"Investir em Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva é economicamente inteligente"
- Data de publicação 02 maio 2017
Mónica Ferro é, desde o início de Abril, a nova diretora do escritório do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) em Genebra. Um cargo de extrema importância e visibilidade na área da População e Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, que a ex-deputada à AR pelo PSD e ex-coordenadora do GPPsPD quer honrar, continuando a fazer dos direitos das mulheres, das raparigas e dos jovens, da saúde sexual e reprodutiva e da igualdade de género uma agenda prioritária.
Entrevista: Carla Amaro | Fotografias: Tiago Lopes Fernández
Há um mês que está em Genebra, a dirigir o Escritório do UNFPA. Acha que esta nova função é um reconhecimento de um percurso dedicado às questões da população, da saúde materna, dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva, da igualdade, em particular mulheres e jovens?
Como sabe, este lugar resulta de um concurso internacional, a que me candidatei em Outubro do ano passado. Não tenho grandes dúvidas que para esta escolha contribuiu o meu CV e a minha experiência ao longo dos anos, trabalhando estas áreas não só em contexto académico como em organizações da sociedade civil, inclusive fundando algumas que tratam estas questões em Portugal. Também o trabalho que desenvolvi como deputada no Parlamento e o trabalho feito com o Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento (GPPsPD), no âmbito do qual tive a oportunidade de interagir com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a População (UNFPA), penso que terá pesado na escolha. Este lugar resulta de um percurso, de uma dedicação constante a estas matérias. Fiz dos direitos das mulheres e das raparigas, dos jovens, da saúde sexual e reprodutiva e da igualdade de género uma agenda de Direitos Humanos e sempre por uma lente muito feminista. Essa agenda foi, e continua a ser, a minha prioridade académica, política e cívica.
Foi a luta por um mundo mais justo que a levou a escolher a área da população, cooperação internacional e desenvolvimento?
Esta orientação deve-se muito de um processo de reflexão e de consciência. Por um lado, por ter uma noção muito concreta de que só vamos construir um mundo com igualdade e mais digno para todos se no centro das nossas preocupações estiver a agenda da População e Desenvolvimento (numa aula recente, recordava aos meus alunos que doze dos dezassete ODS têm diretamente a ver com o trabalho do Fundo das Nações Unidas para a População, ou seja, sobre População e Desenvolvimento). Por outro, havia muitas questões que não eram questionadas devido à nossa cultura ainda muito patriarcal, muitas discriminações que são escudadas por aspectos culturais e por práticas socialmente toleradas e que faziam com que mulheres e raparigas fossem dos grupos mais vulneráveis das nossas sociedades, quando, na verdade, são hoje agentes para o desenvolvimento político, económico, cultural e social das sociedades (isto, quando são empoderadas).
Falando em população e cooperação internacional para o desenvolvimento, as mulheres e as meninas, como disse, são as mais vulneráveis por diversas razões. Como é que, no novo cargo que desempenha, poderá “contribuir para um mundo onde todas as gravidezes são desejadas, todos os partos são seguros e o potencial de todos os jovens é atingido", que é, de resto, o lema do Fundo da População da ONU?
O UNFPA tem esse lema exatamente por ter identificado essas áreas como fundamentais para o empoderamento dos jovens, das mulheres, das raparigas e dos homens nas sociedades. E isso resulta da reflexão de quais é que são os sinais de que realmente estamos perante uma sociedade que permite a cada pessoa realizar o seu potencial com dignidade e segurança.
E como é que este cargo pode contribuir para esse objectivo global?
Por um lado, o meu trabalho em Genebra é muito de representação e de demonstração da importância da agenda do UNFPA e dos programas e projectos nacionais para que a agenda seja atingida. Digamos que passa muito por mostrar aos Estados Membros, às organizações internacionais, à sociedade civil, às academias e à comunicação social, em Genebra e não só, que a agenda do UNFPA é crucial e, desse ponto de vista, deve ser acolhida e colocada no centro da sua ação. Isto significa muitas vezes que temos que ajudar a fornecer provas empíricas das nossas políticas, que temos que ajudar a desconstruir ideias preconcebidas sobre várias áreas do nosso trabalho.
Sabemos do seu envolvimento em muitas organizações não governamentais, quer como membro fundador, quer como membro dos corpos sociais. Que importância tem este trabalho no seu percurso profissional e pessoal?
Sempre soube que a actividade política é interessante - aliás, é a política que nos permite construir e desconstruir as realidades sociais. Tive sempre a noção da relevância do papel da política e fiz sempre questão de estar envolvida em organizações que pudessem traduzir a minha visão do mundo, que pudesse traduzir uma forma de ação que eu considerasse adequada. Nesse sentido, ajudei a fundar a Objetivo 2015, a associação que em Portugal fazia a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, fundei a Associação Portuguesa das Nações Unidas e sou sócia fundadora da P&D Factor, a organização que trabalha com o UNFPA em Portugal. Aliás, devo dizer que a P&D Factor ajudou-me imenso do ponto de vista da assessoria técnica, da informação especializada e da monitorização dos problemas e das soluções globais para os problemas enquanto fui deputada à Assembleia da República e coordenadora do GPPsPD.
Como vê o papel das ONG, sobretudo em Portugal?
Acho que são uma parte fundamental do meu exercício de cidadania, são cruciais para mim, para quem eu sou hoje. Têm um papel absolutamente estruturante na realização da sensibilização política, na realização de advocacy e do trabalho concreto com as situações.
Não acha que o acesso universal aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva de qualidade devia ser um ODS em si mesmo? Pergunto, porque no mundo em desenvolvimento ainda há duzentos milhões de mulheres que não têm acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, razão pela qual não conseguem planear as suas gravidezes, construir famílias que possam manter com dignidade e romper o ciclo da pobreza. E estes são indicadores essenciais do grau de sustentabilidade dos serviços de saúde e de desenvolvimento de um país.
Se pensarmos no processo de desenvolvimento e empoderamento, esse é um dos objetivos que, paradoxalmente, gera mais reação. Por um lado, quando se criaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2000, não houve condições para incluir o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva como uma das metas do ODM 5 (Melhoria da Saúde Materna). Todos sabíamos, e sabemos, que nunca se realizará o objetivo da Melhoria da Saúde Materna se as mulheres não tiverem acesso a todos os meios, a toda a informação e a todos os produtos contidos na categoria do acesso universal à saúde sexual e reprodutiva. Só em 2005, para começar em 2007, é que o conseguimos incluir essa questão no ODM 5, o que nos diz muito sobre a dificuldade em chegar a alguns consensos.
"Ao dizermos que queremos o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva queremos dizer que queremos dar às mulheres, às raparigas e aos jovens os meios e a informação para que possam planear a sua vida."
Talvez porque ainda há um desconhecimento grande sobre o que é que está realmente incluído no pacote do acesso à saúde sexual e reprodutiva?
Sim e também porque muitas dessas questões estão envolvidas em ideias preconcebidas: por exemplo, a ideia de que o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva poderá significar o controlo populacional ou que estaremos a promover um modelo de família que se quer sobrepor a outros. Ou a ideia de um modelo ocidental de sociedade distinto que pretendemos exportar. Mas não é nada disto. Ao dizermos que queremos o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva queremos dizer que queremos dar às mulheres, às raparigas e aos jovens os meios e a informação para que possam planear a sua vida.
Para que a possam planear em matérias tão estruturantes como, por exemplo, decidirem se querem e quando querem constituir família e qual o tamanho dessa família?
Justamente. Porque são essas decisões as traves mestras do processo de desenvolvimento das sociedades. O facto de um jovem ou uma jovem poderem decidir se quer constituir família e quando é que o vai fazer permite-lhes optar por ter acesso à educação e por ter uma formação que os qualifique para um emprego produtivo. Isso vai dar-lhes, por outro lado, voz e participação social e política na sociedade, ou seja, vai dar-lhes visibilidade, poder. Um poder transformador das sociedades, do ponto de vista político, económico e social.
Na verdade, podia estar a falar exclusivamente das mulheres e no quanto essas opções são impactantes nas suas vidas. Há poucas decisões que têm um impacto tão grande na vida das mulheres do que decidir ter filhos e decidir o espaçamento entre as gravidezes. Sabemos também hoje, mais do que nunca, como salvar a maior parte da vida de 300 mil mulheres que todos os anos morrem de causas ligadas à gravidez, ao parto e ao pós-parto. E tudo isto passa pela informação e produtos que devem ser disponibilizados aos jovens e às mulheres. Os ODS são uma agenda que salva vidas, uma agenda de dignidade, que não tem nada de imposição cultural e civilizacional.
No seu discurso da tomada de posse como secretário-Geral da ONU, António Guterres deu ênfase às mulheres, às meninas e aos jovens, que nos ODM foram completamente esquecidos. Acha que, com os ODS, os países vão interiorizar a mensagem e direcionar mais esforços e investimentos para esta parte específica da população?
Acho que a chamada de atenção de António Guterres foi fundamental. Primeiro, porque a fez no seu discurso de tomada de posse, o momento em que alinhou as prioridades do seu mandato. Ele já o tinha feito de forma bastante clara na sua declaração de candidatura e nas várias promessas que foi fazendo - e nós sabemos que António Guterres pretende cumprir as suas promessas, até porque já está a cumprir algumas: disse que iria promover a igualdade de género no secretariado da ONU e já cumpriu esse objetivo.
Em relação aos jovens, António Guterres disse uma frase que acho que é a frase que todos devemos reter: dar poder aos jovens não significa chamá-los para estarem presentes na fotografia nos momentos de tomada de decisão, significa dar-lhes uma voz.
Como é que se dá voz aos jovens?
Através do acesso à educação e ao emprego produtivo, do acesso ao planeamento familiar voluntário, aos meios e à informação que os jovens necessitam para se poderem proteger de infecções sexualmente transmissíveis e de gravidezes indesejadas, para que possam tomar as decisões mais estruturantes da sua vida.
“Os ODS são uma agenda que salva vidas, uma agenda de dignidade, que não tem nada de imposição cultural e civilizacional”
Acabar com as desigualdades de género e empoderar as mulheres e meninas é transversal a quase todos os ODS. Acha que desta vez, ao contrário do que aconteceu com os ODM, há condições para os países cumprirem a nova agenda até 2030?
Acho que as Nações Unidas estão mais conscientes do que é preciso fazer. As boas práticas estão recolhidas, sabemos como é que se constrói um mundo com mais dignidade para todos. O mundo não nos vai perdoar se não o fizermos. Há algumas dificuldades que esta agenda, do ponto de vista concetual, tentou vencer. Uma delas é os estados perceberam que a agenda se aplica a todos os estados, não é uma agenda, como os ODM foram, para os países em desenvolvimento mas paga pelos países desenvolvidos. A ideia de que "não fica ninguém para trás" significa que não fica mesmo ninguém para trás. Os países vão ser todos monitorizados e escrutinados para este cumprimento.
O que perguntei é se acha que deste vez isso vai ser cumprido. Há condições, há vontade política, para os países cumprirem a agenda?
Acho que há mais condições do que havia, ainda que em alguns países o debate deveria ser feito com mais intensidade, uma vez que, naturalmente, haverá países que resistem à aplicação da agenda. O bom desta agenda é que é mais assertiva e é entendida como obrigatória - os países têm todos que ter planos de ação para atingir os ODS. É uma mudança que foi aceite pelos estados, que tem de ser seguida de iniciativas políticas, legislativas e governamentais. Daí o papel fundamental de monitorização da sociedade civil e da comunicação social.
Em Portugal, que medidas devem ser implementadas para que o País cumpra atempadamente os ODS?
Acho que é de louvar o esforço que o Portugal está a fazer, neste momento, de desenhar um plano nacional em que sejam identificadas sectorialmente as prioridades. Confesso que quando soube que a metodologia internacional iria ser a definição de prioridades dentro dos dezassete objetivos e a construção de um calendário para que até 2030 os ODS sejam todos "tocados" gerou-me alguma apreensão, porque sei que quando os estados podem decidir prioridades raramente escolhem os direitos das mulheres, a saúde sexual e reprodutiva,. Tenho perfeita noção disso, até porque há uma falta de visão política de quais são os investimentos que realmente funcionam. Mas, a verdade é que a metodologia é essa e temos que fazer com que seja eficaz e nos leve a alcançar os objetivos que queremos.
Neste momento o Portugal está a fazer um esforço para identificar sectorialmente as prioridades e devo dizer que o empenho é de facto grande, porque o País sujeitou-se voluntariamente a uns primeiros exames do cumprimento da agenda. Isso significa que está consciente, por um lado, da agenda a nível interno e, por outro, do exemplo que pode dar internacionalmente. Sendo um País que ainda recentemente enfrentou uma grave crise financeira, mostra assim que o cumprimento da Agenda pós 2015 não é só uma questão de recursos financeiros, é uma questão de empenho político e de redirecionamento do investimento do País.
"Neste momento, a nossa grande preocupação é mostrar à administração Trump que o mundo precisa do empenhamento dos EUA nestas matérias."
Com Donald Trump à frente de uma economia mais fortes do mundo, teme que os ODS fiquem gravemente comprometidos?
O atual presidente norte-americano tem, de facto, suscitado algumas preocupações a quem trabalha estas matérias, sobretudo porque tem proferido declarações que questionam a existência desta ordem internacional liberal assente nos princípios da Cooperação e da paz pelas organizações internacionais. Temos um mundo que, nos últimos 70 anos, foi construído em torno destes valores. Portanto, quem os desafia e questiona causa-nos sempre alguma apreensão. Saber que essa pressão vai resultar em medidas efetivas é algo que vamos ter que esperar para ver, mas há um sinal que nos deixa em alerta, que é sabemos que de cada vez que os Estados Unidos da América suportam uma política pública, essa política pública tem uma visibilidade e uma atenção que ultrapassa muito o território dos EUA. Ou seja, os Estados Unidos são um parceiro fundamental em qualquer projecto de cooperação, em qualquer promoção de direitos humanos, e são um parceiro absolutamente incontornável no que diz respeito ao apoio financeiro e ao apoio político em matéria de saúde sexual e reprodutiva.
Segundo a última contagem que se fez, os EUA investiriam por ano cerca de 600 milhões de dólares na agenda ampla de população e desenvolvimento.
Mas Trump diz que o apoio acabou...
Sabemos que a sociedade civil norte-americana é muito vibrante e muitos destes compromissos não estão dependentes de alternâncias políticas. São compromissos de longa data, são projectos que nunca foram postos em causa, mesmo quando as administrações alternam. Por exemplo, os projectos dos EUA no que diz respeito ao VIH/Sida foram lançados pelas administrações republicanas e têm sido contínuos. Diria que neste momento a nossa grande preocupação é mostrar à administração Trump que o mundo precisa do empenhamento dos EUA nestas matérias, precisa do seu financiamento, mas precisa sobretudo que a mensagem seja uma mensagem de apoio, clara e continuada. E mostrar que estamos a falar de dignidade e que estamos a salvar vidas.
Trump à parte, como é que os ODS poderão ser cumpridos e como é que poderá haver o necessário reforço da Ajuda Pública ao Desenvolvimento para a saúde materno-infantil, planeamento familiar, direitos sexuais e reprodutivos, igualdade de género se a APD está a diminuir ano após ano? Portugal também reduziu a sua contribuição.
A questão do financiamento está sempre em cima da mesa. Muitas das narrativas de explicação de incumprimento estão a assentar hoje na incapacidade de cumprir com as obrigações financeiras que isso implica, porque o desenvolvimento implica sempre um investimento. Mas também sabemos que há medidas economicamente saudáveis e produtivas, que ainda são vistas por muitos estados como despesas. O exemplo melhor é o investimento nos jovens e nas mulheres. Sabemos, por exemplo, que por cada dólar investido na saúde sexual e reprodutiva, há um retorno de cerca de 120 dólares em aumento de produtividade no País. Porque são riscos de gravidez que são evitados, são lesões no parto que são evitadas, são despesas médicas que são evitadas, é a produtividade que é mantida, numa lógica de investimento. Sabemos hoje que investir na saúde sexual e reprodutiva não é só um dever como é economicamente inteligente. Portanto, é preciso mostrar aos estados que investir no desenvolvimento das suas populações e até investir no desenvolvimento dos outros povos (vivemos num mundo globalizado) é produtivo para as economias nacionais.
Quem é Mónica Ferro? |
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Tem 44 anos, é professora de Relações Internacionais no ISCSP-Universidade de Lisboa. Foi deputada à Assembleia da República, onde foi vice-presidente da bancada do PSD e coordenadora do Grupo Parlamentar Português para as questões de População e Desenvolvimento, e foi vice-presidente do Fórum Europeu de Parlamentares sobre População e Desenvolvimento. Ajudou a fundar a Objetivo 2015, a associação que em Portugal fazia a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, fundou a Associação Portuguesa das Nações Unidas e é sócia fundadora da P&D Factor, a organização que trabalha com o UNFPA em Portugal. Desde Abril de 2017, dirige a Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População. |