariana enfrentam para assegurar os seus direitos à propriedade e à herança. Nada evoluiu neste aspeto?
Pelo contrário, diria que, em muitas situações, o problema agravou-se. No passado, a viúva era uma pessoa da terceira idade, tinha filhos adultos que lhe garantiam proteção e salvaguarda dos seus direitos; hoje, as viúvas são jovens, às vezes adolescentes, porque foram forçadas a casar precocemente. Significa que uma rapariga que fica viúva não tem uma estrutura de suporte, porque nem sequer tem filhos autónomos para a ajudar. Uma jovem viúva não tem nada.
Os casamentos prematuros e forçados afeta uma em cada duas raparigas em Moçambique. É um dos países com as taxas mais elevadas e no entanto são largamente ignoradas no âmbito dos desafios de desenvolvimento que o país persegue. Como é possível?
É possível, porque as pessoas escudam-se na cultura e na tradição para justificar uma prática violenta que, para mim e para muitas pessoas, se chama pedofilia. Penso que, enquanto não atacarmos a raiz dessa questão – que é uma sociedade estruturada para pensar na mulher e no corpo da mulher como um objeto propriedade do homem -, não podemos vencer esta batalha. As uniões forçadas acontecem porque as famílias não têm fonte de rendimentos e olham para as suas meninas como uma alternativa, entregando-as a homens mais velhos, não importa se são casados ou solteiros.
Existe relação entre os casamentos precoces e forçados e os casos de fístula obstétrica em Moçambique?
Não tenho dúvidas de que esse é um dos efeitos da união forçada e da gravidez na adolescência. É exorbitante o número de casos de fístula obstétrica que aparecem nas unidades sanitárias e que têm sido descobertos nas nossas comunidades. Muitas mulheres ficam excluídas da vida em sociedade e da família por causa desse problema e o pior é que o País não tem capacidade para dar resposta. A solução passa pela adoção de medidas de prevenção, como por exemplo a criminalização da união forçada e precoce.
Os casamentos precoces são também responsáveis por parte da alta taxa de gravidez adolescente. Em 2011, mais de 42 por cento das jovens moçambicanas tiveram um filho antes dos 18 anos e 8 por cento antes dos 15 anos. A situação mantém-se?
Embora não os saiba de cor, sei que esses números não mudaram muito e tendem a agravar-se, justamente porque a capacidade que País tem para os registar é também muito limitada. No entanto, eles estão manifestos em situações como o elevado abandono escolar das raparigas, sobretudo nas regiões a norte. Aliás, essa é a área onde os níveis de analfabetismo entre as mulheres são mais elevados e é evidente a fraca participação das mulheres em todas as esferas.
Além do abandono escolar, outros efeitos da gravidez precoce é a diminuição das oportunidades de emprego para uma rapariga. E daí à pobreza, à exclusão e à dependência é um passo curto...
Não diria melhor. Uma mulher que não tem acesso à escola tem poucas chances de agarrar as oportunidades de trabalho que vão sendo criadas pelas iniciativas de desenvolvimento local.
E mesmo as mulheres que têm trabalho vivem uma situação económica pouco favorável. 66,7% recebem menos do que os homens e muitas têm trabalhos desqualificados. Como é que as mulheres moçambicanas podem reivindicar mais e melhores empregos e o fim da disparidade salarial?
Os governantes do meu País dizem que não existe discriminação e que as pessoas têm que ser admitidas pelas suas competências. Portanto, para o governo moçambicano, as mulheres não têm competências. Mas como podem ganhar competências se são tiradas da escola muito cedo? É preciso fazer um trabalho de sensibilização muito grande junto das famílias, porque, em primeira instância, é dentro das famílias que as meninas começam a ser discriminadas. Durante o tempo que tem ao longo do dia, a prioridade não é ir à escola, é ajudar a mãe nas tarefas reprodutivas (acarta a água, cozinha, lava, limpa, cuida dos irmãos e dos avós) e, se sobrar tempo, então vai à escola.
A propósito, está a ser debatido em Moçambique um Decreto-Lei que obriga as meninas que engravidam a passar para a escola noturna. Isso é o mesmo que tirá-las da escola mais cedo…
É, porque com a precariedade dos transportes e a insegurança pública, mais facilmente as meninas desistem da escola.
Um símbolo de libertação das mulheres em Moçambique foi a integração de um grupo nas fileiras militares para lutarem pela independência. Hoje, qual é papel da mulher nas forças armadas moçambicanas? A Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre Mulheres, Paz e Segurança (Resolução 1325/2000) alerta para o impacto desigual que os conflitos armados têm sobre as mulheres.
Não nos interessa pensar no papel das mulheres nas Forças Armadas. Interessa-nos mais o seu papel na construção e preservação da paz em Moçambique. Durante o período em que estivemos a usar a força das armas, em vez de avançar, destruímos o País. É de paz que precisamos para construir Moçambique. O que se gasta na guerra devia gastar-se em cuidados de saúde e em educação.
Qual é, então, o papel das mulheres no processo de construção da paz?
É fazer ouvir as suas vozes em prol da paz. Essa esfera está tomada pelo poder masculino e pela perspetiva masculina de pensar a construção do País. Por isso, as mulheres têm que agir à margem, fazendo conferências e ações junto das comunidades locais.
Na sua opinião, o que é que a CPLP não tem feito e devia fazer pelo empoderamento das mulheres?
Julgo que o trabalho de muitas instituições como a CPLP, as Nações Unidas e as agências bilaterais e multilaterais não se faz sentir na vida das mulheres. Os recursos ficam num nível acima, não chegam à base, porque se chegassem, a pobreza em que vivemos em Moçambique não teria a dimensão que tem: a saúde das meninas e das mulheres deteriora-se e a violência, a fome, a perda da terra e as desigualdades aumentam.
Sabe que em Moçambique há uma nova ONG, a P&D Factor, que tem estes assuntos como prioritários?
Não sabia, mas agora vou ficar atenta.
Quem é Graça Samo? |
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Moçambicana, 46 anos, mãe de dois rapazes (de 16 e 10 anos). Licenciada em Administração de Empresas, tem um percurso profissional ligado à defesa dos direitos das mulheres moçambicanas. Começou a trabalhar numa ONG irlandesa, foi Diretora Executiva do Fórum Mulher, em Moçambique, da qual saiu, há dois anos, para abraçar a coordenação do Secretariado Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. |