Entrevista

. "Se não fossem as ONG, os Direitos Humanos não estariam na agenda".

Catarina MarcelinoPara a atual responsável pela pasta da Cidadania e Igualdade, 24 horas não chegam para fazer tudo o que gostaria num dia. Mas, Catarina Marcelino acredita que quatro anos chegarão para fazer a diferença. E a diferença está em conseguir impor quotas de género nos conselhos de administração das empresas, reforçar as medidas de apoio e proteção às vítimas de violência doméstica e implementar um verdadeiro projeto de cidadania e educação nas escolas.

Texto: Carla Amaro / Fotografias: Tiago Lopes Fernandez

Como é que avalia o Trabalho das ONG e ONGD portuguesas que trabalham no domínio direitos humanos?

Acho que têm sido vitais, porque são organismos de pressão para questões que é preciso resolver. Se não fosse a intervenção das ONG, provavelmente grande parte dos assuntos de direitos humanos não estariam hoje na agenda política. Têm sido grandes parceiras do Estado e, nesse sentido, uma das coisas que quero fazer na área da igualdade de género e das migrações é tornar o conselho consultivo diferente do que é, de modo a que as organizações encontrem nele um verdadeiro apoio, deixe de ter um número limitado de participantes e defina claramente o que são organizações de direitos humanos, de cidadania, de mulheres...

Mas as organizações não conseguem trabalhar sem apoios financeiros. Algumas queixam-se da burocracia do sistema, que acusam de exigente e de visão única, tratando todas por igual, sem olhar à sua diversidade. Este governo vai empoderar as organizações que atuam na defesa dos direitos humanos?

No que se refere a áreas como a dos direitos humanos ou a da igualdade de género, os apoios não são tão fortes como noutras áreas sociais, nem do ponto de vista financeiro nem das regras para a atribuição desses apoios. Sucede, de facto, que as organizações funcionam com base nos apoios atribuídos aos projetos com que se candidatam e as organizações maiores, com grande capacidade técnica para desenvolver bons projetos, acabam por conseguir maiores apoios. Julgo que o caminho a fazer é no sentido das organizações mais pequenas serem também apoiadas.

O mesmo para as ONG que trabalham na área das migrações?

Nesses casos, estamos a tentar delinear uma estratégia de apoio, até em matéria de formação, às organizações menos capacitadas, para que possam ter mais competências e condições para apresentarem candidaturas, nomeadamente aos fundos comunitários.

De onde vem o dinheiro que é atribuído às organizações?

Depende do âmbito de ação de cada uma. As que trabalham nos domínios da violência doméstica e da igualdade de género são muito apoiadas pelos jogos sociais. A Segurança Social tem tido um papel muito importante em matéria de equipamentos sociais, como no caso dos centros de acolhimento e de casas de abrigo. O Alto Comissariado para as Migrações (ACM) tem fundos destinados a apoiar as pequenas organizações que atuam na área das migrações (este ano as verbas duplicaram, de 100 mil euros para 200 mil euros).

“Enquanto tivermos uma sociedade que vê as mulheres como reprodutoras e os homens como produtores, dificilmente conseguiremos alterar alguma coisa.”

Discriminação e desigualdade com base no género é uma realidade ainda muito marcante em Portugal. Que soluções propõe para que no trabalho e no emprego, por exemplo, haja efetiva igualdade entre homens e mulheres?

Trabalho igual, salário igual é uma questão antiga (a primeira referência data da década de 60) e não é especificamente nacional. O que nos propomos a fazer é levar este tema à concertação social (CS) quando o Código do Trabalho aí for debatido. Agora, há uma coisa que devemos ter consciência: a desigualdade salarial é uma questão que se prende muito com o modelo de sociedade em que vivemos. Enquanto tivermos uma sociedade que vê as mulheres como reprodutoras e os homens como produtores, dificilmente conseguiremos alterar alguma coisa.

Isso estamos fartos de saber. Faltam é medidas eficazes para acabar com isso.

Neste momento, em cima da mesa, temos uma proposta, que também vai ser discutida em CS, que é a introdução de quotas de género nos conselhos de administração das empresas cotadas em bolsa e nas empresas públicas. Se tivermos homens e mulheres a chegarem ao topo, em situação de igualdade, isso forçará a reorganização de toda a cadeia que está abaixo, no sentido de conseguir encontrar pessoas com formação adequada para chegarem ao topo. É uma medida que, esperamos, tenha efeito.

Quanto tempo vai demorar a implementar as quotas?

Até 2018, no máximo 2020. Os conselhos de administração têm um período, geralmente, de três anos, o que permite que no próximo ano ou no seguinte as coisas mudem.

Há poucos países na Europa (apenas seis) com legislação nesta matéria…

Neste momento, na Europa, impõem quotas de género nas empresas a Noruega, Espanha, Finlândia, França, Islândia e Alemanha. E queremos que Portugal seja um deles.

E o anúncio será para breve?

Não sei precisar, mas posso dizer-lhe que o projeto já está numa fase bastante avançada, pelo que a apresentação pública será muito em breve. O primeiro passo é levá-lo à concertação social (CS), porque acreditamos que a mudança social não se faz só por decreto. A lei influência a sociedade, mas a sociedade tem que aceitar e incorporar a mudança. Ao nível da conciliação familiar e profissional, a questão também tem que ser levada à CS, porque são essas questões que depois influenciam ou determinam a diminuição da desigualdade salarial. Temos de trabalhar com as empresas dos setores onde o problema é mais grave e temos que trabalhar na contratação coletiva para que tenha mais mulheres entre os negociadores (e aqui os sindicatos têm um papel importante).

O que é que impede as mulheres de chegarem aos lugares de topo e de decisão, para ser preciso impor quotas?

Julgo que são, fundamentalmente, duas questões. Uma tem a ver com a maternidade, que é muito expressiva especialmente nas mulheres entre os 30 e os 40 anos e isso, durante o processo de evolução dentro das empresas, acaba por interferir na ocupação de lugares de topo. Nessa faixa etária, as mulheres dedicam menos tempo à vida na empresa e mais tempo à família e, portanto, não adquirem as chamadas “experiências críticas” (ou seja, determinado tipo de funções), que são muito valorizadas no meio empresarial para se chegar ao topo.

Não será também porque, do ponto de vista das empresas, as mulheres tendem a faltar mais ao trabalho? São elas que geralmente ficam em casa com os filhos quando estão dentes, são elas que engravidam…

Também. E por isso falei há pouco da ideia que persiste de mulheres reprodutoras e homens produtores, mas agora não estou a referir-me ao acesso ao trabalho, estou a falar de lugares de topo nas empresas.

Que para serem ocupados por mulheres, elas têm de ser escolhidas. E nessa escolha estrarão esses critérios, ou acha não?

Acho que não, porque na idade em que as mulheres são escolhidas para esses lugares, a maioria delas já passou essa fase dos filhos pequenos e da assistência à família. O problema é que durante o tempo em que estão a viver essa fase, se não conseguirem ter as tais “experiências críticas” – pelas razões já apontadas -, a entidade patronal pode achar que elas não têm capacidade para ocupar um lugar de topo. Ou seja, há aqui um papel de valorização da vida profissional e da vida familiar que tem de ser posta em igualdade de circunstâncias e não é (os homens, valorizam mais a vida profissional porque, em termos sociais, o sucesso profissional tem mais valor).

E qual é o outro fator que ‘trava’ a progressão das mulheres nas empresas? Disse que são dois…

O outro é a escolha. A tendência é sempre optar por aquilo a que na psicologia social e empresarial se chama “minimi” (uma pessoa que é parecida comigo). Ou seja, tendemos a procurar ou dar oportunidades a alguém que se parece connosco, com a nossa forma de estar, pensar e agir. Ora, se a escolha cabe a um homem, é ‘natural’ que escolha um homem para o cargo de poder. É esta dinâmica que tem de ser alterada e as quotas de género vão forçar a mudança. Estou convicta de que, tal como aconteceu na política com a Lei da Paridade (na Assembleia da República já chegou aos 34%), na vida empresarial as quotas também terão efeito.

Estamos a falar de que percentagem?

De 33% . Também há uma diretiva comunitária que faz a mesma imposição, que é a diretiva das quotas de género para as empresas cotadas - Portugal retirou a reserva que tinha, mas ainda há onze países que a mantém, pelo que a diretiva está paralisada. O modelo de quotas que vamos apresentar é muito semelhante àquilo que é a proposta da diretiva. Esta propõe 40% de mulheres em cargos não executivos e nós propomos 33% de mulheres nos cargos de administração e de direção das empresas cotadas em bolsa e públicas.

“O modelo de quotas que vamos apresentar é muito semelhante àquilo que é a proposta da diretiva. Esta propõe 40% de mulheres em cargos não executivos e nós propomos 33% de mulheres nos cargos de administração e de direção das empresas cotadas em bolsa e públicas.”

Esteve envolvida na proposta de lei para alterar o Código do Trabalho, para tornar clara a “identidade de género” no direito à igualdade de acesso ao emprego e ao trabalho. A realidade atual está de acordo com as suas expetativas quando pensou nesta proposta de lei?

As coisas têm o seu caminho. As questões relacionadas com a identidade de género no País tiveram um salto de efetivação extraordinário nos últimos anos. Veja por exemplo a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o cartão do cidadão, que possibilita a pessoa ter um nome e ter outra identidade (por exemplo, no caso das pessoas que mudaram de sexo).

Mas a ILGA quer que se dê um passo em frente, para integrar também a questão dos transgéneros…

Sim, as coisas estão sempre a evoluir e estaremos sempre disponíveis para responder às necessidades das cidadãs e os cidadãos na sua diversidade. Agora, no mercado de trabalho, sabemos que é uma questão muito difícil, mas há que começar por algum lado e a legislação é sempre o primeiro passo. Obviamente que não estou contente com o resultado, é necessário ir mais longe, mas, verdade seja dita, ao contrário da desigualdade salarial, sobre a qual temos dados, nesta matéria existe ainda pouca informação.

Também foi co-autora para a criação do Dia Nacional Contra a Homofobia e a Transfobia. Não acha que a luta pelos seus direitos das pessoas LGBT já conseguiu mais conquistas, apesar de mais recente, do que a luta pela igualdade de género?

Julgo que não se pode comparar, porque quando estamos a falar de LGBT estamos a falar de mulheres e de homens. As pessoas LGBT têm um conjunto de conquistas sociais alicerçadas nas questões da igualdade de género enquanto homens e enquanto mulheres. Acho que se fizeram conquistas importantes, no entanto, as pessoas homossexuais, transgénero e transsexuais, enfim, as pessoas que são diferentes do ponto de vista social, são muito vítimas, ainda, de discriminação. Há caminho a percorrer, que passa por melhor a legislação e por campanhas de sensibilização e de educação para a cidadania.

Tendo em conta que a violência doméstica é fruto da desigualdade de género, é imprescindível investir na educação, na prevenção primária e educar rapazes e raparigas para os afetos, para a igualdade e para uma vivência da intimidade livre de violência. Tem prevista alguma intervenção neste sentido?

Costumo dizer que se conseguir desenvolver e implementar um projeto na educação, consolidado e gerador de mudança, sairei deste cargo com a sensação de missão cumprida. Estou a trabalhar com o senhor secretário de Estado da Educação num projeto para a educação nas escolas, que vai ser construído com a seguinte perspetiva: no fim de cada ciclo letivo (4º ano, 6º ano, 9ºano e 12º ano), os alunos e as alunas, além de um conjunto de competências adquiridas, terão também de ter um conjunto de competências pessoais e sociais adquiridas para poderem transitar de ciclo.

O que está a aumentar e de uma forma preocupante é a violência no namoro…

Está e é muito preocupante que os jovens não considerem determinado tipo de atos como atos de violência. Por exemplo, não reconhecem que forçar relações sexuais, dar um empurrão, insultar, etc., são atos de violência, e, como tal, consideram-nos normais numa relação. Estou convicta de que podemos reverter esta realidade através, como disse, de um projeto de educação para a cidadania, em que esses temas são trabalhados nas escolas. E é urgente fazer essa intervenção.

Como é que isso se faz?

Não é fácil. Já se experimentou muitas abordagens em ambiente escolar, mas este projeto tem uma vantagem à partida: definidas as competências, as escolas serão obrigadas a definirem estratégias para atingirem o objetivo. Não é facultativo, é obrigatório.

E que conteúdos serão trabalhados nessa ‘disciplina’.

Não é uma disciplina. A ideia é que algumas questões possam ser trabalhadas no âmbito das disciplinas e outras trabalhadas em projetos que envolvam as escola e a comunidade. As questões de direitos humanos, da igualdade de género e cidadania serão obviamente discutidas, porque estamos convictos que a violência no namoro e a violência doméstica estão muito relacionadas com a desigualdade de género. Esses fenómenos têm que ser prevenidos e a prevenção faz-se nas escolas. E é óbvio que para isso temos que dar formação aos professores e envolver as ONG.

Anunciou recentemente que quer “aprofundar a parceria entre o Governo e as ONG», para combater a violência doméstica e sexual. Como pretende fazê-lo?

[Aponta para um mapa na parede, com pontos assinalados a vermelho que representam núcleos de apoio às vitimas] Como pode verificar, há uma concentração significativa de núcleos de apoio no litoral, sobretudo em Lisboa e Porto, e uma escassez enorme no interior. O que pretendemos é, ao nível do conselho consultivo da CIG [Comissão para a Cidadania e a igualdade de género], ter um grupo de trabalho específico na área da violência doméstica, que irá reunir trimestralmente, para ir avaliando a eficácia da legislação e das políticas nesta matéria. Ao nível das respostas, queremos criar parcerias com as organizações que estão no terreno e com as câmaras municipais, de modo a que, quando os fundo comunitários acabam ou estão em transição, as respostas se mantenham. Queremos também ter planos municipais e inter-municipais com referencial, que abranjam os territórios que vão ser servidos por essas respostas (os atuais planos municipais na área da igualdade são muito confusos, não têm um referencial de ação).

E na prática isso vai acontecer quando?

No final de Março teremos os primeiros dois protocolos assinados com ONG’s e alguns municípios no litoral alentejano, onde o projeto arrancará e depois estender-se-á a todo o país.

Uma das medidas de combate à violência doméstica não devia ser, por exemplo, equilibrar o sistema de proteção à vítima e o sistema de penalização do agressor, que é, digamos, pouco amigável para quem sofre ou sofreu agressões?

Em dez anos, entre 2004 e 2014, houve 400 mulheres mortas pelos maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados [dados do Observatório de Mulheres Assassinadas, da UMAR]. É um valor altíssimo e julgo que também é reflexo de dois fatores: as mulheres apresentam mais queixas e tomam mais a iniciativa de sair da relação. Temos que olhar para esta nova realidade e estou convicta de que encontraremos uma solução mais justa para a vítima, que torne a penalização do agressor mais eficaz e que obrigue ao seu afastamento a partir do momento em que é apresentada a queixa.

Mas o que acontece muitas vezes é que são as mulheres e os filhos que saem de casa, e de mãos vazias…

É verdade. As mulheres são as vítimas e são elas que têm de sair de casa. Uma das coisas que vamos fazer é um estudo de avaliação das políticas públicas nos últimos 15 anos. Desde que a violência doméstica se tornou crime público, em 2000, as políticas nestas áreas evoluíram imenso, é um facto, mas, chegou o momento de avaliar o que foi bem feito e o que foi mal feito e melhorar.

A resposta tem assentado muito nas Casas de Abrigo, que, embora importantes para situações de emergência, não são a solução…

Pois não. De resto, não podemos esquecer que uma Casa de Abrigo é uma instituição. Ou seja, as mulheres agredidas saem de suas casas e são institucionalizadas. E estando a institucionalizá-las, de alguma forma estamos a revitimizá-las. As casas de abrigo têm que existir, mas para casos que não têm outra solução. Temos que encontrar outras soluções. A Justiça tem que ser mais célere, para que se possa decretar a medida de afastamento do agressor e a sua saída de casa.

Há dois anos consecutivos que o Estado atribui uma verba, para a aquisição de bens essenciais, às mulheres que se preparam para sair das Casas de Abrigo e refazer as suas vidas. Este governo vai continuar a dar este apoio?

Vai. Aliás, todas as medidas que a minha antecessora criou no âmbito da violência doméstica é para manter.

Estão previstos outros apoios complementares?

Tem havido um investimento nas respostas de emergência, que são espaços onde as pessoas podem estar durante um período de tempo curto (três, dez, quinze dias) e onde têm o acompanhamento de técnicos para verem qual é a melhor solução para cada caso. Em muitos casos, um espaço destes evita a ida para uma Casa de Abrigo.

A diferença entre o número de denúncias de violência doméstica e o número de agressores condenados, a cumprir pena de prisão e a usar pulseira eletrónica é gritante. Considera criar mecanismos para reforçar o sistema de proteção da vítima?

Neste momento há em Portugal 600 vítimas com teleassistência e 400 agressores com pulseiras eletrónicas. Existe um grande problema, que é o ónus da prova, justamente por ser um crime cometido num ambiente privado, sem testemunhas. Mas há uma coisa que podemos melhorar para facilitar a recolha da prova e, por isso, vamos tentar uma maior articulação com o Instituto de Medicina Legal. Acho que esse caminho vai ser percorrido com sucesso.

A Mutilação Genital Feminina é mais uma violência de género e há sinais de que ocorrerá também em Portugal, nas comunidades praticantes da excisão. Disse recentemente, no 1º Encontro Regional para a Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina, que vai lançar uma campanha de informação nos aeroportos. Consiste em quê?

Desde agosto do ano passado, a MGF passou a ser destacada no Código Penal (CP) com um artigo próprio. E acho que essa nova formulação jurídica tem que nos dar espaço para outro tipo de intervenção, que até hoje não foi feita, que é trabalhar com o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e com os aeroportos. Até porque, e segundo o CP, a MGF é crime público se for praticada em Portugal, mas também o é quando praticada fora de Portugal.

E daí a ideia da campanha nos aeroportos…

A ideia é fazer o mesmo que foi feito no âmbito do primeiro Plano de Ação de combate à MGF, em 2010. Vamos distribuir folhetos com informação sobre os riscos para a saúde e sobre as penalizações legais. A campanha será ativada em épocas mais propícias a viagens, como a Páscoa e as férias de Verão. Com o SEF, temos de encontrar procedimentos de controlo (não é, obviamente, observar as meninas, é, por exemplo, fazer perguntas no momento da entrada em Portugal, para averiguar se foi praticado o crime; o SEF tem poder para isso).

E não são necessárias ações de sensibilização junto das comunidades residentes em Portugal?

São, claro. A MGF está circunscrita às comunidades praticantes, o que tem a vantagem de podermos direcionar esforços. Existe um conjunto de projetos na Amadora, desenvolvidos nas próprias comunidades por algumas ONG que trabalham nesse domínio (por exemplo, a AJPAS). Aliás, esse encontro que referiu nasceu exatamente de uma iniciativa da Câmara Municipal, da AJPAS, da P&D Factor e de outras organizações… Deixe-me dizer, em relação à P&D Factor, que foi a sua diretora executiva, Alice Frade, que começou por falar deste problema há muitos anos e, portanto, é também graças a ela que a MGF está hoje na agenda.

“Temos de pensar se não devíamos começar a trabalhar esta matéria [casamentos infantis e forçados] também na perspetiva do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), o qual devia ter uma intervenção mais especializada nas áreas que se cruzam com a igualdade de género”

E quanto a campanhas contra os casamentos infantis e forçados? Nunca ouvi falar de nenhuma. É por ser um tema delicado? Dá a sensação que a comunidade cigana é um mundo à parte, onde não convém interferir…

Nós temos trabalhado muito essa questão, que é multicultural e tem a ver com o género, na ótica da Comissão para a igualdade de género. Mas acho que temos de pensar se não devíamos começar a trabalhar esta matéria também na perspetiva do Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Eu tenho a feliz coincidência de ter à minha responsabilidade as duas áreas - a igualdade e as minorias e migrações – e tenho refletido se, de fato, não devíamos também, dentro do ACM, ter uma intervenção mais especializada nas áreas que se cruzam com a igualdade de género.

Sim, até porque quem se relaciona mais com as comunidades é o ACM.

Justamente. Acho que as questões dos casamentos infantis e forçados deviam ser mais focados no âmbito da ação do ACM, porque são questões que têm a ver com diferenças culturais (obviamente, não podermos escudar-nos nas questões culturais para admitir a prática de crimes). E não nos podemos cingir à comunidade cigana, onde tem havido algum trabalho desenvolvido por associações locais, temos também que estender as ações de sensibilização às comunidades hindus, por exemplo, onde os casamentos ‘arranjados’ são uma prática corrente.

Por falar em migrações, uma questão incontornável é a crise de refugiados. Portugal já recebeu alguns. Que medidas de inclusão estão a ser implementadas?

Temos uma quota nacional de proposta de acolhimento de quase cinco mil pessoas, mas, até agora, chegaram ao País cerca de 30 pessoas. Há um grupo de trabalho a funcionar, coordenado pelo SEF, e os procedimentos têm sido os seguintes: quando as pessoas chegam ao aeroporto, são encaminhadas para instituições de todo o país com capacidade de alojamento e que se ofereceram para os acolher. Uma vez instaladas, começam a ter formação em língua portuguesa, que é uma parte importante do plano de integração, o qual passa também pela procura de emprego (alguns já estão a trabalhar) e pelo acesso a cuidados de saúde. As crianças são imediatamente integradas na escola.

Quais são os principais desafios atuais da Cooperação Portuguesa no domínio dos direitos humanos?

Temos como prioridade a cooperação no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e as questões da cidadania estão dentro da agenda. Aquilo que quero assumir em termos de compromissos na área da cooperação é o seguinte: na conferência de responsáveis políticos na área da igualdade da CPLP, que vai realiza-se em maio, gostaria de conseguir fazer uma melhor divulgação nesses países das boas práticas da política de igualdade de género em Portugal. E, para isso, vou participar também na reunião do Estatuto das Mulheres, em Nova Iorque, de 14 a 16 de março, e estou a marcar reuniões bilaterais com os países da CPLP para identificar falhas e ver que caminhos podemos fazer em conjunto.

Quem é Catarina Marcelino?

Catarina MarcelinoCatarina Marcelino, 45 anos, tem uma licenciatura em Antropologia e uma pós-graduação em Género, Poder e Violência. Antes de assumir a secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, foi adjunta do secretário de Estado da Segurança Social (2005-2009), presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (2009) e deputada à Assembleia da República (2009-2011, 2013-2015). Na última legislatura integrou a Comissão de Trabalho e Segurança Social, a Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias e a Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa.

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