Entrevista

. “O género é uma construção social”

GabrielaMoita1 150x220Foi na literatura, na infância, que Gabriela Moita percebeu que o mundo era desigual para homens e para mulheres e assim que se tornou mulher feita tomou as questões relacionadas com a discriminação de género, a construção da identidade e a orientação sexual como temas predominantes do seu estudo e trajetória profissional. Esta psicóloga e terapeuta sexual acredita que o grande movimento de libertação do ser humano ainda está para vir.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Fernández Lopes

Diz que a sociedade tem uma “forma de olhar” para o que é ser homem e para o que é ser mulher. Quer explicar?

É a forma de olhar de género, que é preconceituosa. Veja como é que a sociedade se divide: mundo dos homens e mundo das mulheres, o que é que eles fazem e o que é que elas fazem, como se fossem mundos separados. Não é sem sentido que o pior insulto que se pode fazer a um homem é chamar-lhe mulher e a um rapaz é chamar-lhe menina. A pior coisa que alguém pode ser é mulher. É assim desde sempre, isto é a história das mulheres na estrutura social. Ser mulher é a pior coisa que há.

Quando e como é que descobriu que o mundo é desigual para homens e mulheres?

Foi num texto literário, onde li “Elas remavam como homens”. Era uma miúda, tinha dez ou onze anos. Perguntei ao meu pai porque é que elas, sendo mulheres, remavam como homens. Por que não remavam como mulheres? Por que é que as pessoas têm fazer uma coisa qualquer como não sei quem? Era incompreensível para mim o que ali estava escrito e, a partir daí, fui tendo uma noção mais clara destas diferenças. De resto, elas estão bem à vista, em todo o lado. Mas, repare: não é que o masculino esteja em situação favorável, porque a situação de poder que aparentemente é dada aos homens, é um falso poder, é uma obrigação.

Por isso é que defende que o grande movimento de libertação do ser humano está para chegar?

Sim. A libertação das mulheres foi muito importante, mas falta criar o movimento de libertação dos homens, o fim do ter que ser. As mulheres não podem ser isto e aquilo e os homens têm que ser isto e aquilo. Os homens têm que ser fortes, têm que ser ativos, têm que sustentar a família, têm que ser participativos, têm que ser determinados. Isto é tão mau como o não dever ser das mulheres. A nossa Agustina Bessa Luís ainda há pouco tempo escreveu num texto que não existe homossexualidade feminina.

É a ideia de que não há sexo sem penetração?

Justamente, é a ideia de que a orientação está muito ligada a práticas sexuais e que as práticas sexuais dependem da penetração. Portanto, duas mulheres nunca poderiam ser lésbicas e ter relações sexuais, porque não se penetram, porque não têm um órgão sexual para penetrar.

E a ideia de que a homossexualidade é uma patologia ainda persiste? Os pais e mães de adolescentes procuram-na para tratar a homossexualidade dos filhos e filhas?

Muitos, muitos. Mesmo depois de lhes explicar que a homossexualidade não é uma doença e, como tal, não tem tratamento, insistem nessa crença. Há pais para quem a homossexualidade dos filhos é muito difícil de aceitar, porque, creem, é a sua dignidade que está posta em causa, o que demonstra que não é doença mas sim uma questão social. Pergunto-me como é possível um sofrimento desta natureza, a ponto de expressarem pensamentos do tipo “depois de saber isto vou ter de deixar o país” ou “não posso mais viver na mesma freguesia, porque não tenho mais cara para encarar os vizinhos”. Estou a falar de pessoas do Porto e de Lisboa, que é onde tenho consultório.

O que lhes responde?

Antes de mais, tento perceber por que é que a homossexualidade do filho ou da filha os incomoda tanto. E depois peço-lhes para trazerem o filho ou a filha à consulta, mas só para saber como é que se sentem relativamente a essa questão.

E os pais voltam à consulta?

No início há sempre uma grande resistência. É um problema tem que ser trabalhado com muita cautela, porque os pais chegam ao consultório com muita dor e o meu papel nesses casos é dar sentido à dor que sentem. É legítimo que sintam dor, porque são vítimas de um modelo social que os obriga quase a sentir daquela forma; a sociedade formou-os na ideia de que os homens gostam de mulheres e as mulheres gostam de homens.

E querem perceber porque é que o filho ou filha gosta da pessoa x ou y?

Eles não quererem perceber isso, o que eles querem perceber é porque é que a pessoa x ou y tem o mesmo sexo do filho ou da filha. É muito interessante a questão que coloca, porque essa é a grande questão. A grande questão a que temos de responder é: por que é que nós gostamos da pessoa x ou y, independentemente do sexo que tem? A ciência não tem resposta. Ninguém sabe porque é que amamos as pessoas que amamos.

“A orientação sexual não é uma questão. A questão é, repito: porque é que nós amamos a pessoa que amamos?”

A orientação sexual não é para aqui chamada?

A orientação sexual não é uma questão. A questão é, repito: porque é que nós amamos a pessoa que amamos? Tenho na consulta muita gente que quer resolver o problema do amor que sente por uma pessoa por quem não pode ter esse amor. Outra questão: porque é que nem sempre amamos a pessoa que queremos amar? Isto é que falta descobrir.

Além do casamento e da adoção de crianças por casais do mesmo sexo, que outras alterações aponta no sentido da igualdade de direitos?

Bom, em termos de alterações legislativas já muito foi conquistado. A primeira grande alteração foi o artigo 13º, que integra a orientação sexual no artigo da não discriminação, em função de várias categorias, entre as quais a categoria da orientação sexual. Também foi alterado o artigo 175º, se não me engano, respeitante às relações de adultos com menores e que previa uma penalização diferente nas situações em que o adulto e o menor eram do mesmo sexo, o que demonstra uma discriminação claramente ligada ao género.

A luta pelos direitos dos homossexuais começou mais tarde do que a luta pela igualdade de género, no entanto fez progressos mais rapidamente. Porque será?

É verdade e é por essa razão que as grandes questões são as de género. A diferença de género, que é o que está a montante das questões da orientação sexual, é que é o átomo difícil de quebrar. Repare, no século XVIII a mulher nem sequer era reconhecida como um ser completo. Nessa altura, havia um sexo (homem) e havia um outro que era inacabado e inferior (mulher). Aliás, se vir os artigos do nosso Egas Moniz e tudo o que foi escrito na época, verifica não se fala do homem e da mulher, fala-se do homem e do sexo fraco. Nunca aparece a palavra mulher. A partir do final do século XVIII, início do XIX, ficou claro na medicina que existem dois sexos diferentes. Como calcula, foi uma grande revolução cultural e histórica, porque tudo estava organizado em função de uma regra que discriminava, dividia e atribuía papéis e características. Existem manuais do século XIX que descrevem o que é ser homem e o que é ser mulher, o que também demonstra que o género é socialmente construído.

O que era ser mulher e o que era ser homem, segundo esses manuais?

Ser mulher era não fumar, era vestir vestidos, era gostar de homens. Ser homem era ter determinado tipo de profissões, era gostar de mulheres. Qualquer transgressão a uma destas regras era penalizada. Era tão grave uma mulher fumar como uma mulher gostar de outra mulher. Da mesma forma, se um homem gostava de homens estava a violar uma das regras da organização social. Deu-se mais ênfase à questão da homossexualidade porque ela vem de trás, da sodomia, da religião, que a designava como sexo não pro-criativo (no passado não se chamava homossexualidade).

O casamento entre pessoas do mesmo sexo, e, recentemente a adoção de crianças por gays e lésbicas veio reforçar a evidência de que a família está em mudança. Há novas modalidades de família?

Não. Acho é que há um reconhecimento de novas modalidades de família. O mundo não tem nada de novo neste aspeto. O que há de novo é a aceitação de uma realidade que existe desde sempre, só que de uma forma oculta, não visível, mais discriminadora.

Por que é que estava a demorar tanto alterar a lei da adoção?

Porque o preconceito é muito grande e porque põe em causa a estrutura, a ordem social. A psicologia, mais do que a psicanálise, é historicamente a maior responsável por isso, ao enfatizar a figura do pai e da mãe e, desse modo, reproduzir os papéis de género.

Falou em preconceito. Mas não será ignorância, assente na ideia de que uma criança precisa do pai e da mãe?

Preconceito e ignorância, em parte devido a uma interpretação menos correta do que disse Freud. Freud dizia que a criança precisa da figura do pai e da mãe e com isto queria dizer que a criança precisa de afeto, carinho, segurança, limites, determinação, apoio e alimentação. E quem lhe dava estas coisas? O pai e a mãe pai. A autoridade, os limites, as regras eram função do pai, e o amor, o carinho e o cuidado cabiam à mãe. Era assim que as coisas estavam socialmente reguladas no tempo de Freud. Hoje não, ou, pelo menos, de uma forma tão generalizada.

Pode-se falar de sexualidade ou de sexualidades?

Mesmo que se use a palavra no singular, ela é sempre plural, porque não existe uma só forma de viver a vida. A sexualidade é vida, é a forma como interagimos uns com os outros, não é exclusivamente aquilo que se passa ao nível de um órgão que temos no corpo.

E de que forma a sexualidade se integra no discurso político e social?

Basta que exista discriminação de género para que a sexualidade esteja em todo o lado. O género é sexualidade. Agora, se me pergunta se as questões da sexualidade são assumidas e expressas oralmente no discurso político, não, não são, porque estes temas não são considerados prioritários. A crise económica é mais importante.

Além da defesa dos direitos dos homossexuais, sempre se debateu pela igualdade de género. Atualmente, quais são os grandes desafios para as mulheres?

São os velhos desafios. Já temos direitos adquiridos, já podemos votar, já podemos divorciar-nos, já podemos muita coisa, mas do ponto de vista cultural há muito mais a fazer do que do ponto de vista jurídico. A história é muito forte, ainda exerce um peso enorme nas mulheres. Tenho mulheres na consulta de psicologia que não aguentam pensar na palavra divórcio. Algumas são espancadas pelos maridos e não saem de casa porque para elas o divórcio é impensável, é uma vergonha ter no B.I. esse estado civil. Tenho mulheres que não vão a um café sozinhas porque receiam ser consideradas levianas. Tenho mulheres que se sentem mal por terem ficado para tias, por não ter havido quem as escolhesse. Estou a falar de mulheres licenciadas, colocadas em cargos altíssimos, algumas em lugares de gestão. Estou a falar de mulheres entre os 20 e os 40 anos, de cidades como o Porto e Lisboa. Portanto, a visão que muitas mulheres têm delas próprias demonstra que falta conquistar ainda muito.

O que falta alcançar para que a igualdade de género e a não discriminação das mulheres sejam universais?

Penso que enquanto a mulher for considerada guardiã da moral e da dignidade da família, também não conseguiremos fazer mais nada. Melhor, enquanto não considerarmos que acima dos homens e das mulheres estão as pessoas, olhando para as pessoas e não para o seu figurino (se tem vagina ou se tem pénis), não conseguiremos alcançar mais do que já alcançamos.

Essa mudança não devia começar na escola?

Devia, claro. Quanto mais cedo se aprender a respeitar as pessoas com formas muito diferentes de ser, melhor. É muito importante trabalhar estas questões com as crianças. Mas não é só na escola, é também em casa. A Educação sexual é fundamental.

Educação Sexual ou de Educação para a Igualdade e não Discriminação?

Para mim é a mesma coisa. Educação Sexual é educar para a igualdade e não discriminação. Não concebo uma coisa sem a outra. Educar para a igualdade é educar para o respeito pelo direito de ser pessoa.

Mas os meninos e as meninas continuam a ter educações diferentes. Acha que essa distinção alimenta as desigualdades de género?

Não tenho a menor dúvida. Essa distinção é visível sobretudo nas escolas; penso que em algumas casas já se educam rapazes e raparigas da mesma maneira. Gostava muito que a escola fosse um lugar transformador, mas não é. De resto, não foi criada para isso, a sua essência é a manutenção das regras para que as pessoas sejam conformistas, aceitantes e passivas.

Acha que as sociedades inclusivas e plurais causam medo e é por isso que ainda são uma miragem? Do que é que se tem tanto medo para não se fazer essa transformação?

Tudo o que faz parte do diferente (diferente na cabeça de cada um de nós), do que não nos foi dado a observar, do que não nos foi falado, causa muito medo a pessoas com determinado tipo de personalidade.

Quem é Gabriela Moita?

GabrielaMoita2 150x180Psicóloga Clínica, terapeuta sexual, psicodramatista, e professora no ensino superior. As questões relacionadas com a orientação sexual e a construção da identidade são temas predominantes do seu estudo e trajetória profissional. Aliás, doutorou-se em Ciências Biomédicas com uma tese a que deu o título "Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico: a homossexualidade de dois lados do espelho" e recebeu, em 2013, o prémio Arco-Íris pelo trabalho na luta contra a homofobia. Vive entre o Porto e Lisboa, onde nasceu há 53 anos.

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