Entrevista

. “Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos universais e inegáveis”

Susana C. GasparA pretexto da publicação do relatório anual 2015/16 da Amnistia Internacional, Susana Gaspar, presidente da direção da AI Portugal, faz um diagnóstico do estado geral dos direitos humanos, incluindo em Portugal, retratando os principais obstáculos e desafios à proteção dos DH, desde a discriminação racial à violência de género, passando pela tortura e pelo acesso ao planeamento familiar e à saúde sexual e reprodutiva, sem esquecer os casamentos precoces e forçados e a Mutilação Genital Feminina.

Entrevista: Carla Amaro / Fotografia: © Ricardo Rodrigues da Silva / Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional (AI) deixou um importante alerta no lançamento do Relatório Anual 2015/16, onde é feita a avaliação do estado de direitos humanos no mundo. Disse que o próprio sistema de proteção internacional dos direitos humanos (DH) precisa de ser protegido. Porquê?

Sem dúvida que o sistema de proteção internacional se encontra em grande estado de fragilidade. Em 2015, assistimos a dezenas de governos a minarem as instituições e as leis destinadas a proteger os direitos humanos: no Reino Unido, iniciou-se um diálogo sobre a possível revogação de legislação específica de proteção dos direitos humanos, como o Human Rights Act. O comércio irresponsável de armas continua a alimentar graves violações dos direitos humanos, em claro desrespeito pelo Tratado de Comércio de Armas. Vários países da África subsariana podem vir a abandonar o Tribunal Penal Internacional. Assistimos também a países como a Arábia Saudita a deliberadamente bloquearem uma investigação da ONU sobre “crimes de guerra” no Iémen. Na China, dezenas de advogados continuam a ser presos e sob ameaça. O Gabinete do Alto Comissariado para os direitos humanos encontra-se em extrema necessidade de financiamento. Alguns países demonstram desdém pelas recomendações da ONU, incluindo Angola e o México. Se os mecanismos de proteção dos direitos humanos não são respeitados pelos governos, quem os irá respeitar?

Neste relatório, a AI apela para a renovação de um compromisso, justamente no sentido de tornar o sistema de proteção dos direitos humanos mais adequado à sua missão, mas, para isso, é necessário um esforço adicional por parte de cada nação. A que tipo de esforços a AI se refere, concretamente?

É necessário parar o ataque aos direitos humanos e aos sistemas que os protegem. Cada nação deve apoiar política e financeiramente estes sistemas que garantem a defesa do direito internacional e que existem para proteger os direitos de todas as pessoas, sobretudo ao nível dos direitos humanos (também no contexto internacional), refugiados e leis humanitárias que devem garantir a proteção dos mais vulneráveis. Se falharmos em proteger os DH, veremos as sementes de futuras crises a dar frutos muito em breve. Cada nação deveria comprometer-se profundamente com o respeito de todos os direitos e eliminar das suas narrativas a linguagem anti direitos humanos, pois, infelizmente, temos vindo a assistir a discursos de xenofobia que contribuem para as divisões na sociedade, promovendo o medo e a ignorância. Desconsiderar violações aos direitos humanos, como tem acontecido, já não só “às portas da Europa”, mas também dentro das suas fronteiras, é piorar os problemas.

Mas de que maneira é que os países podem proteger o seu sistema de proteção de DH, se, em muitos casos, são os seus próprios sistemas legislativos que atentam contra os direitos humanos?

É também para isso que existe a sociedade civil e é por isso que é tão importante o trabalho das organizações não-governamentais, ao exercerem pressão junto dos governos e ao exigirem que os mesmos respeitem os direitos humanos. Se o sistema legislativo de um país atenta contra os direitos humanos, esse governo terá de ser responsabilizado e não se escapará, por certo, a surgir no relatório anual da AI. A ONU tem um papel extremamente importante a desempenhar e é também por isso que, neste momento, necessita de ser revigorada.

Como assim?

Todos os estados membros das Nações Unidas e o Conselho de Segurança têm que mostrar um novo pensamento, com um verdadeiro sentido do global. A AI atenta para que o processo de eleição do novo secretário-geral das Nações Unidas seja democrático e transparente, procurando assegurar que os candidatos sejam conhecedores dos desafios aos direitos humanos dos dias de hoje.

Entre as várias ameaças aos DH reportadas, a AI Portugal destacaria alguma?

A principal mensagem do relatório anual 2015/2016 é a de que muitos governos têm violado a lei internacional de forma vergonhosa, conforme já mencionei anteriormente. O secretário-geral da AI, Salil Shetty, alertava que “não são só os nossos direitos que estão sob ameaça, mas também as leis e o sistema que os protegem”. Nessa medida, a mensagem da AI torna-se muito mais abrangente. Naturalmente que reportamos várias ameaças aos direitos humanos, sobretudo ao nível dos conflitos armados e, por consequência, do aumento de refugiados em todo o mundo. Apresentamos também números assustadores como, por exemplo, o de 122 países que torturam ou sujeitaram pessoas a outros maus-tratos. Em pelo menos 19 países foram cometidos crimes de guerra ou outras violações das “leis da guerra” por governos e por grupos armados e em, pelo menos, 29 países, refugiados foram ilegalmente forçados a regressarem aos países de onde partiram e onde ainda correm perigo. Alertámos também para a tendência crescente de ataque aos defensores dos direitos humanos, incluindo ativistas, advogados e outras pessoas que trabalham nas suas comunidades e que correm perigo com a falta de liberdade de expressão e de reunião, em diversos países.

“Na comunidade de Mkhondo, na África do Sul, quase metade das grávidas está infetada com VIH e, por escassearem as consultas pré-natais (devido à falta de clínicas e hospitais e de transportes para as que existem), acabam por transmitir o vírus ao bebé.”

Na sua opinião, quais são, atualmente, os principais desafios e dificuldades à defesa dos DH, na Europa e no Mundo, relativamente à saúde sexual e reprodutiva? Os índices de mortalidade materna são elevados, o acesso ao planeamento familiar e contraceção continua a ter muitos obstáculos em muitos países, a gravidez e os partos assistidos carecem de recursos em muitos países, nomeadamente em África, com os quais Portugal tem cooperação…

O principal desafio é justamente vencer as dificuldades que mencionou, como os altos índices de mortalidade materna - por exemplo na Serra Leoa e Burkina Faso, dois dos países trabalhados na campanha ‘Exija Dignidade’ em 2009 - e as complicações na gravidez, que são as principais causas de morte de raparigas entre os 15 e os 19 anos nos países em desenvolvimento.

Relativamente às dificuldades de acesso a consultas pré-natais e tratamento, na comunidade de Mkhondo, na África do Sul, quase metade das grávidas está infetada com VIH e, por escassearem as consultas pré-natais (devido à falta de clínicas e hospitais e de transportes para as que existem), acabam por transmitir o vírus ao bebé. O aumento da prevalência do VIH é outra grande dificuldade, com quase 3000 jovens a contraírem VIH diariamente, perfazendo 41% de novas infeções na faixa etária entre os 15 e os 49 anos. Os obstáculos no acesso ao planeamento familiar e contraceção ainda são imensos em alguns países, como o Burkina Faso, e a informação sobre educação sexual e reprodutiva é muito escassa - muitos dos 1,8 mil milhões de jovens entre os 10 e os 24 anos têm acesso restrito a informação, educação sexual e reprodutiva e serviços de saúde. Em quatro países da África subsariana, mais de 60% dos adolescentes desconhecem quaisquer tipos de contraceção. Acabar com a violência sexual é outro grande desafio - 150 milhões de raparigas com menos de 18 experienciaram algum tipo de violência sexual, sendo que 50% das agressões sexuais são cometidas contra jovens mulheres com menos de 16 anos.

E no que concerne à interrupção da gravidez? Segundo a OMS, ocorrem 22 milhões de abortos ilegais todos os anos, que levam à morte de 47 mil mulheres anualmente e provocam danos na saúde a cerca de 5 milhões…

A AI tem, neste momento, uma campanha pela descriminalização do aborto na Irlanda, onde o aborto só é legal em caso de risco de vida para a mulher, intenção real de suicídio e emergência médica. No entanto, mesmo nestes casos o aborto é, por vezes, negado. Savita Halappanavar foi uma das vítimas desta indefinição, tendo morrido de septicemia por os médicos se terem negado a realizar um aborto. Este medo é explicado pela penalização de 14 anos de prisão a quem quer que realize ou ajude a realizar um aborto. Também a América Latina tem uma legislação restrita e punitiva. Em 2015, no Paraguai, uma menina de 10 anos foi obrigada a levar a gravidez (resultado da violação do seu padrasto) até ao final porque o governo fez valer a legislação e não abriu exceção para este caso. Em El Salvador, até mesmo as mulheres que sofrem de abortos espontâneos são encarceradas, como foi o caso de Carmen Guadalupe Vásquez Aldana que, com 18 anos, foi condenada a 30 anos de prisão porque sofreu um aborto espontâneo. Entre 2000 e 2011, 129 mulheres foram presas neste país por crimes relacionados com a interrupção da gravidez.

“Entre 2000 e 2011, 129 mulheres foram presas em El Salvador por crimes relacionados com a interrupção da gravidez.”

Os direitos dos LGBTI ainda têm um longo caminho a percorrer em muitos países, onde a homossexualidade é crime. Imagino que seja também um dos grandes desafios da AI…

Sem dúvida. Dezenas de países em África, como a Nigéria e o Uganda, criminalizam a homossexualidade. Na África do Sul, várias ativistas lésbicas, como Noxolo Nogwaza, foram mortas pelo seu ativismo. Mas também na Europa subsistem crimes de ódio contra pessoas LGBTI, como foi o caso de Costas e do seu companheiro, na Grécia. No início do ano, apoiámos o caso de Elena Klimova, uma ativista russa que fundou uma comunidade online de apoio a jovens LGBTI e que foi condenada a pagar uma multa. E até há pouco tempo, na Noruega, as pessoas transgénero tinham de se submeter a tratamentos invasivos de mudança de sexo para verem a sua identidade reconhecida pela lei (em abril de 2015, o governo alterou a lei para corrigir esta situação).

A Mutilação Genital Feminina é também uma frente de combate para a AI? Só em África, entre 100 a 140 milhões de mulheres e jovens têm sido sujeitas à excisão dos genitais...

É uma frente de combate, não só nos países praticantes como também em Portugal, onde ocorrem casos semelhantes. Em julho, de acordo com um estudo da Universidade Nova de Lisboa, 1.830 meninas residentes em Portugal já tinham sido ou corriam o risco de serem submetidas a MGF. Mas já se verificam avanços por cá, com a entrada em vigor, em setembro, de uma nova legislação que introduz a MGF como um crime específico no Código Penal.

Os Casamentos infantis e forçados, que afetam todos os anos mais de 15 milhões de raparigas, é um problema que tem sido trabalhado pela AI, com campanhas como ‘O meu corpo, os meus direitos’ e eventos como a ‘Maratona de Cartas’. Há resultados?

Quando se olha para os números - uma em cada três raparigas serão obrigadas a casar antes dos 18 anos e uma em cada nove meninas antes dos 15 anos -, percebe-se a dimensão e a gravidade de um problema que afeta tantas meninas no mundo inteiro. No âmbito da Maratona de Cartas [um evento global realizado anualmente pela AI, no qual pessoas de todo o mundo assinam cartas apelando à solidariedade internacional, em prol de indivíduos e de comunidades em risco], a AI Portugal escolheu o caso das meninas do Burkina Faso, que são obrigadas a casar com idades tão novas como os 11 anos. A violação dentro do casamento é um dos graves problemas que afeta estas meninas, assim como as gravidezes precoces que acarretam graves consequências para a sua saúde e vida. Para além disso, são obrigadas a trabalhar longos períodos e espera-se que tenham quantos filhos o marido quiser.

No âmbito da campanha que referiu, ‘O Meu Corpo, os Meus Direitos’, um dos países em foco foi o Nepal, onde se registam altos números de prolapsos uterinos, uma das consequências dos casamentos infantis. O prolapso é uma condição extremamente debilitante em que o útero descai para o canal vaginal.

“A violação dentro do casamento é um dos graves problemas que afeta estas meninas, assim como as gravidezes precoces que acarretam graves consequências para a sua saúde e vida. Para além disso, são obrigadas a trabalhar longos períodos e espera-se que tenham quantos filhos o marido quiser.”

Uma das surpresas no relatório é a geografia dos crimes de honra, que, afinal também ocorrem em países como os Estados Unidos, Suécia e Itália…

É verdade. Apesar de os crimes de honra serem mais reportados no Médio Oriente e na Ásia do Sul, os Relatores Especiais em Execuções Extrajudiciais, Sumárias e Arbitrárias das Nações Unidas chamaram a atenção para o facto de estes crimes também ocorrerem noutros territórios como o Brasil, Equador, Itália, Paquistão, Suécia, Turquia, Uganda e até mesmo no Reino Unido, Canadá e EUA.

Atentados aos direitos das mulheres verificam-se em muitos países, como a Turquia. Não é estranho que um país que quer fazer parte da União Europeia continue a tratar as suas mulheres com violência?

Tendo em conta a grave crise de refugiados não é de admirar que um dos aspetos da violência contra mulheres na Turquia recaia exatamente sobre mulheres refugiadas oriundas de vários países. Para além disso, a violência contra mulheres durante as manifestações contra o governo também é outra preocupação. Os crimes de honra, os casamentos infantis, a violência contra as mulheres dentro da família continuam a ser usuais.

Em muitos países, o nascimento de raparigas continua a ser desvalorizado, ao contrário do dos rapazes? Que futuro podem essas meninas esperar?

Segundo dados de 2012 do Banco Mundial, mais de 1/3 das seis milhões de mulheres desaparecidas deve-se a abortos seletivos com base no género e a políticas de preferência de filhos rapazes. Portanto, daqui se pode aferir que o nascimento de raparigas continua a ser desvalorizado.

Tendo em conta tantos desafios e dificuldades, como é que a Amnistia Internacional mobiliza e envolve as populações e as outras organizações da sociedade civil?

A Amnistia Internacional parte da monitorização e investigação, assim como de missões no terreno e trabalho conjunto por via de parcerias, para dar a conhecer violações de direitos humanos. Através da comunicação social e da ação noutros fóruns (lóbi e advocacia), expomos estas violações e iniciamos o processo de pressão junto de governos, de entidades políticas, empresas e grupos intergovernamentais. Desenvolvemos campanhas para envolver os nossos ativistas e outras organizações parceiras neste processo e na consciencialização da população acerca dos temas trabalhados. A educação para os direitos humanos é um dos meios que usamos para ajudar a que os mais novos entendam quais as consequências de um mundo em que os direitos humanos não são respeitados. As ações através das quais os nossos ativistas mobilizam a sociedade na defesa dos direitos podem ser das mais variadas: desde ações no mundo virtual, passando por debates, sessões e mostras de cinema, organização de espetáculos e exposições, ações fotográficas, manifestações e vigílias, participação em eventos desportivos, entre outros.

A AI está presente em outros países lusófonos? Que cooperação existe entre eles?

Existe uma seção na Amnistia Internacional Brasil e colaboramos com eles nos casos de violência contra mulheres nas favelas. Também desenvolvemos trabalho no âmbito dos desalojamentos forçados durante eventos desportivos. Colaboramos também na campanha da Irlanda e em alguns casos da Maratona de Cartas. Neste momento, estamos focados na campanha ‘Jovem Negro Vivo’, que faz realçar as consequências do preconceito e dos estereótipos negativos, nomeadamente em bairros considerados problemáticos.

Como é que a AI vê o papel da Cooperação Portuguesa e da Assembleia da República na defesa dos direitos humanos, particularmente nas questões de que falamos há bocado?

No caso da Mutilação Genital Feminina, por exemplo, a AI Portugal assinalou de forma positiva a entrada em vigor da autonomização do crime de MGF no Código Penal Português, a 4 de setembro de 2015. As alterações legislativas feitas estão em linha com algumas das recomendações que apresentámos. No entanto, acreditamos que o Estado português pode e deve reforçar o trabalho político nesta matéria a vários níveis, quer no seio da UE, quer no contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, quer ainda no âmbito das Nações Unidas.

Quanto à IVG e aos Direitos LGBTI, assinalamos positivamente a aprovação, na Assembleia da República, da adoção por casais do mesmo sexo, uma vez que permite harmonizar a lei portuguesa com a lei internacional e europeia e pôr fim à discriminação que até agora ocorria. Também a eliminação das restrições aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foi um passo positivo, na reversão das alterações à lei da IVG aprovadas em julho de 2015.

Contudo, quanto aos direitos das mulheres, remetemos para os dados fornecidos pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), cujo Observatório de Mulheres Assassinadas contabilizou um total de 29 mulheres assassinadas e 39 vítimas de tentativa de homicídio, em particular por pessoas com quem mantinham relações de intimidade, durante o ano de 2015. Estes dados continuam a exigir um estado de alerta relativamente à violência contra as mulheres.

“O Estado português pode e deve reforçar o trabalho político nesta matéria a vários níveis, quer no seio da UE, quer no contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, quer ainda no âmbito das Nações Unidas.”

E que trabalho a AI tem feito nestas temáticas, no mundo, na Europa e em Portugal?

A AI tem em curso a campanha global ‘O meu corpo, os meus direitos’, que vem defender os direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos universais e inegáveis. A campanha ‘Fim à Mutilação Genital Feminina’ é uma campanha europeia, liderada pela AI Irlanda, que tem como objetivo trabalhar em parceria com várias organizações nos diferentes estados membros da União Europeia. Em Portugal, para além de trabalharmos sobre estas campanhas globais e regionais, trabalhamos igualmente sobre casos concretos, de indivíduos em risco e sobre outras temáticas, como a violência doméstica, violência no namoro, discriminação de género. Conforme mencionado anteriormente, vamos realizando ações de rua, sessões de cinema, sessões de sensibilização em escolas e em outros contextos educativos e/ou culturais e continuamos a publicar diversos materiais sobre estas diferentes temáticas.

Relativamente a Portugal, o acesso desigual à Justiça manchou a reputação do país junto das Nações Unidas. A relatora especial das Nações Unidas para a Independência dos Juízes e Advogados, Gabriela Knaul, fez chegar uma queixa à ONU, dizendo, no fundo, que a justiça aqui não é para todos. A quem é que é vedado o acesso à Justiça em Portugal?

Gabriela Knaul, nas observações preliminares feitas após a missão a Portugal, referiu, efetivamente, que recebeu informações sobre o risco de pobreza existente em Portugal, que atinge hoje um em cada cinco portugueses. Naturalmente que, neste contexto, os aumentos nos custos da justiça constituem uma preocupação acrescida, já que impedem o acesso à mesma por parte da população. Ainda nesse seguimento, a relatora especial das Nações Unidas recordou que o Tribunal Constitucional Português declarou inconstitucionalidade de algumas das medidas de austeridade.

As desigualdades de género também se aplica no acesso à justiça?

Não estamos na posse dos dados concretos relativamente ao acesso por mulheres ou homens, mas existem dados que comprovam que as mulheres são das mais afetadas pelas medidas de austeridade, logo, isso poderá refletir-se, também, no acesso à justiça por parte das mesmas.

O que é que a AI Portugal propõe?

A AI Portugal considera que se deve realizar uma avaliação do impacto das medidas de austeridade nos direitos humanos, no contexto da recessão económica. Acreditamos ser essencial a criação de um mecanismo nacional de monitorização, a fim de se aferir se estas medidas e políticas estão em conformidade com as obrigações dos direitos humanos. Isso incluiria o acesso à justiça, por forma a prevenir irregularidades no acesso à mesma.

O que é que Portugal devia fazer pela integração das pessoas de etnia cigana na sociedade e no mercado de trabalho, depois de ter adotado a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas 2013-2020?

Não discriminar no acesso ao mercado de trabalho, por exemplo, e isso depende também dos empregadores. Toda a sociedade, em geral, tem muito a melhorar na questão da aceitação da diversidade cultural. Em 2013, a AI Portugal juntou-se a dezenas de outras seções que, em todo o mundo, trabalharam a campanha ‘Direitos das Comunidades Ciganas. Aqui. Agora’. Em Portugal, trabalhámos principalmente a questão do direito à habitação e à educação. Expressámos a nossa preocupação pela existência de turmas segregadas de crianças de comunidades ciganas, como foi o caso da Escola Básica do 1º Ciclo dos Templários, em Tomar. A segregação não pode ser a resposta, como a história tão bem já nos demonstrou. Outro dos fatores que continua a excluir pessoas das comunidades ciganas é o direito à habitação e o facto de continuarem a ser sujeitas a desalojamentos forçados, como foi o caso da Vidigueira onde 67 pessoas, incluindo 35 crianças, ficaram sem casa e viram os seus bens a ser destruídos durante as demolições. É de recordar que o Comité Europeu dos Direitos Sociais considerou, em 2011, que as políticas e as práticas de Portugal relativas à habitação das comunidades ciganas violavam a Carta Social Europeia e que esta foi uma das preocupações expressas pela delegação da Amnistia durante o Exame Periódico Universal de Portugal no Conselho de direitos humanos das Nações Unidas em 2014. Tendo Portugal, como disse, adotado a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas 2013-2020, é de esperar que se cumpram os pontos da mesma para que a integração passe do papel à realidade.

Mas os ciganos são portugueses e, no entanto, parece que também eles próprios se põem à margem…

Não partimos desse pressuposto de que se põem à margem. Felizmente, assistimos a sinais muito positivos que nos indicam o contrário. Claro que há um longo caminho a percorrer, por parte de todos nós, portugueses.

Nas comunidades ciganas é prática comum os casamentos combinados pelas famílias, muitas vezes quando os filhos e as filhas são crianças. E nas comunidades hindus e noutras também ocorre esse ‘arranjo’. O que é que a AI Portugal tem feito junto destas comunidades?

A AI Portugal não tem feito uma intervenção no seu próprio país relativamente a este assunto. Enquanto movimento internacional, temos uma visão de solidariedade internacional, de ação efetiva no caso de vítimas individuais, de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. Por norma, para protegermos a nossa imparcialidade e independência, evitamos o trabalho no próprio país, e, quando acontece, fazemo-lo com base em critérios muito específicos e com metas definidas. Isso não quer dizer, contudo, que nos estejamos a abstrair do que acontece no nosso território, muito pelo contrário. Sabemos que há outras organizações no terreno a fazerem um trabalho muito valioso nesta área, incluindo junto de líderes comunitários. A Amnistia Internacional tem uma posição firme sobre os casamentos forçados, que condenamos veementemente. Um dos países com maior índice de casamentos forçados e precoces é o Burkina Faso, com 52% das raparigas a casarem antes dos 18 anos. Este, aliás, foi um dos casos que divulgámos no âmbito da nossa ‘Maratona de Cartas de 2015’.

Que trabalho está a ser feito nas escolas e com as novas gerações ao nível da educação para a cidadania e DH?

A Amnistia Internacional desenvolve um trabalho intenso na área da Educação para os direitos humanos (EDH) promovendo a elaboração e publicação de materiais de EDH e a sua disponibilização a todos os interessados, bem como a realização de sessões e projetos de EDH junto dos mais variados públicos. Dentro dos projetos, desenvolvemos desde há três anos o projeto Escolas Amigas dos direitos humanos (EADH), que procura impulsionar mudanças estruturais nas escolas, adaptando e reformulando regras, práticas e vivências para que façam parte do dia-a-dia da escola valores como a democracia, a igualdade, a não discriminação, a justiça e a responsabilidade. O objetivo final é tornar as escolas mais plurais, participativas, diversas e inclusivas, contando para tal com a participação ativa de todos: alunos, professores, funcionários, direção e pais. Estão integradas neste projeto seis escolas de diferentes zonas geográficas do país. Nos últimos dois anos, as atividades deste projeto tiveram um enfoque no bullying e na discriminação, fruto da integração do projeto internacional Stop Bullying! Uma abordagem baseada nos direitos humanos para combater a discriminação nas escolas, em parceria com as secções da Itália, Polónia e Irlanda, que procura capacitar as comunidades educativas com novos mecanismos de sensibilização, formação e prevenção em torno da temática do bullying como forma de discriminação. Os jovens envolvidos neste projeto (seis escolas a nível nacional, dezassete a nível internacional, 530 alunos envolvidos até 2015 em Portugal) participam em ações que lhes permitem, por um lado, obter um melhor conhecimento sobre a temática do bullying, como forma de violação dos direitos humanos, como por outro refletem sobre esta problemática a nível local, levando-os a encontrar novas soluções para reduzir os índices de agressividade e violência no seu contexto educativo, com a sua participação ativa e democrática na estruturação de novas medidas, práticas e procedimentos escolares.

“Existe pouco espaço dentro das escolas para abordar as questões de direitos humanos, em particular no ensino secundário.”

Que dificuldades encontram nessas ações em meio escolar?

Sentimos que existe pouco espaço dentro das escolas para abordar as questões de direitos humanos, em particular no ensino secundário. A experiência do projeto EADH mostra-nos que o peso dos programas curriculares é muitas vezes impeditivo de abordar estes temas, que deveriam ser transversais a todas as matérias.

O problema das pessoas refugiadas é incontornável. Não lhe parece que a Europa, tão centrada em matéria de discurso na defesa dos direitos das crianças e das mulheres, está pacientemente à espera de resolver a crise das pessoas refugiadas, que é uma crise humanitária?

A Europa parece continuar centrada no discurso de “Europa Fortaleza” e insiste na preocupação com as fronteiras. É consensual para todos os estados europeus de que se trata de uma crise humanitária, no entanto, temos assistido a um falhanço moral nas discussões políticas sobre o assunto. A AI tem já há dois anos a campanha ‘S.O.S Europa’ em curso, na qual temos partilhado inúmeras recomendações. Infelizmente, as notícias continuam a não ser as melhores. A passada cimeira, a 7 de março, em Bruxelas, que reuniu líderes da UE e da Turquia, foi a prova de como a União Europeia continua a querer esquivar-se das suas responsabilidades perante as pessoas que fogem da guerra e da perseguição, ao querer utilizar a Turquia como “guarda-fronteira”, na tentativa de impedir que os refugiados e requerentes de asilo entrem na União Europeia. Não concordamos com a designação da Turquia enquanto “país terceiro seguro”. As condições em que vivem os refugiados são terríveis e já recebemos vários relatos de refugiados que foram deportados de volta para a Síria. Infelizmente, o processo de reinstalação está demasiado lento. São necessárias medidas ágeis e sérias e não podemos continuar a isentarmo-nos desta responsabilidade e dos princípios de solidariedade internacional com os quais nos deveríamos reger.

Em todo o caso, em 2015, além do ataque global às liberdades que deixou os direitos humanos e as leis e sistemas que os protegem em elevado risco, também houve conquistas e ganhos no exercício dos DH em todas as regiões do mundo. Quer destacar algumas dessas conquistas, começando por Portugal?

Começo por destacar uma das grandes conquistas em Portugal, com a aprovação, em dezembro, da lei que concede a casais do mesmo sexo o direito à adoção de crianças. Em outras regiões do mundo, destaco a abolição da pena de morte em mais três países: Madagáscar, ilhas Fiji e Suriname. A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou em dezembro a Resolução sobre os Defensores dos direitos humanos, que contou também com o apoio da Amnistia Internacional, entre outras organizações não-governamentais. O Moses Akatugba, nigeriano que se encontrava no corredor da morte, foi perdoado em maio ao fim de quase dez anos de prisão, este foi também um caso que a AI Portugal acompanhou de muito perto. Felizmente, tal como o Moses, assinalamos muitos outros casos de sucesso relativamente aos “indivíduos em risco”, que é uma das nossas áreas de trabalho (assinalamos estes e muitos mais sucessos aqui: http://goo.gl/JI0gNp).

Tudo isto só é possível graças a todos aqueles e aquelas que constituem a força da Amnistia Internacional: os seus membros, voluntários, ativistas, grupos, equipas. Enquanto existirem atropelos aos direitos humanos, aqui estaremos nós, para os denunciar e para os combater e, esperamos nós, assinalando muitos sucessos durante esse caminho.

 

Quem é Susana C. Gaspar?

Susana C. GasparLicenciada em Ciências da Cultura e Mestre em Educação Artística, é atriz, encenadora, professora e mediadora cultural, associando, frequentemente, o ativismo ao seu trabalho artístico.

Esteve envolvida com o Grupo local 19 - Sintra, desde 2010, onde coordenou iniciativas como a MOSTRA-ME (documentários sobre direitos humanos) e realizou sessões de Educação para os DH em escolas do concelho. É, ainda, membro da Dínamo - Associação de Dinamização Sócio-Cultural, em Sintra, na qual integra a Bolsa de Formadores, participando como formadora em projetos sobre cidadania e DH. Foi eleita presidente da direção para o período 2015/2018. Tem 28 anos.

Fotografia: © Amnistia Internacional Acção de rua da campanha Refugiados/SOS Europa, Lisboa, 28 abril 2015

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