“A mulher judia tem formação superior e é profissionalmente ativa”
- Data de publicação 27 janeiro 2016
Hoje, Dia Internacional da Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto, entrevistamos a investigadora e membro da Rede de Judiarias de Portugal, Marina Pignatelli, que nos faz um ‘apanhado’ histórico da comunidade judaica em Portugal. Leia e surpreenda-se com o que ainda não sabe sobre as mulheres e os homens judeus com quem se cruza todos os dias, em todo o lado.
Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: Tiago Lopes Fernández
Que razões levaram os primeiros judeus a instalarem-se em Portugal?
Terão vindo junto com os fenícios e romanos, aquando da destruição do primeiro templo de Jerusalém em 70 DC. Os vestígios mais antigos desta presença na Península Ibérica rondam o séc. III da Nossa era e estão em Silves
Vinham de que países?
De Israel. Formaram o ramo de judeus Sefarditas, entrando na Península Ibérica pelo Norte de África.
Que condições encontraram cá? Portugal era então um país acolhedor.
Ao longo dos séculos, com os visigodos, com os mouros e com os visigodos novamente, encontraram um clima de ambiguidade: ora de tolerância (D. Dinis, por exemplo, chamava-os de Judei Mei), ora de verdadeiro terror e perseguição. Portugal tanto acolhia como apertava as judiarias. A cristandade ou a Corôa, quando precisavam de fundos ou de um bode expiatório para alguma desgraça (por exemplo, para a peste negra ou para os terramotos) tinha ali uma gente em quem apontar as culpas.
E hoje? Os judeus continuam a procurar Portugal? Porquê?
Depois da abertura da antiga CEE (Comunidade Económica Europeia) e, especialmente hoje em dia, com o terrorismo, Portugal voltou a ser um paraíso procurado como ponto de fuga e de trânsito entre Israel e os EUA, justamente por ser um local tranquilo, sem perseguições.
E estão perfeitamente integrados cá ou encontram dificuldades?
São tão portugueses como você ou eu e sentem-no ao ponto de ficarem profundamente divididos quando há um jogo de futebol entre Portugal e Israel. Porém, é certo que alguns tiveram e sentem ainda alguma dificuldade de integração, sobretudo os refugiados dos programas de leste do início do século XX e da Segunda Guerra Mundial.
Como analisa as relações interculturais entre a comunidade judaica e os portugueses? O que é que os distingue, sobretudo do ponto de vista sócio- cultural?
O que os distingue é a identidade étnica, a sua identidade judaica, que inclui uma história de dispersão pelo mundo, uma ligação a uma terra mítica de origem, uma língua, uma religião.
Como é que consegue manter viva uma identidade específica, sem cair no isolacionismo?
Através da família e da instrução compulsiva. A taxa de analfabetismo entre os judeus é de 0%. Todos sentem intensamente que são judeus, embora o sejam cada um à sua maneira. É a família nuclear que orienta as crianças para uma vivência comunitária que, por sua vez, funciona como a grande incubadora dessa identidade. Desde o ano 70 DC (desde que ficaram sem referencial, sem o seu Templo), o isolamento é seu o mecanismo defensivo natural. Mas não é só dos judeus, é de qualquer pessoa ou grupo que se veja ameaçado de extinção.
Dentro da comunidade judaica, existem, como direi, comunidades paralelas Primeiro surgiram os sefardistas, mais tarde os askenazis e depois os marranos. Existem diferenças?
Os Sefarditas não chegaram cá, formaram-se cá e depois, com a expulsão de D. Manuel e 300 anos de Inquisição (de 1536 até 1821) é que formaram uma massa de emigracão com esse nome. Os askenazis começaram a vir em finais do séc. XIX, fugidos dos Programas que referi, e os marranos, conversos, tornadiços ou Cristãos Novos, foram os que sempre cá ficaram, apesar da expulsão.
Acha que em Portugal se tem a noção destas diferenças?
Nenhuma noção. A população portuguesa tem uma total ignorância do que é o judaísmo, sobre quem são os judeus.
“Cada país tem seguido as suas políticas consoantes as modas. Defendem os direitos humanos mas, depois, entram em contradições, desde a proibição de trajes distintivos étnicos na França à proibição da circuncisão ritual na Alemanha.”
No que ao multiculturalismo diz respeito, como encara as novas políticas adotadas, especialmente no contexto Europeu?
Na Europa, falamos mais de interculturalismo, porque se prende com uma visão do pluralismo cultural mais dinâmica em termos de interação e diálogo e interconexão ou interconhecimento das culturas em presença em determinado contexto. O multiculturalismo é um termo mais dos anglo-saxónicos e visa um pluralismo mais estático, olhando as sociedades como mosaicos com muitas culturas diferentes, mas ‘cada macaco no seu galho’. Acho que cada país tem seguido as suas políticas consoantes as modas. Defendem os direitos humanos mas, depois, entram em contradições, desde a proibição de trajes distintivos étnicos na França à proibição da circuncisão ritual na Alemanha.
Por falar em direitos humanos, nas últimas décadas, a condição social da mulher tem passado por muitas transformações, que se refletem nas diferentes posturas que as várias correntes do judaísmo contemporâneo têm tomado em relação a este assunto. Qual é atualmente a condição das mulheres e das meninas na comunidade judaica em Portugal?
No judaísmo, a família tem um lugar principal. Nela, o homem, normalmente, desempenha o papel instrumental, no sentido de precaver o sustento e instrução e zelo da religião do agregado, enquanto as mulheres têm o papel afetivo e educativo no lar. Na família tradicional ultraortodoxa, as mulheres têm um papel de complemento em relação ao homem no tempero do uso do coração com a razão. Em Portugal, o seguidismo das regras mais rígidas que se encontram no Levítico quanto a um tratamento secundarizante e, por vezes, humilhante das mulheres é nulo. [Levítico é o terceiro dos cinco primeiros livros bíblicos, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés].
Mas, hoje, a maioria dos judeus em Portugal é laica, não é?
É. Desde a Emancipação no século XIX que se levantou a já velha ‘Questão Judaica’ por causa do medo da assimilação (o que equivale a desaparecimento). Apesar de laicos, a maior parte mantém-se ligada à comunidade que lhes dá o reconhecimento e que em Portugal é de cariz ortodoxo (não ultra, mas ortodoxo). Por isso, embora sejam muito valorizadas pela questão da identidade que referi, as mulheres são olhadas como pares pelos homens. Não testemunhei nunca qualquer impressão de desprezo ou inferiorização das mulheres em nenhuma das gerações de judeus que entrevistei estes anos todos em Portugal.
É verdade que na Idade Media, sob o domínio cristão ou muçulmano, a condição da mulher era melhor entre os judeus do que entre os povos circundantes?
Em termos de estilo de vida, os judeus são um povo eminentemente citadino. Portanto, com ofícios nas cidades e com famílias instruídas. Não é que não houvesse abusos, como em todas as comunidades, mas uma vez que para a continuidade dessas comunidades as mulheres são fundamentais, porque são elas que dão a identidade judaica aos filhos, não há costume de os maridos judeus menosprezarem as esposas. Antes pelo contrário, os maridos vêem-nas como complementos da mesma equipa.
Quando dominava o patriarcado, que se fazia refletir na Halakhá (o Direito Judaico), a tendência das decisões rabínicas eram a de dignificar e proteger a condição feminina. Em que é que isto se traduzia, na prática?
Em tempos, em que se questionava se as mulheres teriam alma e sendo a mulher que transmite a identidade judaica aos filhos (porque diz também na Torah que os filhos das minhas filhas meus netos são, os filhos dos meus filhos serão ou não), era e é para os judeus fulcral preservar a unidade familiar nos mínimos da harmonia. O ambiente externo já era hostil o suficiente e que bastasse!
Como caraterizaria as mulheres judaicas que residem cá?
São mulheres graduadas, geralmente com formações avançadas ou superiores e profissionalmente ativas. No entanto, há de tudo, desde pessoas com muitas dificuldades de sustento, qualificando-se como remediadas, e outras que vivem com mais folga e qualidade de vida, mas não há em Portugal nenhum banqueiro judeu. Houve uma mulher muito famosa e emancipada para a sua época: a Dona Gracia Mendes (Nassi), que, aos 24 anos, ficou viúva e continuou com os negócios do marido sozinha. Era uma mulher extraordinária, avant la lettre. Hoje em dia, as judias em Porugal são como as católicas ou laicas. Enfim, são como as restantes portuguesas.
As mudanças do papel das mulheres nas sociedades ocidentais, que têm conseguido igualdade jurídica e uma substancial melhoria do seu status social e civil, têm influenciado de alguma forma as mulheres judaicas a clamarem por igual consideração dentro da sua comunidade?
Contam-se pelos dedos as que usam peruca, fazem os banhos rituais e se subalternizam aos maridos como costume ou princípio. As judias foram pioneiras em termos de emancipação feminina em algumas coisas. Lembro-me por exemplo da WIZO (Women' s Internacional Zionist Movement) ou das mulheres paraquedistas na Primeira Guerra Mundial integradas nas companhias da força aérea inglesa... No entanto, não se pode generalizar, porque pode haver uma rapariga que queira seguir os preceitos judaicos e deixar por exemplo o marido liderar a orientação espiritual dos filhos e dela própria em casa e depois querer ir para Israel para um refrescamento de tropa.
Em alguns países, por exemplo nos Estados Unidos e no Brasil (julgo), os movimentos não ortodoxos têm sido muito mais abertos à influência do feminismo. As mulheres têm ampliado a sua participação no ritual judaico em congregações reformistas, conservadoras e reconstrucionistas. Em Portugal, o que é que acontece?
Há também reformistas e conservadoras (reconstrucionistas não conheço ninguém em Portugal), mas esses são movimentos com pouca expressão cá. Há uma sinagoga, Masorti, que é mais aberta, não ortodoxa e que aceita anussim (marranos), serviços religiosos de ritual misto, feito sem o quórum exigido de dez homens e com mulheres a liderar o culto... Mas é uma exceção.
No ano 1000, a proibição do casamento poligâmico entre os judeus, que tinha sido a norma até então, foi uma decisão em prol da dignidade da mulher judia, renovando o direito judaico. Para além desta medida, implementada ainda nos tempos medievais, que outras medidas considera terem sido importantes para a consagração dos direitos das mulheres judias?
Creio que não houve especificidades para com as judias portuguesas comparativamente com as judias noutras comunidades. O movimento da Emancipação dos judeus no século XIX iniciou se em França e Alemanha e arrastou-se e por toda a Europa. Cá, fomos seguindo as modas europeias. Mas a chegada dos refugiados da Europa central na Segunda Grande Guerra, sim, teve impacto na modernização das mulheres portuguesas judias e católicas, uma vez que passaram a fazer coisas que antes não faziam: jogar ténis, ir aos cafés e ao cinema sozinhas, ir à praia de biquíni… Isto, nos anos de 1930 e 1940.
Faz ideia de quantos judeus existem em Portugal?
Cerca de três mil dizem-se judeus, segundos os sensos. Mas não aparecem na sinagoga, nem de perto nem de longe.
Quem é Marina Pignatelli? |
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Marina Pignatelli é sócia fundadora e integra os órgãos sociais da P&D Factor, é investigadora do CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia e membro da direcção da Associação Portuguesa de Antropologia e do conselho científico Rede de Judiarias de Portugal. Um conjunto de coincidências levaram-na a estudar a comunidade judaica: ter o Centro Israelita de Portugal a dividir casa com os seus avós, ter feito o intercâmbio escolar em adolescente com uma rapariga israelita que a recebeu em sua casa em Kibutz e ter família de pai e mãe beirã de gema, em localidades com marranos. |