Entrevista

. “Uma sociedade informada é uma sociedade menos discriminadora”

Sandra Cunha

Está na política para ajudar a melhorar a vida das pessoas. Como deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda, Sandra Cunha quer fazer a diferença, com resultados efetivos, na defesa das causas que abraça: acabar com a pobreza, com a violência contra as mulheres, com a desigualdade de género no emprego, e promover o acesso das pessoas trans e intersexo ao serviço nacional de saúde.

Entrevista: Carla Amaro | Fotografia: Tiago Lopes Fernandéz

Como surgiu a decisão de entrar na vida política e integrar a lista do BE à Assembleia da Republica?

Surgiu naturalmente. Era ativista na área da proteção à infância e da defesa dos direitos das mulheres e dos direitos dos animais e a política foi o passo seguinte. O ativismo na sociedade civil é extremamente importante, mas queria fazer mais e pareceu-me que a política se afigurava como o melhor instrumento. Entrei para o Bloco de Esquerda (BE) no início da sua formação - foi o partido com que me identifiquei - e daí em diante foi um percurso natural: comecei por ser candidata nas autárquicas, sou dirigente nacional, faço parte da Comissão Política e, entretanto, fui convidada para integrar as listas à Assembleia da República (AR).

Como vê o seu trabalho no Parlamento, agora que integra o centro da decisão política do País?

Vejo-o com uma enorme responsabilidade. É bastante difícil corresponder às expetativas das pessoas, que fizeram com que votassem no BE. Ainda que exista sempre um programa e que as ideias sejam expostas sobre aquilo que queremos para o País nas várias dimensões e áreas, conseguir corresponder a essas expetativas que as pessoas justamente têm é uma responsabilidade e um peso, mas é, por outro lado, muito gratificante quando conseguimos mudar alguma coisa para melhor.

Os dados da mortalidade materna, neonatal e infantil e de violência e discriminação sobre as raparigas e mulheres continuam a ser muito elevados no mundo e os financiamentos dos países (doadores) e da comunidade internacional para os Programas de Saúde Sexual e Reprodutiva estão a diminuir. Como vê esta realidade e o que deve ser feito? Qual o papel do Parlamento?

Vejo esta realidade com muita preocupação. Aquilo que pode, que deve ser feito no que respeita ao financiamento é aumentá-lo de uma forma gradual, incluindo a Ajuda Pública ao Desenvolvimento, para que Portugal possa alcançar a meta dos 0,5%. Não está lá perto, nem pouco mais ou menos – os últimos dados apontavam para 0,19% do nosso PIB, o que é muito pouco, mas, infelizmente, não somos o único País que está a baixar o financiamento. Quinze países o fizeram, sendo Portugal o que mais reduziu.

Por causa da crise?

Sim. A crise que atravessou Portugal e toda a Europa fez com que os financiamentos diminuíssem nos últimos anos. O que a AR pode fazer, na realidade, é promover o debate sobre estas questões e recomendar a atribuição de mais verbas e o cumprimento das metas ao Governo. Diretamente não pode fazer grande coisa, mas pode fazer pressão.

“O cumprimento de todos os ODS é absolutamente importante, mas, no que respeita a Portugal, penso que os objetivos referentes ao combate à pobreza e à igualdade de género e empoderamento das mulheres (onde se inclui a saúde sexual e reprodutiva e direitos) são essenciais.”

A Agenda 2030 e os ODS são de aplicação universal. Quais os principais desafios que que se apresentam a Portugal e qual deverá ser o papel do Parlamento nesta matéria?

Portugal, como qualquer País, tem como principais desafios o cumprimento de todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), bem como tentar que os mesmos se cumpram em todos os países, e isso implica, como já disse, cumprir todas as metas estabelecidas para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento. Implica também conseguir, através de parcerias de redes internacionais, influenciar positivamente outros países no sentido de implementarem políticas e medidas de combate à pobreza, à discriminação, à desigualdade.

E Portugal?

Portugal tem-se focado muito e bem, porque são questões que ainda não estão resolvidas, no direito à saúde, na igualdade de acesso à saúde, na não discriminação de género, etc., mas importa também tratar de outras questões que pensa-se estarem resolvidas e não estão. A pobreza, exemplo. O ODS referente ao combate à pobreza também se aplica a Portugal. Não é exclusivamente direcionado aos países em desenvolvimento, ao contrário do que se pensa.

“O facto de António Guterres introduzir as mulheres e os jovens, sobretudo as raparigas, o reforço da participação, o empoderamento e o combate às desigualdades no seu discurso de tomada de posse enquanto SG das Nações Unidas já dá o mote para aquilo que pretende fazer e para o que todos os Estados Membros da ONU devem seguir”

Segundo um relatório recente do Comité Português para a UNICEF, as crianças são o grupo etário em maior risco de pobreza em Portugal. A partir de 2010, a situação tem vindo a agravar-se com a adoção de medidas de austeridade, que têm impacto direto no bem-estar das crianças ao nível da saúde e educação e dos apoios sociais às famílias mais carenciadas,

Exatamente. Sabemos que, em Portugal, uma em cada cinco crianças são pobres e um milhão de pessoas vive em situação de pobreza quase extrema (sem acesso a alimentação, educação, saúde e habitação digna) e enquanto essas realidades existirem no nosso País, não podemos achar que Portugal está fora do ODS 1. Cá existe pobreza e é preciso combatê-la. Não me recordo dos números exatos, mas sei que aumentou exponencialmente o número de sem-abrigos nas nossas ruas. E depois temos as pessoas que trabalham, vivem do seu rendimento e, mesmo assim, são pobres, porque recebem salários baixíssimos e não conseguem sair do limiar da pobreza. Repare, não estou a dizer que uns ODS são mais importantes do que outros, o que digo é que o ODS 1 também se aplica a Portugal, embora não na mesma medida que outros países mais carenciados.

Como vê o papel da sociedade civil nacional e internacional nestas matérias? Existe a prática de audições de especialistas e ONG no Parlamento sobre as temáticas do Desenvolvimento e Cooperação?

O papel da sociedade civil é essencial. É a comunidade civil, as Organizações Não Governamentais (ONG) e os coletivos, etc., que mais de perto lidam com as necessidades das populações, que estabelecem redes e parcerias. São elas que estão no terreno e estabelecem contato direto privilegiado com as pessoas, portanto, são os melhores interlocutores para que depois, a nível legislativo, no Parlamento, e também a nível da aplicação das medidas políticas do Governo, se consiga resolver todos esses problemas. O trabalho da sociedade civil é essencial tanto a nível nacional como internacional.

“Existem muitos planos (para o fim da mutilação genital feminina, da violência doméstica, da desigualdade de género, etc.), mas a sua avaliação parece-me que não passa de um nível muito superficial. Devia ser mais rigorosa e aprofundada”.

Em matéria de igualdade de género e direitos das raparigas, no passado dia 26 de Outubro, no Parlamento, a SECI fez um ponto de situação do que está em curso nesta matéria. Quais as prioridades que importa reforçar ou incluir?

É verdade que estamos a assistir a uma preocupação maior com as questões da igualdade de género e da promoção de direitos das mulheres, das raparigas, das meninas com este Governo. Dou-lhe o exemplo do gender budging e a obrigatoriedade de todos os ministérios incluírem no seu orçamento uma verba destinada ao combate à discriminação e à violência de género. Há também outras questões que a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, deu conta e que considero muito importantes. Para além dos planos nacionais que já estão em curso até 2017 e que serão avaliados, um dos pontos que queria salientar é que existem muitos planos (para o fim da Mutilação Genital Feminina, da violência doméstica, da desigualdade de género, etc.), mas a sua avaliação parece-me que fica sempre um bocadinho aquém, não passa de um nível muito superficial.

O que sugere?

Para colmatar as dificuldades sentidas anteriormente e chegar aonde queremos nessas questões é preciso que a avaliação dos planos seja muito rigorosa e muito aprofundada. Mas, para além disso, há outra coisa que é importante e que parece estar a ser estudada pelo Governo, que é a educação para a cidadania em todos os níveis de ensino, na qual se aborde todas as questões relacionadas com direitos humanos, nomeadamente a igualdade de género. Espero que também esteja a ser pensada a inclusão de várias outras temáticas, como por exemplo a da não discriminação contra as pessoas com deficiência, dos migrantes e dos refugiados, do respeito pelo direito à orientação sexual e da identidade de género, identidade não binária… Há uma série de questões que precisam de ser faladas, porque geralmente as pessoas só discriminam quando desconhecem. Mesmo entre os jovens, há quem não saiba o que são pessoas trans e intersexo. Uma sociedade informada é uma sociedade menos discriminadora também.

Os avanços de Portugal, também legislativos, em matéria de Direitos e saúde sexual e reprodutiva e luta contra a violência de género e doméstica são pouco ou nada conhecidos nos outros países. Mas conhecemos e temos acesso fácil ao que se faz no resto do mundo. O que acha que é necessário fazer? Será apenas a língua o obstáculo? 

Sim, a língua acaba por ser um obstáculo enorme. Por exemplo, nós estivemos agora a trabalhar no projeto de lei de autodeterminação de género e, evidentemente, fizemos uma pesquisa e um estudo comparado da legislação existente em várias partes do mundo. Tudo o que está em inglês, feito pelos outros países, está acessível e o que é feito em Portugal (em matéria de diplomas legais) não está disponível para o resto do mundo, simplesmente porque está em português, o que torna difícil os outros países terem conhecimento das boas práticas em Portugal. É uma lacuna que é preciso corrigir. Deve ser feiro um esforço na tradução das principais medidas, que tenham impacto pelo menos a nível internacional, nomeadamente os que dizem respeito ao desenvolvimento e à cooperação mundial.

O único obstáculo é a língua?

A língua e a divulgação, por parte dos Estado português, das suas boas práticas.

“Os diplomas legais criados em Portugal não estão disponíveis para o resto do mundo, simplesmente porque estão só em português, tornando difícil os outros países terem conhecimento das nossas boas práticas. É uma lacuna que é preciso corrigir”

O investimento de Portugal em matéria de Cooperação para o Desenvolvimento tem vindo a descer, sobretudo nas temáticas de População e Desenvolvimento, mas o tema ainda não foi incluído na agenda parlamentar. Porquê?

A razão tem a ver com o que dizia há pouco, com o facto de a Europa e Portugal terem atravessado uma crise muito complicada, o que retirou verbas, necessariamente, à contribuição de Portugal para o fundo de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). É uma matéria que pode e deve ser falada, mesmo em sede de discussão do Orçamento de Estado (OE). Não aconteceu este ano, como, de resto, também não aconteceu a recuperação de rendimentos dos portugueses, justamente devido à conjuntura atual. Sair da crise e das medidas de austeridade do Governo anterior obriga-nos hoje a ter que negociar tudo ao cêntimo para recuperar algum rendimento. E não sobra nada. O excedente que Portugal tem neste momento, de cinco mil milhões de euros, é canalizado para o pagamento de juros da dívida – se não fosse, alguns milhões poderiam ser direcionados para a APD. Todos grupos parlamentares, em particular o BE, irão certamente levantar esta questão, de modo a ser incluída no próximo OE.

“O excedente que Portugal tem neste momento é canalizado para o pagamento de juros da dívida – se não fosse, alguns milhões poderiam ser direcionados para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento”

Foi uma das deputadas subscritoras do voto que a 20 de Julho, por ocasião do dia Mundial da População, foi aprovado por unanimidade, onde se reafirma “a importância do acesso universal a programas e cuidados de educação e saúde sexual e reprodutiva na construção de um mundo mais justo, mais solidário e desenvolvido”. Qual é o passo seguinte para que “ninguém fique para trás”?

Correndo o risco de ser politicamente incorreta, é muito fácil colocar estas coisas em papel, mas depois é difícil colocá-las em prática, em parte porque faltam os meios, os fundos, mas, por vezes, também falta vontade política. Se houvesse, certas medidas já teriam sido tomadas e certos diplomas legais já teriam sido aprovados.

Por exemplo?

“Não deixar ninguém para trás” tem a ver com, por exemplo, o respeito pela igualdade de género no seu pleno. Mas, a começar pela participação e representação política, não temos igualdade - 33% não é igualdade, igualdade seria 50%. Temos outras questões como o desrespeito e a desigualdade de acesso a serviços essenciais, como a saúde e a educação para pessoas trans e intersexo. Temos ainda outras frentes de batalha como a desigualdade salarial entre homens e mulheres; neste aspeto, o problema não é a falta de leis, o problema é que muitas empresas encontram estratagemas para as contornar. A solução passa por uma fiscalização cerrada e talvez pela atribuição de distinções e prémios de mérito às empresas ‘amigas’ da igualdade de género, que promovem as boas práticas, com discriminação salarial zero.

Quais os desafios que o País encontra em matéria de direitos humanos e desenvolvimento?

Ultrapassar as desigualdades de género no emprego e no acesso ao trabalho, acabar com a violência doméstica (em doze anos, 43 mulheres foram mortas às mãos dos maridos, companheiros, namorados e ex-companheiros), a violência no namoro, a violência institucional, a violência de rua, o assédio sexual… Até por isto, a educação para a cidadania nas escolas seria um passo essencial.

As mulheres e os jovens, sobretudo as raparigas, tiveram referência especial no discurso do novo secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. Como vê esta referência, sobretudo quando se fala em reforço da participação, empoderamento e combate às desigualdades?

Vejo com muitas expetativas. O facto de ele também ter três mulheres no seu staff mais próximo dá-nos esperança para que estas questões não sejam colocadas de lado. Aquilo que temos de perceber é se passará do discurso à prática e isso só o tempo o dirá. Claro que sozinho não conseguirá fazer nada, mas o facto de António Guterres introduzir essas questões no seu discurso já dá o mote para aquilo que pretende fazer e para o que todos os Estados Membros da ONU devem seguir.

Quais as propostas que o BE gostaria de ver contempladas em matéria de Cooperação e direitos humanos?

O cumprimento de todos os ODS é absolutamente importante, mas, no que respeita a Portugal, penso que os objetivos referentes ao combate à pobreza e à igualdade de género e empoderamento das mulheres (onde se inclui a saúde sexual e reprodutiva e direitos) são essenciais. Porque para uma sociedade ser saudável e se desenvolver no seu pleno não pode deixar metade da população para trás. E não pode deixar que metade da população tenha menos direitos e seja discriminada sob qualquer forma pela outra metade. Enquanto não se atingir a igualdade plena, esta não é uma sociedade verdadeiramente democrática.

 

Quem é Sandra Cunha?

Sandra unhaProfessora universitária licenciada em sociologia, é desde Outubro de 2015 deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda. Antes de chegar à política, fez ativismo pela defesa dos direitos das mulheres e dos direitos dos animais. Entre outras Comissões Parlamentares, pertence à Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação e à Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias. Tem 44 anos.

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