“Nos países onde a saúde sexual e reprodutiva é protegida, a economia colhe os dividendos”
- Data de publicação 25 julho 2016
A deputada ao parlamento da Suécia lidera o Fórum Europeu de Parlamentares sobre População e Desenvolvimento, que tem como missão lutar pelos direitos humanos dentro e fora do velho continente. Para Ulrika Karlsson, não há direitos mais importantes que outros, mas reconhece e assume que o empoderamento das meninas e mulheres e a defesa da Saúde Sexual e Reprodutiva são essenciais para a evolução social e económica de um país.
Entrevista: Carla Amaro
O governo sueco é assumidamente feminista. Em que ações concretas se traduz este reconhecimento?
Um forte compromisso com a igualdade de género é transversal a toda a política sueca, não apenas dentro do governo sueco. Há muitos anos que na Suécia prevalece a ideia de que as pessoas não devem ser discriminados em função do género. Isso é consensual. Proporcionar às mulheres e meninas as mesmas oportunidades de educação e de emprego que os homens não é apenas a coisa certa a fazer como faz todo o sentido para a economia de um país. Nenhuma economia ou sociedade podem atingir o seu potencial se metade da sua população é deixada para trás. Acreditamos convictamente nisto. De resto, os resultados são muito visíveis.
A Suécia tem hoje um dos mais baixos índices de mortalidade materna no mundo, mas não era assim há apenas 60 anos. Em 1950, cerca de 250 a 300 parturientes morriam por cada cem mil nascimentos. Hoje, morre menos que uma. Como chegaram a este valor?
Não teríamos conseguido sem uma série de decisões tomadas que enfrentaram instituições sociais, políticas, culturais e religiosas suecas. Na Suécia trabalhámos para empoderar e capacitar as mulheres através do acesso à educação sexual compreensiva, do acesso a contracetivos modernos, do acesso ao parto por profissionais qualificados e do acesso ao aborto seguro e legal. Isso não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos anos de luta de muitas mulheres e homens valentes. Mas a nossa luta ainda não acabou. Ainda recentemente a Suécia aprovou uma lei que proíbe o casamento infantil precoce e forçado.
O EPF é uma rede de parlamentares de toda a Europa empenhados em proteger os direitos e saúde sexual e reprodutiva (DSSR) das pessoas mais vulneráveis. De que maneira o fazem e em que consiste exatamente esse trabalho?
Como parlamentares empenhados na proteção dos DSSR, estamos bem posicionados para impulsionar, implementar e dar forma à agenda de desenvolvimento sustentável, quer nos nossos países, quer nos demais. Existem várias maneiras de alcançar este objetivo. Por exemplo, os parlamentares podem levar à criação de legislação e de políticas relevantes, interceder pela monitorização das medidas e assegurar a sua supervisão, transparência e boa governação. Como representantes dos seus eleitores, os deputados podem fazer ouvir as vozes dos cidadãos e definir os regimes fiscais e orçamentais necessários para mobilizar recursos suficientes para garantir Direitos e saúde sexual e reprodutiva. Uma vez que a União Europeia (UE) é o maior contribuinte da ajuda externa e tem uma influência importante sobre a política global dos DSSR, é vital que haja parlamentares europeus a assumir essas tarefas.
Que dificuldades encontra no exercício dessa missão?
Estamos a assistir a uma oposição crescente aos DSSR na Europa. Ao longo dos últimos anos tem havido um aumento percetível dos extremismos religiosos; há grupos de pressão que têm vindo a destacar-se no seio da UE, que trabalham contra os direitos das mulheres, a decidirem sobre seus próprios corpos e o seu direito à informação e à educação. Penso que os governos progressistas dos Estados membros, os parlamentares e a sociedade civil devem estar atentos e opor-se fortemente a essas actividades.
Qual deve ser o papel dos parlamentares nessas questões?
Os parlamentares apoiantes dos DSSR têm de falar alto e a bom som sem medo, para defender estes direitos humanos, tanto no Parlamento como nos media. Porque os argumentos falsos e a desinformação devem ser desmontados e desacreditados o quanto antes.
“As mulheres e as crianças, especialmente as meninas, são o grupo que corre maior risco na Europa, porque são especialmente vulneráveis à violência, incluindo a violência sexual.”
O EPF acredita que do ponto de vista pessoal, económico e ambiental faz sentido que os governos reforcem a Ajuda Publica ao Desenvolvimento e criem iniciativas que protegem a saúde sexual e reprodutiva e direitos das pessoas. É isso que está a acontecer em todos os países?
Infelizmente há muitos países onde os Direitos e a saúde sexual e reprodutiva não são respeitados. Mas nos países onde os DSSR são protegidos e tratados com seriedade e respeito, a economia colhe os dividendos desse investimento. Precisamos de falar e de mostrar continuamente esta evidência. Só assim podemos provocar a mudança. Não podermos desistir. Sabemos que os resultados, mais cedo ou mais tarde, acabam por aparecer. Veja-se o caso do planeamento familiar na Indonésia, por exemplo.
Porquê?
Na parte final do século XX, iniciou-se uma alteração nas políticas de planeamento familiar na Indonésia. Entre 1976 e 2002, a utilização de métodos contracetivos aumentou e a taxa de fertilidade caiu de 5.6 para 2.6 filhos por mulher. Isto, acompanhado por um dramático crescimento económico no País. Os líderes políticos, que viram a introdução do planeamento familiar como uma política de Estado na década de 1970 e de cooperação bem-sucedida com os líderes religiosos muçulmanos, foram os principais agentes desta mudança. Mas o papel dos parlamentares foi fundamental para neutralizar a oposição religiosa e criar essa vontade política.
Quais são, neste momento, os principais desafios, tendo em conta a atual crise de refugiados?
A crise de refugiados é um desafio particular. Cerca de 57 por cento dos refugiados que chegam agora à Europa são mulheres e crianças, uma tendência que tem sido evidente desde o início de 2016. Estas são as mulheres em maior risco na Europa. As mulheres e as crianças, especialmente as meninas, são especialmente vulneráveis à violência, incluindo a violência sexual. Há também muitas mulheres refugiadas que estão grávidas e que sofrem dificuldades extremas por não terem acesso aos cuidados médicos de que necessitam.
No plano internacional, penso que a Europa deve e precisa de ser parte de uma solução abrangente para a crise de refugiados, que está a forçar milhares de pessoas a fugirem dos seus países de origem. Há coisas que podemos fazer para proteger os DSSR das mulheres e meninas que chegam à Europa.
E como é que a Europa pode ser a solução?
O processo é longo e complicado, mas há coisas que podemos fazer para proteger os DSSR das mulheres e meninas que chegam à Europa. Por exemplo, quando chegam aos centros de acolhimento europeus, devem encontrar instalações e cuidados de saúde adequados para tratá-las corretamente. Devem ser examinadas e acompanhadas por uma médica, e entrevistadas (com uma intérprete) por uma funcionária mulher. Temos também de garantir que estão a salvo de violências, entre as quais estupro e exploração sexual nestes centros de acolhimento. No mínimo, as mulheres precisam de ter acesso a casas de banho, chuveiros e quartos de dormir separados dos homens. E a mulheres grávidas e a novas mães devem ter garantidos cuidados de saúde pré e pós natal de qualidade. Os DSSR são direitos humanos que devem ser abordados com a mesma urgência que outros direitos fundamentais, especialmente num ambiente de crise humanitária.
O que pensa da situação na Polónia, onde se considera criar legislação para banir completamente a interrupção voluntária da gravidez (IVG)?
O EPF publicou uma carta aberta ao porta-voz do parlamento polaco na qual expõe as suas profundas preocupações sobre uma proposta de lei que introduz a proibição total da IVG. A minha mensagem é a mesma para todos os parlamentares de todas as famílias políticas: os estudos académicos, os relatórios das Nações Unidas, a Organização Mundial de Saúde, assim como vários países, em inúmeras ocasiões provaram que a imposição de barreiras legais para a interrupção voluntária da gravidez não só não reduz os índices de IVG como aumenta os riscos de mortalidade maternal. Está mais do que demonstrado que a taxa de abortos só pode ser reduzida através do acesso à contraceção e à informação sobre planeamento familiar e através de melhores políticas que permitam conciliar família e trabalho.
“Os DSSR são direitos humanos que devem ser abordados com a mesma urgência que outros direitos fundamentais, especialmente num ambiente de crise humanitária.”
Na Polónia também há planos para restabelecer a exigência da prescrição das pílulas do "dia seguinte" e acabar com o financiamento estatal para a fecundação in vitro (FIV). É um passo atrás?
Considero muito regressivos todos os planos que pressupõem a introdução da exigência de prescrição para as pílulas anticoncecionais de emergência (a chamadas pílulas do “dia seguinte"). Seria impor uma barreira adicional para aceder a uma opção contracetiva muito necessária e contribuiria para um aumento de gravidezes não desejadas.
No que respeita à FIV considero que deve estar disponível para todas as pessoas que consideram ser a opção correta para elas.
Como parlamentar e presidente do EPF, como entende os cortes na Ajuda Pública ao Desenvolvimento, em particular nos DSSR?
Os cortes na Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) são extremamente preocupantes para nós, parlamentares internacionais, que trabalhamos para conseguir uma vida melhor para aqueles que vivem em situação de pobreza extrema. Temos visto em primeira mão os efeitos transformadores que os contribuintes europeus têm provocado no mundo inteiro e sabemos quão vital é que continuem. As reduções nos orçamentos em APD têm implicações muito reais para milhões de pessoas. Graças à APD europeia, há mulheres que têm acesso a métodos contracetivos que as protegem contra doenças e gravidezes indesejadas; há mulheres grávidas que estão a receber cuidados médicos; há meninas a serem salvas dos horrores da Mutilação Genital Feminina (MGF); mulheres grávidas que têm acesso a medicamentos essenciais. Enfim, podia dar imensos exemplos.
Como é que a redução da APD pode “co-habitar” com a agenda dos ODS?
Não pode. Com os ODS, temos a oportunidade de construir um mundo mais justo, onde as pessoas podem viver livres de fome, de doenças e de violência. No entanto, a implementação desta nova agenda será impossível sem fundos suficientes. Sem investimento no desenvolvimento, as nobres promessas dos ODS não passarão de palavras vazias.
Como avalia a colaboração entre o EPF e as agências das Nações Unidas, as organizações inter governamentais e não governamentais que estão a trabalhar com os parlamentares europeus?
É muito positiva. Trabalhamos em estreita colaboração com o UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População), que é a agência das Nações Unidas responsável pela implementação do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD). O UNFPA atribui um enorme valor ao trabalho dos parlamentares que cumprem a sua missão, que é criar um mundo melhor, onde cada gravidez seja desejada, onde cada parto seja seguro e onde cada jovem possa cumprir o seu potencial.
No trabalho que faz, o que é crucial fazer num tempo em que as alterações climáticas ‘anunciam’ os piores cenários para as Meninas e Mulheres?
Acredito que precisamos de continuar a enfatizar a importância do empoderamento das meninas e das mulheres. Empoderar e capacitá-las com uma boa educação leva a que mais pessoas se transformem numa força de trabalho qualificada, o que, por sua vez, gera crescimento económico. As mulheres gastam 90% do seu salário com as suas famílias, nomeadamente em comida, medicamentos e educação dos filhos (sabe-se que as mulheres escolarizadas são duas vezes mais propensas a enviar os filhos para a escola do que as mães que não estudaram).
Sim, mas para que o mundo colha estes benefícios, as mulheres devem ter o controlo sobre os seus próprios corpos e vidas…
Isso é fundamental. As capacidades de uma jovem mulher no desempenho de um trabalho de qualidade e na participação da educação dos filhos serão destruídas, a menos que tenha o poder de decidir o número de filhos que vai ter e quando os vai ter. E deve poder escolher livremente com quem se casa, porque nenhuma menina deveria ser forçada a um casamento que a priva dos seus mais elementares direitos humanos. É essencial que as mulheres tenham acesso fácil e completo a serviços de planeamento familiar. É essencial que as leis protejam e empoderem as mulheres para que construam uma vida saudável e autónoma. Tal como um estudo da Lancet confirmou recentemente, os países onde os bons contracetivos são facilmente acessíveis têm menores taxas de aborto. O mesmo estudo mostrou que as leis que criminalizam o aborto, em vez de o reduzirem, tornam-no perigoso para as mulheres.
Que mensagem daria a chefes de governos e parlamentares de todos os países sobre estas questões de direitos e saúde sexual e reprodutiva?
Que os direitos e a saúde sexual e reprodutiva são direitos humanos e, como tal, todos os governos de todos os países devem aceitá-los, promovê-los e protegê-los e que isso deve traduzir-se nas suas políticas e orçamentos. Sabe, como parlamentares, temos o privilégio de ter uma voz amplificada, pelo que cabe-nos falar em nome dos que não têm voz. Devemos fervorosamente defender os DSSR, mesmo nos lugares onde encontramos uma forte oposição.
Que opinião tem do GPPsPD?
É um membro importantíssimo do EFP. É extremamente ativo na organização de eventos e na publicação de artigos de opinião nos meios de comunicação social portugueses. Estou muito contente com a reforma que o Grupo levou depois das últimas eleições em Portugal, porque agora tem doze membros oriundos de todo o espetro político. Estou absolutamente certa de que a nova presidente do GPPsPD, Maria Antónia Almeida Santos (e os seus pares) vai fazer um excelente trabalho na promoção dos DSSR em Portugal e no estrangeiro.
Quem é Ulrika Karlsson? |
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Sueca, 43 anos, deputada no Parlamento Sueco pelo Partido Moderado sueco. É membro do Riksdag (o órgão legislador e decisório supremo da Suécia) e atualmente preside ao Fórum Europeu de Parlamentares sobre População e Desenvolvimento, uma rede de parlamentares de toda a Europa empenhados/as em proteger os direitos e a saúde sexual e reprodutiva (DSSR) das populações mais vulneráveis do mundo. O EPF tem como áreas de ação o casamento infantil, o planeamento familiar, os direitos das jovens, o VIH/SIDA, a mortalidade materna, a prematuridade, o aborto seguro, a educação sexual compreensiva, a violência contra as mulheres, a Mutilação Genital Feminina, a fístula obstétrica, a igualdade de género, entre outras. |