Entrevista

. “A violência doméstica está associada ao desvalor da mulher”

Maria de Belém RoseiraFoi a primeira pessoa a exercer o cargo de ministra para a Igualdade e sabe bem como é ser-se discriminada por causa do género. Maria de Belém Roseira está na corrida para a Presidência da República, mas não esquece o tempo em que, já licenciada em Direito, não podia seguir carreira na magistratura e na diplomacia só por ser mulher. E também não esquece os dissabores que viveu, vive, na política, também por ser mulher. Não esquece, porque “há conquistas e direitos que têm que ser permanentemente defendidos”.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernández

O direito ao voto, em Portugal e no mundo, é uma das mais importantes conquistas das mulheres?

Embora não seja a única, é uma das mais importantes conquistas. Mas é importante ter a noção de que as conquistas nunca são definitivas. Temos esse exemplo. Em 1911, por uma decisão judicial, Portugal viu reconhecido o direito de voto a uma mulher e a seguir foi retirado, apesar de ter feito parte dos compromissos do Partido Republicano, então no Poder, com as sufragistas, o reconhecimento do direito ao voto das mulheres. Isto, para lembrar que há conquistas que têm que ser permanentemente defendidas, sobretudo num mundo onde parece que a economia tem mais importância e mais poder do que os Direitos Humanos.

Quarenta anos é o tempo que nos distancia de uma época em que as mulheres não podiam eleger os representantes políticos de outra em que temos três mulheres candidatas à Presidência da República. Acha que já é tempo de Portugal ter uma mulher no mais alto cargo público?

Já tivemos uma mulher candidata [Maria de Lourdes Pintasilgo], mas sim, acho que é tempo de Portugal ter uma mulher na Presidência da República. Sou de uma época de profundas desigualdades, pelo que senti na pele as restrições profissionais impostas às mulheres. Quando tirei a licenciatura em Direito havia duas carreiras que me eram vedadas, a magistratura e a diplomacia, só pelo facto de ser mulher. As mulheres não tinham as mesmas oportunidades. E não era só a nível profissional que a desigualdade estava consagrada na lei, era também a nível do Direito Civil e Comercial.

Depois de Maria de Lurdes Pintassilgo, foram precisos 30 anos para que outras mulheres se candidatassem. Porquê tanto tempo?

Porque, por muita afirmação que as pessoas façam do ponto de vista da igualdade dos direitos, existem razões culturais que impedem a sua aplicação ou fazem com que não seja uma prática corrente. Desde 1990 que temos consagrado na lei “trabalho igual, salário igual” e, no entanto, as mulheres continuam a ganhar menos do que os homens em praticamente todos os setores (o único onde não há discriminação salarial talvez seja o da Administração Pública e se calhar é por isso que tem tantas mulheres). Há coisas que estão consagradas na lei que a prática, depois, arranja formas e subterfúgios para não cumprir, o que significa que, relativamente a cargos de grande relevo, se houver homens disponíveis para os ocupar, não há lugar para as mulheres. Claro que isto é transmitido através de mensagens subliminares, que acabam por funcionar como barreiras à candidatura das mulheres.

É por isso também que há ainda tão poucas mulheres na esfera pública?

Sim, mas creio que é também por uma questão de risco. As mulheres são muito mais escrutinadas na vida pública do que os homens. São muito mais ofendidas, são vistas como mais vulneráveis e, como todos sabemos, as pessoas têm sempre vontade de abusar daqueles que consideram mais fracos. Muitas mulheres não estão para se sujeitar a isso.

Não terá a ver também com disponibilidade? Se as mulheres tivessem mais tempo na esfera privada, se não estivessem tão sobrecarregadas com o trabalho doméstico e com o cuidado com os filhos…

Há muitas mulheres que não têm essa sobrecarga e, mesmo assim, não se candidatam. Penso que a pouca participação das mulheres na política está relacionada com o escrutínio. Costumo dizer que, depois de dezenas de anos em que nunca me senti discriminada no exercício de cargos de alta chefia, na política passei a ser um alvo a abater.

Por ser mulher?

Porque sou mulher e porque passei a destacar-me. As mulheres são vistas com muito mais exigência.

Gostaria que especificasse...

Não quero referir-me especificamente a mim. Lembro-me que quando a Ségolène Royal se candidatou [à Presidência da República de França] foi muito ridicularizada só porque não soube responder à pergunta de um jornalista sobre a quantidade de submarinos nucleares que a França tinha. A pergunta foi feita com a intenção de mostrar que ela não estava preparada para o cargo, apesar de esse desconhecimento não comprometer o exercício das funções de PR. De resto, ninguém fez essa pergunta ao Sarkozy (e, certamente, também ele não saberia responder).

As mulheres têm um jeito diferente dos homens de exercer o poder?

Somos todos diferentes. Há quem identifique os grandes padrões, dizendo que as mulheres têm mais vocação para exercer o poder não por aquilo que o poder dá mas pelo que podem fazer com ele, e que os homens gostam e valorizam muito a posição, o estatuto, o poder enquanto autoridade máxima. Penso que há mulheres que têm um exercício do poder muito mais próximo do masculino, que é o padrão da autoridade muito afirmada, de alguma assertividade, às vezes até com alguma violência, e há homens que também têm outra forma de estar. Maria de Lurdes Pintasilgo, por exemplo, dizia que o poder podia ser exercido de duas maneiras: como algo que dá estatuto ou como algo que permite uma liderança para mudar as coisas para melhor.

E em qual dos lados do poder se posiciona?

Posiciono-me no exercício do poder por aquilo que ele permite transformar para melhor. Os cargos, por si só, nunca me disseram nada, mas acho que são importantes para fazer a diferença. É só isso que me move.

A defesa dos direitos das mulheres está-lhe no sangue ou é uma causa que passou a defender com a perceção do que se passava antes do 25 de Abril, quando o papel das mulheres era de total subalternidade e dependência?

Sempre vivi num contexto familiar de mulheres fortes, autónomas, capazes e libertas, em que mulheres e homens tinham a mesma dignidade, pelo que, desde muito cedo, tive a noção de que homem e mulher eram duas personalidades jurídicas diferentes. Lembro-me, por exemplo, de que quando fui tirar o Cartão de Identidade, aos nove anos (para fazer o exame da instrução primária), perguntaram-me o nome e eu disse os apelidos da minha mãe e os apelidos do meu pai. Isto é muito engraçado do ponto de vista subliminar, porque significa que já nessa altura achava que cada um deles tinha a sua identidade autónoma.

Está-lhe então no sangue.

Está-me no sangue, mas, com o tempo, foi-se reforçando, quando comecei a conviver com realidades que para mim eram desconhecidas, como a violência doméstica contra as mulheres. Eu já tinha assistido a algumas situações quando passava férias na quinta da minha avó, em Trás-Os-Montes. Vi homens que ao domingo iam para a taberna, bebiam demais e quando chegavam a casa batiam nas mulheres. Nessa altura, a violência doméstica era um problema muito ligado ao álcool e às classes mais desfavorecidas. Quando comecei a trabalhar, confrontei-me com a realidade de pessoas de classes sociais elevadas que também eram vítimas de violência doméstica, não ligada ao álcool mas a drogas de outra natureza.

“Passou a fazer sentido para mim aquele ditado ‘quanto mais me bates mais gosto de ti’, para explicar a tolerância das mulheres a um fenómeno em crescimento [violência doméstica], que começa por uma bofetada ou um puxão de cabelo e pode acabar com a morte da mulher”.

É um problema transversal…

É transversal e está associado ao desvalor da mulher. Foi isso que comecei a verificar. A mulher vivia para obedecer, para fazer o que o marido mandava e se se desviava do ‘carril’ era castigada. Portanto, passou a fazer sentido para mim aquele ditado “quanto mais me bates mais gosto de ti”, para explicar a tolerância das mulheres a um fenómeno em crescimento, que começa por uma bofetada ou um puxão de cabelo e pode acabar com a morte da mulher. Esta é uma realidade que, realmente, só mais tarde, durante o exercício profissional, soube que existia.

Houve alguma mulher em particular, na família, que a tivesse ‘inspirado’?

A história das mulheres fortes na minha família começou com a minha bisavó materna, que não cheguei a conhecer. Enviuvou cedo, era produtora de vinho e uma grande proprietária no Alto Douro. A minha avó também foi uma mulher muito autónoma, escolheu a sua vida, decidiu viver sozinha na quinta (penso que dormia com um revólver debaixo da travesseira). Eram mulheres com ideias muito claras e um espírito de luta muito forte. Nunca soçobraram, apesar das adversidades.

Maria de Lourdes Pintassilgo teve alguma influência nesse despertar para a causa da igualdade de género?

Despertar não, porque quando a conheci já defendia essa causa. Embora não fosse um problema para mim, sabia que era um problema para outros. Quando falei das coisas que não conhecia, referia-me à faceta mais feroz, mais brutal da desigualdade de género, como a violência doméstica. Mulheres autónomas tinha-as na minha família, mas sabia que noutras casas não era assim. Por outro lado, estudei num liceu feminino, com professoras duras, exigentes e autoritárias, muito marcantes do ponto de vista da disciplina e do exercício da autoridade. Ou seja, para mim, desde criança, mulheres e autoridade casavam bem.

Quando é que começou a tomar contato direto com situações de grande sensibilidade social?

Depois de concluir o estágio de advocacia, quando fui trabalhar para o Ministério das Corporações e Previdência Social, com a Maria de Lourdes Pintassilgo (na Direção Geral da Previdência Social). Foi aí que tomei contato mais direto com essas situações. Maria de Lurdes Pintasilgo era uma mulher de grande personalidade. Toda a luta dela não se esgotava naquilo que se passava em Portugal. Tinha uma preocupação global, lutava pelo desenvolvimento da mulher à escala planetária. Ela encabeçou a causa da igualdade.

Conheceu-a nessa altura?

Conheci-a antes do 25 de Abril, quando ela era a coordenadora de um grupo de trabalho da Comissão da Condição Feminina [nomeado por Maria Teresa Lobo, a primeira mulher que desempenhou cargos governativos em Portugal], que funcionava dentro do Ministério das Corporações e Previdência Social. Trabalhei com ela nessa altura e mais tarde, quando foi Ministra dos Assuntos Sociais.

Foi inspirada em Maria de Lurdes Pintasilgo e em outras mulheres excecionais nas mais diferentes áreas que escreveu Mulheres Livres. O que a motivou a escrever este livro?

Acho importante conhecermos mulheres que significaram pilares ao serviço da causa da igualdade. Maria de Lurdes Pintasilgo teve muita importância em Portugal como teve Carolina Beatriz Ângelo [a primeira mulher a votar em Portugal], Ana de Castro Osório [escritora, ativista republicana e militante dos direitos das mulheres] e muitas outras que refiro no livro, que foram muito marcantes não só para a causa da igualdade de género como para a humanidade. [Em Mulheres Livres, Maria de Belém retrata mulheres como Marie Curie, duas vezes Prémio Nobel, tinha nas suas veias a sede do conhecimento. A primeira mulher primeira-ministra do seu país, Benazir Bhutto, a primeira mulher primeira-ministra do seu país e uma pedra no charco do mundo islâmico, a bailarina e coreógrafa Isadora Duncan e a pintora Frida Kahlo, que viveram a sua arte em total liberdade, Eleanor Roosevelt, que imprimiu o seu nome na História universal, a sobrevivente do Holocausto Simone Veil, que marcou a política francesa, as escritoras vanguardistas Virginia Woolf e Simone de Beauvoir, que deixaram o seu marco na literatura, entre outras].

Foi a primeira ministra para a Igualdade, embora sem Ministério. A criação dessa área a nível de ministro foi ideia sua?

Não, a ideia resultou do programa eleitoral do Partido Socialista para as eleições de 1999. Nessa altura, a agenda da Igualdade estava a adquirir uma importância central em termos europeus e internacionais. A sua criação a nível de ministro foi um bocado ridicularizada. Creio que se em vez de uma mulher tivesse sido eleito um homem para ministro para a Igualdade, todos achariam bem. Mas como era uma coisa estruturante do ponto de vista civilizacional, houve quem pensasse que alguém me queria dar o lugar. Ora aqui tem uma situação em quem me senti discriminada por ser mulher.

E o que é que fez durante a curta experiência como Ministra para a Igualdade? Um ano (1999-2000) não é muito tempo para implementar medidas estruturantes...

Agarrei questões como a orientação sexual e a orientação religiosa diferentes e as desigualdades de rendimentos entre homens e mulheres, também muito fraturantes do ponto de vista democrático. Durante esse período ocorreu a avaliação da plataforma Pequim + 5, que é uma luta conjunta de mulheres e homens pela igualdade de género e pelos direitos humanos, criou-se o Prémio para a Igualdade nas Empresas, que promovia uma agenda de empresas familiarmente responsáveis… A primeira pessoa que chamou a atenção para a fragmentação social que as desigualdades provocam fui eu. Uma agenda que era considerada menor e que apenas se atinha às questões da desigualdade de género foi percecionada como transversal, como devendo ter uma atuação em mainstreaming, como se diz na Plataforma de Pequim [segunda a definição do Conselho da Europa, “O mainstreaming de género consiste na (re)organização, melhoria, desenvolvimento e avaliação dos processos de tomada de decisão, por forma a que a perspetiva da igualdade de género seja incorporada em todas as políticas, a todos os níveis e em todas as fases, pelos atores geralmente implicados na decisão política”].

Tem uma aparência frágil, mas diz quem a conhece que leva sempre a água ao seu moinho. É verdade?

Penso muito sobre as coisas, não chego às minhas posições de uma maneira precipitada. Quando estou convicta de uma coisa, gosto de argumentar e é por essa via que convenço as pessoas. Sou muito inflexível em relação aos princípios e aos valores.

Se for eleita Presidenta da República, como é que gostaria que os portugueses a recordassem no fim do mandato?

Aquilo que eu gostaria era que os portugueses sentissem a diferença no exercício das funções e pensassem que valeu a pena eleger uma mulher, esta mulher em particular. Porque eu vou ser eleita e vou ser muito firme na exigência de respeito por Portugal, pelos portugueses, pela nossa história, pela nossa capacidade de contribuir para a melhoria da agenda mundial. Nós fomos muito marcantes em períodos da história da humanidade: fomos o primeiro país a abolir a pena de morte e aquando do 25 de Abril absorvemos pacificamente um milhão de pessoas das ex-colónias. E hoje, apesar das dificuldades financeiras, estamos em segundo lugar a nível da EU na integração de emigrantes. São marcas distintivas que é preciso respeitar.

Quem é Belém Roseira?

Maria de Belém Roseira

Licenciou-se em Direito, em 1972, mas foi na política que fez carreira. Começou a trabalhar na antiga Direcção-Geral da Providência, como técnica jurista no então Ministério das Corporações e Previdência Social. Logo depois do 25 de Abril, trabalhou com Maria de Lurdes Pintasilgo, na altura secretária de Estado da Segurança Social. Antes de ser ministra para a Igualdade e ministra da Saúde em governos de António Guterres, foi administradora da Teledifusão de Macau, vice-provedora da Santa Casa da Misericórdia e administradora-delegada do Centro Regional de Lisboa do Instituto Português de Oncologia. Também foi presidente do Partido Socialista, quando era secretário-geral José Seguro. Nasceu no Porto, tem 66 anos e é candidata à Presidência da República.

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