Entrevista

. “Na política, as mulheres encontram muitas paredes de vidro.”

Helena PintoDiscriminação, desigualdade e violência de género têm um denominador comum: não se tomar a igualdade como uma prioridade. Para Helena Pinto, vereadora da Câmara Municipal de Torres Novas e ex-presidente da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, é preciso construir novos patamares de resposta. Em relação à violência doméstica, que considera ser “o maior problema de segurança” em Portugal, defende uma revisão do papel da Justiça e dos Tribunais, para combater o sentimento de impunidade de muitos agressores.

Texto: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Petinga

Nunca se fez tanto do ponto de vista legislativo e de formação de uma consciência social para a concretização da igualdade de género em todas as esferas da vida, no entanto, os preconceitos de menorização e subvalorização da mulher persistem. O que é que está a falhar?

É verdade que se tem feito muita coisa do ponto de vista legislativo para promover a igualdade de género nas suas muito diversas facetas. Mas também é preciso dizer que durante muitos e muitos anos não se fez nada e recuperar anos de discriminação não é tarefa fácil. Poder-se-á afirmar que a igualdade de género formalmente é aceite como uma prioridade. Mas falta fazer muito para a sua concretização e para que seja considerada uma prioridade. E quando falo em prioridade, falo na necessidade de se entender que a igualdade de género é transversal e pode ela mesma ser motor de muitas transformações que favorecem as mulheres, sem dúvida, mas também favorecem os homens. Só um exemplo: no mundo laboral, a igualdade de género tem que ser vista como parte integrante das transformações necessárias em áreas como o horário de trabalho, o valor do salário, o exercício da liberdade sindical, o exercício dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras e não como mais um item de um caderno reivindicativo.

As violências de género, em especial a violência doméstica, e a pouca representação das mulheres nos órgãos de tomada de decisão económica, aliadas à desigualdade salarial, mostram que a igualdade é ainda uma aspiração. Porque é tão difícil derrubar esses ‘muros’ que impedem o respeito pelos direitos humanos?

Porque esses muros têm alicerces muito fortes. E têm também outra característica, conseguem regenerar-se com facilidade. Derrubamos um muro, mas aparece outro. E também porque as alterações não são contínuas e não abrangem todas as mulheres.

Quando presidiu à UMAR, conheceu imensos casos de violência doméstica contra as mulheres em Portugal. Apesar de haver maior informação, mais meios e recursos disponíveis e um quadro normativo que se tem vindo a fortificar, a ‘trans-geracionalidade’ da violência é um fenómeno que se mantém. Consegue explicar porquê?

Conheci muitos casos de violência doméstica e continuo a conhecer. A violência contra as mulheres é uma matéria muitíssimo complicada. Existe mais informação e mais recursos, mas ainda são muito insuficientes. Eu valorizo cada passo, mesmo pequeno, que se dá nesta área, mas temos que ter a consciência que, perante a sua dimensão, a resposta tem que ser muito maior. Não tenho dúvidas em afirmar que um dos maiores problemas, se não mesmo o maior problema, de segurança no nosso país são as agressões às mulheres na esfera familiar. Veja-se o caso do número alarmante de homicídios e atente-se no número de homicídios que ocorreram em situações já sinalizadas. Esta situação não se compadece com uma campanha anual. É preciso uma estratégia, e recursos, obviamente.

O que é que ainda falta fazer? Mais campanhas de informação e prevenção? Um apoio complementar aquele que é dado pelas Casas de Abrigo?

É preciso fazer tudo o que já se faz. Campanhas, que na minha opinião deveriam ser mais e regulares, atendimento, aconselhamento, Casas de Abrigo. Tudo isto faz falta e tem o seu papel em cada caso concreto de cada mulher. Mas exige-se dar um salto de qualidade e construir novos patamares de resposta. Tenho a convicção de que tem que se discutir o papel da Justiça e dos Tribunais no combate à violência doméstica para combater o sentimento de impunidade que muitos agressores ainda têm. Por outro lado, também é preciso trabalhar na informação sobre o que é a violência sobre as mulheres, para contribuir para que exista uma forte consciência social sobre o que se passa. Essa consciência social e coletiva tem um papel fundamental na mudança e na segurança das mulheres.

A desigualdade é transversal, como tal, verifica-se também a política. Diversos instrumentos de direito internacional, já ratificados por Portugal, recomendam medidas visando o aumento da participação das mulheres aos diversos níveis do exercício do poder. Mas, na prática, a política ainda é feita maioritariamente por homens. O que se passa com as mulheres? Não querem assumir cargos de topo ou não podem porque estão assoberbadas com a casa e os filhos e porque existe discriminação de género?

As mulheres sempre estiveram na vida política. Gostam da política tanto como os homens. Mas, na política encontram muitas ‘paredes de vidro’, muitos preconceitos… Assumir um cargo político de representação e de decisão deve ser um ato voluntário, mas temos que verificar se todos ou todas estão em igualdade de circunstâncias para tomar essa decisão. E de facto não estão. Sei bem que se exige mais a uma mulher do que a um homem na política – relembremos os debates sobre a Lei da Paridade, onde entre duas palavras lá aparecia a palavra “mérito”. Nunca ouvi falar de mérito quando não se colocava a questão de haver mulheres na lista.

“Mas a participação das mulheres não se esgota aqui [na política], tem que chegar às diversas formas de participação – sindicatos, associações, movimentos sociais, onde também existem problemas de visibilidade e afirmação das mulheres.”

Que medidas considera fundamentais implementar do ponto de vista económico, social e de combate às atitudes e práticas discriminatórias, que permitam às mulheres portuguesas participar em igualdade no exercício do poder político?

A participação das mulheres no exercício do poder político, para mim, é uma questão de democracia. A participação de mais mulheres não muda as políticas, mas enriquece a democracia. A Lei da Paridade abrange os órgãos de representação política, não chega aos órgãos de governação e tem-se revelado positiva para favorecer a participação das mulheres, dando-lhes maior visibilidade. Se as mulheres ficarem na penumbra, tudo se torna mais difícil. Mas a participação das mulheres não se esgota aqui, tem que chegar às diversas formas de participação – sindicatos, associações, movimentos sociais, onde também existem problemas de visibilidade e afirmação das mulheres. A situação económica das mulheres e as suas tarefas domésticas têm muita importância para a sua capacidade de participação. Quem trabalha oito e mais horas, a que se somam as horas em transportes e as tarefas da casa e do cuidado da família a seu cargo, fica com muito pouca disponibilidade para participar seja no que for.

O problema não se confina aos cargos de poder e decisão. Já reparou certamente que os debates na imprensa são praticamente feitos por e com homens (exceto quando o tema é sobre mulheres). Isto não é sintomático do muito caminho que ainda há a percorrer? Ou será que não temos mulheres especialistas e habilitadas para comentar os mais diversos assuntos?

Claro que é sintomático. Existem mulheres para comentar tudo e mais alguma coisa. Mas os lugares estão todos ocupados e na maioria das situações por homens. Como em outras situações, as ‘paredes de vidro’ estão lá.

Por estas e por outras, os feminismos farão sempre sentido?

Os feminismos fazem todo o sentido, como fizeram no passado. Onde estaríamos hoje sem as lutas feministas?

Difícil falar de igualdade e direitos sem falar de saúde sexual e reprodutiva. Um dos obstáculos aos direitos e à saúde sexual e reprodutiva é a ideia pré-concebida de que se cingem à saúde materna, quando, na verdade, abrangem muito mais do que isso, não é?

A saúde sexual e reprodutiva não pode ser desligada dos direitos das mulheres. O direito da mulher a controlar a sua vida sexual e reprodutiva garante-lhe mais saúde. Se esse direito não lhe for reconhecido, a sua saúde é colocada em causa.

Acha que está conquistado ou é necessária uma “revolução paradigmática” que o afirme como “desbloqueadores” de mais saúde e mais direitos?

Os direitos são políticos. Tivemos a prova disso mesmo muito recentemente no nosso país. As alterações propostas à lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez que PSD e CDS aprovaram no último dia da anterior legislatura são paradigmáticas. E não me refiro à introdução de taxas moderadoras, com as quais não concordo. Refiro-me à alteração que tornava obrigatório o aconselhamento psicológico e social a todas as mulheres que decidissem abortar. A coberto de uma demagógica necessidade de informação, adulterava-se um direito das mulheres, fazendo depender da tutela de um aconselhamento obrigatório a legitimidade da sua decisão. No dia em que o Parlamento aprovou estas alterações, senti o tempo a andar para trás e o retrocesso da menorização das mulheres. Felizmente, durou pouco tempo, penso que nem sequer foi aplicada. Mas mesmo assim, ainda recebeu um veto do Presidente, na linha do que sempre fez em matérias de direitos das mulheres. Mas a Assembleia da República confirmou a sua decisão. Estamos no século XXI e isto aconteceu em Portugal. Julgo que devemos tirar lições.

Em todo o caso, a situação em Portugal é incomparável à de países onde o acesso a planeamento familiar, a cuidados de saúde e a hospitais é um luxo?

A emergência em matéria de saúde sexual e reprodutiva em muitos países em que o acesso à saúde e a hospitais é um luxo não se compara com a situação em Portugal, é certo, mas isso não nos deve fazer baixar o nível de exigência. Em matéria de acesso à saúde ainda estamos longe das condições necessárias, basta ir à urgência de um hospital ou verificar os milhares e milhares que não têm médico de família.

Como avalia a ação do Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento (GPPsPD)?

Tem sido útil. A existência de um espaço que reúne parlamentares que pensam, debatem e tentam colocar na agenda matérias sobre desenvolvimento, numa visão abrangente do planeta e não imediatista, é útil para o Parlamento, para os Grupos Parlamentares e para as organizações e movimentos que atuam no terreno. O contacto com parlamentares de outros países e o conhecimento concreto da situação, nomeadamente em países de língua portuguesa, pode e deve ser um importante contributo para a política externa e de cooperação. Mas não pode ficar pelas intenções e declarações, tem que influenciar as políticas concretas.

“Portugal tem andado à deriva em matéria de cooperação internacional para o desenvolvimento. Basta dizer que, na anterior legislatura, o Parlamento nunca discutiu a estratégia nacional para a cooperação.”

Não acha que faz falta a definição de uma agenda de desenvolvimento com prioridades bem elencadas e, sobretudo, baseadas na análise de boas práticas e de provas de eficácia? Pergunto, porque todos concordam que compensa investir nas mulheres e na sua saúde sexual e reprodutiva, mas tardam a assumir essa abordagem nos documentos estratégicos da cooperação internacional.

Portugal tem andado à deriva em matéria de cooperação internacional para o desenvolvimento. Os nossos índices são baixíssimos. Basta dizer que, na anterior legislatura, o Parlamento nunca discutiu a estratégia nacional para a cooperação. Espero que isso se altere e com urgência. E, claro, a existência de uma agenda é fundamental – para atuar no terreno e para o escrutínio democrático.

Quais são os maiores desafios ao desenvolvimento?

As prioridades estão definidas, existe consenso internacional sobre isso: erradicar a fome, educação, saúde, direitos. Agora, urge concretizar, sem hipocrisias. Não tenho dúvidas que enquanto os interesses da finança dominarem a geopolítica, será muito difícil de concretizar. Assim como a necessidade de ligar o combate à corrupção como parte integrante do desenvolvimento. O maior desafio é colocar as pessoas no centro das opções políticas. Todos/as temos um papel nisso. No caso concreto da Europa, estamos perante o desafio do século – os refugiados – e as respostas escasseiam e tardam, mostrando a impotência da União Europeia.

Quem é Helena Pinto?

Helena PintoHelena Maria Moura Pinto, 56 anos, ex-deputada pelo Bloco de Esquerda (entre 2005 e 2015), foi presidente da Federação das Associações Juvenis do Distrito de Lisboa, fundadora e membro da direcção da Associação Juvenil Olho Vivo, e presididente da UMAR - União Mulheres Alternativa e Resposta. Desde as últimas eleições autárquicas, em 2013, que é vereadora da Câmara Municipal de Torres Novas.

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