Entrevista

. “A saúde vale mais do que um documento”

António Carlos SilvaAntónio Carlos da Silva já perdeu a conta às mulheres, homens e crianças que atendeu no Espaço Cidadania, no bairro do Casal de Mira, na Amadora. A maior parte, de comunidades migrantes de Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola, que por falta de um simples documento não têm acesso à Saúde. Não que o sistema lhes vede a entrada, mas porque têm medo de serem enviados para os Países de origem. Para este médico especialista em saúde pública, o problema reside no desconhecimento da lei.

Entrevista: Carla Amaro | Fotografias: Tiago Lopes Fernández

Os dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, entre 2005 e 2015, mostram 31 reclamações relativas à Saúde. E no último Migrant Integration Policy Index (Mipex), de 2014, onde se mede as políticas de integração em 38 países, incluindo a União Europeia, a Saúde era o indicador em que Portugal estava pior. Tem a mesma percepção?

Sim, infelizmente a dificuldade das comunidades imigrantes no acesso aos serviços de saúde continua a ser uma realidade em Portugal. Mas o problema não reside exclusivamente no acesso físico à saúde, reside em muitos aspetos. Ou seja, não é só a dificuldade em ir às consultas, há factores condicionantes, como o desconhecimento da lei e de como devem chegar aos serviços. Enfim, tem muito a ver com a falta de informação sobre os direitos e os deveres.

Há também o problema de não saberem utilizar os serviços públicos (nós podemos falar mal, mas temos dos melhores sistemas de saúde da Europa).

O que deve ser melhorado? Portugal tem que investir em quê para dar resposta a essa situação?

Tem que investir na informação e na formação. Porque é muito importante explicar às pessoas que o objectivo das consultas é tratar delas, não é policiá-las.

“A lei diz que todos os imigrantes com documentos regularizados têm os mesmos direitos de acesso à saúde que os nacionais, mas entre aqueles que não não têm documentos, há uns que têm direito ao acesso, como as mulheres grávidas e pessoas portadores de doenças graves.”

Como assim policiá-las?

Muitas pessoas até sabem que as consultas existem e que podem aceder a elas, mas, simplesmente não usufruem delas porque têm medo. Refiro-me especialmente às pessoas sem documentos ou cujos processos de autorização de residência apresentam lacunas. E é preciso passar-lhes a mensagem de que a nossa função é tratar, cuidar, não somos polícias, não estamos cá para pôr as pessoas fora de Portugal.

Para outras pessoas, a razão está associada a determinado tipo de crenças, isto é, estão habituadas a procurar a cura para os seus males recorrendo à “medicina tradicional”. Em vez de procurarem um médico num centro de saúde ou num hospital, primeiro procuram outras alternativas, porque acreditam que os “tratamentos alternativos” são mais eficazes do que a medicina convencional. De maneira que também é necessário trabalhar este aspecto da informação junto dessas pessoas. O papel dos técnicos de saúde não é ostracizar as pessoas, é respeitar a sua identidade cultural, as suas crenças, tabus, mitos, os seus costumes e tradições.

E as condições económicas não dificultam também o acesso dessas pessoas aos cuidados de saúde?

Sem dúvida, esse é outro aspecto a ter em consideração. Existe uma barreira administrativa muito grande e não estou a falar do funcionário administrativo, mas do sistema em si. Se uma pessoa não tem documentos, quando chega a uma unidade de saúde e lhe pedem o cartão de utente e ela não tem, é claro que logo aí há um entrave. Até porque alguns administrativos das Unidades de Saúde não estão, ainda, preparados para lidar com esta nova realidade.

Mas, ao que sei, na Amadora essas situações não acontecem...

Sim, é verdade. Na Amadora há pessoas sem documentação ou não a têm em dia, no entanto, os funcionários dos centros de saúde há muitos anos que estão preparados para responder a estas situações. Já sabem que existe legislação que permite o acesso de todos aos serviços de saúde, mesmo os que não têm documentos atualizados. É um direito. A lei diz que todos os imigrantes com documentos regularizados têm os mesmos direitos de acesso à saúde que os nacionais, mas entre aqueles que não não têm documentos, há uns que têm direito ao acesso, como as mulheres grávidas e pessoas portadores de doenças graves, ligadas à saúde pública.

No entanto, quando se vai esmiuçar a origem do problema, verifica-se que os serviços informáticos, por vezes, não permitem avaliar bem as situações, caso a caso.

Algumas vezes a questão prende-se com o pagamento, porque uma coisa é ter acesso, outra é poder pagar esse acesso, as despesas das consultas e dos tratamentos.

Em Portugal não se pode dizer que há pessoas sem acesso à saúde, porque, de facto, perante a lei, toda a gente tem acesso, não há exclusão...

Pois, mas, na prática, há...

Na prática há, em determinadas situações.

“Só o facto de eles pedirem à pessoa o Cartão de Cidadão ou o Cartão de Utente é um entrave que não permite passar da fase da inscrição para a do atendimento em consulta.”

Se a lei protege essas pessoas, porque é que continua a existir discriminação?

Repare, a discriminação pode não ser directa, muitas vezes está associada ao desconhecimento da lei por parte dos profissionais. Só o facto de eles pedirem à pessoa o Cartão de Cidadão ou o Cartão de Utente é um entrave que não permite passar da fase da inscrição para a do atendimento em consulta. E o problema é que algumas pessoas continuam a ter receio de explicar a sua situação, porque têm medo de ser recambiados para os seus países de origem. Há uma série de aspectos associados e que não têm sido bem explicados.

Quer dizer então que as unidades de Saúde Familiares não estão preparadas para receber imigrantes em situação irregular.

Não, infelizmente não estão, o que é grave. Porque funcionam em regime de contratualização, logo, só atendem quem é portador do Cartão de Utente.

E a quem cabe esse esclarecimento que não é feito junto das pessoas migrantes?

A todos nós. Isso não cabe só ao Estado. Em todo o caso, existe um Alto Comissariado para as Migrações que disponibiliza um conjunto de informação essencial e de interesse para os migrantes, mas a verdade é que, muitas vezes, a informação não passa.

Ou seja, existem barreiras não tanto da parte da lei nem dos serviços, mas barreiras autoimpostas pelas pessoas, porque têm medo?

Sim, as duas coisas.

Então da parte dos serviços, qual é o problema?

É não conhecer a pessoa que tem à frente, é não conhecer a realidade da migração em Portugal, é não conhecer os nossos migrantes. Muitas unidades de saúde estão preparadas para funcionar mediante contratualização, ou seja, tem que estar tudo legal, as UFS não atendem geralmente pessoas que não estão legais no País. Depois há outro problema: os profissionais de saúde e os estudos feitos dizem que estas pessoas não falam a língua portuguesa e isso, em muitos casos, é verdade, mas também por isso devia haver mediadores. Os problemas existem, é preciso resolvê-los. Demora tempo, mas é possível.

Mas, se fomos os primeiros na Europa a ter legislação nesta matéria e somos considerados um País de bom acolhimento e boas práticas, nomeadamete em termos de cuidados de saúde, porque continuamos a discrimnar as comunidades migrantes?

Pois, essa é justamente a questão. Há muita falta de informação da parte dos migrantes por um lado, e muito burocracia da parte dos serviços por outro e isso não está certo, porque as pessoas, independentemente de terem documentos, são seres humanos. Uma vida vale mais do que um papel, um documento. Devia haver divulgação de informação junto das comunidades e ações de formação para os funcionários saberem lidar com estas situações, e estas iniciativas deviam ser promovidas pelas Câmaras Municipais e pela sociedade civil.

A AJPAS, da qual é presidente de direção, foi pioneira na formação de profissionais de saúde, para que tomassem as unidades de saúde como uma forma de inclusão e não de exclusão. Aliás, recebeu em 1998 o Primeiro Prémio Europeu de Educação para Saúde…

É verdade. A AJPAS é uma Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde, fundada em 1993 e reconhecida como instituição de utilidade pública. Inicialmente desenvolveu a sua atividade nas áreas da Saúde Pública e do Apoio Social. Mais tarde, para responder aos desafios e às necessidades da população-alvo, que foram surgindo ao longo dos anos, alargou a sua intervenção comunitária às áreas da Educação, do Emprego e da Formação Profissional. No fundo, a missão da AJPAS é pugnar pelo exercício de cidadania de pessoas em situação de exclusão social ou vítimas de desigualdades, através de uma intervenção comunitária global e integrada, com vista à prevenção de riscos na área da saúde, capacitação de jovens e adultos para a integração no mercado de trabalho e prestação de cuidados vários a crianças, jovens e adultos.

O espaço onde estamos, o Espaço Cidadania, no Bairro Casal da Mira, na Amadora, pertence à AJPAS. O que é que acontece aqui?

Aqui prestamos serviço em quatro valências: CLAIM (Centro Local de Apoio aos Migrantes), saúde, educação e justiça. Temos consultas médicas, apoio jurídico, aulas de alfabetização para adultos, e resolvemos problemas da população migrante, sobretudo relacionados com documentação.

São serviços gratuitos?

São.

Acha que o bairro onde funciona o Espaço Cidadania [bairro do Casal da Mira] é um microcosmos representativo da realidade nacional no que se refere à população migrante?

Não sei, mas sei que aqui desenvolvemos as boas práticas em questões relacionadas com a saúde, a Educação e o apoio jurídico. O problema é que algumas pessoas ainda desconhecem esse apoio prestado pela AJPAS no Espaço Cidadania. Veja um exemplo: um senhor que tinha um problema com uma operadora de telecomunicações e não sabia como resolvê-lo, comentou o assunto na farmácia do bairro e foi aí que lhe disseram que podia encontrar aqui ajuda. Está a ver? Essa pessoa é do bairro e não sabia o que fazemos aqui.

“No caso de uma grávida, sabem que os custos do não atendimento (em caso de complicações) são muito superiores aos custos do atendimento.”

Todas as grávidas estão isentas das taxas moderadoras na saúde. Mas há imigrantes sem visto de residência que se queixam de barreiras de acesso a consultas e exames. Tem ideia se os casos têm aumentado no último ano? 

Não, não, até porque em relação às grávidas e às crianças verifica-se, da parte dos serviços, uma espécie de conivência e sensibilidade para com a situação de vulnerabilidade em que se encontram. Quer dizer, se lhes aparece uma grávida ou uma criança sem documentação, atendem-nos. E no caso de uma grávida, sabem que os custos do não atendimento (em caso de complicações) são muito superiores aos custos do atendimento. As queixas julgo que se relacionam mais com o facto de as pessoas virem para Portugal para terem os filhos e por via disso ficarem legais. Daí haver uma certa desconfiança por parte dos serviços em relação aos imigrantes.

Ainda recentemente, uma entidade cobradora da saúde fez circular por todos os serviços o documento para o acesso de imigrantes aos serviços de saúde, onde está tudo explicado. Mas uma coisa é a informação estar no papel, outra é a sua aplicabilidade.

Pelo que diz, os desafios ainda são imensos no que respeita ao acesso à saúde da parte das comunidades migrantes...

São e a aplicabilidade da lei é o maior. E, como disse, também a dificuldade económica das pessoas. Ainda que não pareça, para muitos imigrantes a deslocação de autocarro ou de metro para irem às consultas nos centros de saúde fica cara. Outro aspecto que também complica é o desconhecimento da legislação que permite o acesso dos imigrantes aos cuidados de saúde, quer da parte dos próprios imigrantes, quer dos funcionários do SNS.

Depois, como lhe falei, é a questão cultural (preferem ir primeiro a outros sítios). Por último, acho que não promovemos bem a nutrição e a sua importância para a saúde.

Mas aqui no Bairro não há um projecto que visa justamente informar as pessoas para a importância de comer bem?

Sim, mas eu não estava a falar concretamente do bairro, mas sim em Portugal. Aqui no Bairro temos uma parceria com um Chef, que vai “pegar” nas receitas dos países de origem das comunidades migrantes que estão representadas no bairro (guineenses, cabo verdianos e angolanos) e adaptá-las a um modo de cozinhar mais saudável. No fundo, ele vai ensinar as pessoas a confeccionarem alimentos que sempre fizeram parte dos seus hábitos alimentares, como por exemplo cachupa, mas de uma forma mais saudável, reduzindo o sal e retirando as gorduras. E também dá orientações sobre as quantidades que as pessoas devem consumir a cada refeição.

A Mutilação Genital Feminina continua a afectar milhares de meninas e mulheres no mundo e em Portugal mais de seis mil, com mais de 15 anos, foram submetidas a alguma forma de MGF. A prática está muito associada à Guiné-Bissau, mas é praticada por muitas outras comunidades, não é verdade?

Sim, acho errado “colar” essa prática nefasta à Guiné-Bissau. Há países onde a prática é mais prevalente. Na Guiné-Bissau é 45%, mas na Guiné Conacri por exemplo é mais de 90%. E em Portugal temos algumas comunidades migrantes praticantes da MGF e o problema é que não temos capacidade de ir ao encontro delas.

Porquê?

Primeiro, porque são comunidades muito fechadas. Segundo, por causa da língua.

Está a referir-se a comunidades oriundas de que países?

Da Guiné Conacri, do Senegal, da Gâmbia...

Acha que em Portugal os profissionais de saúde estão habilitados para tratar casos de MGF?

Alguns estão preparados, mas não chega. É preciso investir na criação de serviços de apoio especializado para as vítimas e capacitar os serviços para informar e formar. Na área da formação, é importante promover ações contínuas não só para profissionais de saúde como para professores e agentes da autoridade.

Acha que o Dia Internacional de Tolerância Zero contra MGF (comemorado a 6 de Fevereiro) tem o impacto desejado?

Sim, porque é importante falar-se desse assunto. Hoje as pessoas sabem que existe e sabem que é uma prática nefasta. Nesse dia toda a gente fala, mas não pode ser só nesse dia. É preciso falar todos os dias.

É por isso que teme que aconteça com a MGF o mesmo que aconteceu com o VHI/sida?

É, porque no caso do VHI/Sida, depois de uma fase de grande euforia em que se fizeram campanhas de prevenção umas atrás das outras, o que foi muito positivo, o foco passou para o tratamento e deixou-se praticamente de parte a prevenção. Espero que o mesmo não aconteça com a MGF. O tratamento é fundamental, mas a prevenção também.

Quem é António Carlos da Silva?

António Carlos SilvaCabo-verdiano a viver em Portugal há 39 anos, é médico de Saúde Pública e presidente da direção da AJPAS - Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde, com intervenção nas áreas da Saúde, Educação, Social, Emprego e Formação Profissional.

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