“O feminismo é um caminho para a igualdade”
- Data de publicação 08 janeiro 2016
Tem os temas da População e Desenvolvimento como desafios globais e a defesa dos Direitos Humanos como prioritários. Agora e sempre. Porque a agenda da Presidência da República, diz a candidata apoiada pelo Bloco de Esquerda, não pode admitir desigualdades nem deve servir cegamente os interesses económicos. Acutilante nas críticas que faz ao atual Presidente da República, Marisa Matias defende que o papel do PR deve ser a antítese do que foi Cavaco Silva, que promoveu a entrada para a CPLP da Guiné Equatorial, um país ditatorial, com pena de morte e onde não se fala português.
Entrevista: Carla Amaro
Quarenta anos é o tempo que nos distancia de uma época em que as mulheres não podiam eleger os representantes políticos de outra em que temos duas mulheres candidatas à Presidência da República. Acha que já é tempo Portugal ter uma mulher no mais alto cargo público?
Acho que já é tempo de não ser notícia haver mulheres a candidatar-se, mulheres a exercerem cargos de representação e mulheres nos mais altos cargos do país. Mas, infelizmente, ainda temos de fazê-lo. As mulheres representam metade da sociedade e uma sociedade é tão mais justa quanto mais todos e todas puderem não apenas eleger, mas ser eleitos. É uma questão básica de justiça social.
Depois da candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo, em 1986, foram precisos trinta anos para que aparecessem mulheres candidatas à presidência da República 2016 . Porquê só agora?
A candidatura da maravilhosa Maria de Lourdes Pintasilgo ficou na história por ter sido uma pioneira, mas, como diz, passaram trinta anos. E agora tivemos quatro mulheres a apresentar-se e duas a irem a votos em 10 candidatos. Porquê só agora é exatamente a questão. Diz-se que a política não tem sexo, mas o género ainda determina muito as oportunidades ou a falta delas. Quero que um dia possamos conversar sem já termos de colocar estas questões.
Que análise faz da presença, cada vez maior, é certo, mas ainda insuficiente, das mulheres na política?
Ainda é pouco. Metade da sociedade não pode estar sistematicamente a ser representada pela outra metade. Não é o facto de ser homem ou mulher que determina a política. São as escolhas políticas, os programas a cada momento, a visão estratégica que se adota. Dito isto, há muito caminho ainda a fazer e não é apenas na política. Pense-se, por exemplo, no trabalho. Mulheres e homens a desempenhar as mesmas funções com as mesmas qualificações têm um salário absolutamente desigual, cerca de 20%. É como se um homem e uma mulher começassem a trabalhar no dia 1 de Janeiro e a mulher começasse a receber salário só em meados de Março, trabalhando dois meses sem ser paga.
Não acha que é também a falta de tempo que as afasta da esfera pública? As mulheres continuam mais sobrecarregadas do que os homens com a casa e os filhos.
Também, sim, mas não só. As mulheres ainda estão muito afastadas da política por questões culturais, por falta de igualdade de oportunidades, porque ainda recaem muitas das tarefas domésticas sobretudo nos ombros das mulheres, pelos horários das reuniões, por uma cultura contrária à igualdade e à promoção da igualdade. É preciso avançar mais em termos legislativos, mas é, sobretudo, preciso fiscalizar a aplicação da legislação existente. A sociedade portuguesa é ainda muito desigual, mas já não estamos em tempo de pedir desculpas ou licença para fazermos parte dos processos de decisão.
As mulheres têm um jeito diferente dos homens de exercer o poder?
As mulheres são diferentes dos homens. Mas as mulheres são também diferentes entre si e os homens diferentes entre si. Recuso naturalização das características das mulheres de serem mais sensíveis ou mais isto ou aquilo. Como disse, é uma questão de justiça social à igualdade na representação. E, no final de contas, o que vale é o programa com que nos apresentamos. Há mulheres e homens conservadores ou progressistas e isso é absolutamente normal.
Alguma vez, na vida profissional, se sentiu discriminada por ser mulher?
Várias vezes. Por exemplo, agora como candidata a Presidente da República houve todo um conjunto de reações ao primeiro outdoor da campanha - que dizia uma por todos - que traduziram o pior que há do sexismo e do machismo em Portugal. Dispenso reproduzi-las, porque não seriam adequadas.
Tendo em conta a experiência política como deputada europeia, considera que lá fora as mentalidades são mais abertas do que em Portugal na ‘aceitação’ de uma mulher em cargos de poder? Porquê?
Infelizmente, a desigualdade entre homens e mulheres é ainda muito transversal a todos os países europeus, mas é certo que há países onde tem consequências mais trágicas. Em Portugal, por exemplo, nos últimos dez anos foram assassinadas 400 mulheres vítimas de violência doméstica. Não devia haver uma sequer.
É feminista?
Sim e serei sempre. Defenderei a igualdade entre homens e mulheres sempre que a diferença põe em causa as oportunidades e a dignidade e defenderei a diferença sempre que a igualdade nos diminuir.
Acha que nos tempos que correm ainda faz sentido (ou faz cada vez mais?) ser feminista? Porquê?
Acho, pelas razões que já explicitei. O feminismo não é o contrário do machismo. É um caminho para a igualdade. Por todos os exemplos que dei, estamos longe de lá chegar.
“A Presidente da República tem uma capacidade única de dar voz a quem tem menos voz. A agenda para a igualdade e para os direitos humanos não tem agenda, é uma constante, é de todos os dias.”
O que falta fazer em Portugal para haver plena igualdade de género?
Várias coisas. Algumas já as referi. Referir-me-ei aqui apenas às funções de Presidente: fazer cumprir a Constituição; ser uma voz ativa na defesa da igualdade; dar voz aos que têm menos voz na sociedade.
As questões dos direitos humanos devem, então, fazer parte da agenda do presidente da república? Com que prioridade?
A Presidente da República tem uma capacidade única de dar voz a quem tem menos voz. A agenda para a igualdade e para os direitos humanos não tem agenda, é uma constante, é de todos os dias.
Como chefe supremo das Forças Armadas, acaso venha a ser PR, como entende o papel das mulheres nas Forças Armadas?
Como o dos homens, deve ser apenas voluntário. Com igualdade de oportunidades na hierarquia militar, claro.
E no contexto da Lusofonia, qual deve ser o papel da Presidência da República na defesa e promoção dos direitos humanos e do Desenvolvimento?
É uma das principais dimensões da atividade presidencial, como, aliás preveem os artigos 7º e 8º. A agenda da defesa e da promoção dos direitos humanos deve estar presente em todos os momentos, a das relações com os restantes países, incluindo os da Lusofonia, numa base de cooperação e tendo em vista a promoção da paz. A dimensão específica em relação aos países da lusofonia inclui ainda uma verdadeira cooperação no que diz respeito à língua e ao património comuns, mas sem paternalismos.
Muitos dos avanços de Portugal e do mundo se devem ao grande esforço e investimento no multilateralismo. Como vê atualmente o contributo de Portugal para as Nações Unidas e para a sustentabilidade do Desenvolvimento?
As Nações Unidas desempenham um papel fundamental nesta matéria, como a OMS e a OIT. O contributo de Portugal deve ser o de estar disponível para as boas soluções e ter um papel ativo na defesa dos valores das várias cartas internacionais dos direitos humanos, da saúde, do trabalho, das crianças.
Qual acha que deve ser o papel da Presidência da República no contexto dos países da CPLP?
Tivemos um Presidente - Cavaco Silva - que se prestou ao pior papel, ao promover a entrada de um país, a Guiné Equatorial, onde vigora um regime ditatorial, com pena de morte, onde a língua portuguesa nem sequer é falada, a troco de uma suposta injeção de capital no Banif. Entendo que o papel da Presidente da República deve ser a antítese do que foi Cavaco Silva. Deve ser de promoção de valores de paz e de liberdade. O mesmo pode ser dito, por exemplo, no que se refere ao recente caso de detenção de jovens ativistas angolanos. Uma Presidente deve sempre pôr na agenda os valores fundamentais.
Que visão tem para os temas de População e Desenvolvimento, em que os desafios e as desigualdades são crescentes?
Os temas de População e Desenvolvimento são desafios globais. Desenvolvimento baseado na cooperação entre iguais. As questões da população devem incluir, não apenas, os problemas associados ao envelhecimento nos países do norte, como as desigualdades gritantes que continuam a grassar dentro e fora da Europa. Os caminhos a trilhar são difíceis, mas há soluções. Soluções que têm de inverter uma lógica de dependência e superar os resquícios dos colonialismos que existiram na história do mundo, fugindo a um modelo que sonegou recursos e continua a promover desigualdades. No centro desta agenda tem de estar ainda uma ação global e persistente no que toca ao problema das alterações climáticas.
Quem é Marisa Matias? |
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39 anos, de Coimbra, licenciada em Economia e ativista dos direitos humanos, com uma participação ativa em movimentos cívicos ligados à cultura, ambiente e direitos sexuais. Tem um percurso profissional dividido entre a investigação e a política, tendo começado a trabalhar como secretária da Revista Crítica de Ciências Sociais, ligada ao Centro de Estudos Sociais (CES), onde viria a tornar-se investigadora, em 2004. Nesse mesmo ano, aderiu ao Bloco de Esquerda. Deu aulas no ensino profissional e em cursos de pós-graduação, nas áreas da sociologia e cidadania. Na política, assumiu vários cargos: foi duas vezes eleita deputada ao Parlamento Europeu (em 2009 e em 2014), duas vezes eleita para a Vice-Presidência do Partido da Esquerda Europeia (em 2010 e em 2013), foi Presidente da Delegação do Parlamento Europeu para as Relações com os países do Maxereque (no âmbito da qual tem sido uma voz ativa pela defesa dos direitos dos refugiados), Presidente do Intergrupo dos Bens e Serviços Públicos e Vice-Presidente da Comissão Especial sobre as Decisões Fiscais Antecipadas e Outras Medidas de Natureza ou Efeitos Similares (TAXE), constituída na sequência dos escândalos luxleaks e swissleaks. É candidata às Eleições Presidências 2016. |