Entrevista

. “Queremos intervir na segregação sexual das escolhas educativas de raparigas e rapazes”

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Está há poucos meses à frente da Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, mas tem um percurso sólido e reconhecido na investigação das questões de género e direitos humanos das mulheres. Rosa Lopes Monteiro quer marcar o seu mandato com uma mudança de paradigma em várias frentes, com especial foco nos jovens.

Entrevista: Carla Amaro

Fotografias: Tiago Lopes Fernández

Quais as prioridades que devem ser reforçadas ou incluídas no que respeita à Igualdade de Género e Direitos das Raparigas? Estão previstas na nova Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030?

As políticas públicas devem desenvolver abordagens estruturantes que atuam, de forma articulada, em todas as dimensões da discriminação, não só ao nível da correção, mas também da prevenção das desvantagens. Por isso, a nova Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 (Portugal + Igual), aprovada pelo Governo no dia 8 de março, assenta na eliminação dos estereótipos, focando nas experiências múltiplas de discriminação e numa perspetiva de ciclo de vida. Neste âmbito, uma das áreas em que queremos intervir é na segregação sexual das escolhas educativas de raparigas e rapazes, e que tem impactos ao longo das suas vidas e em dimensões críticas como os rendimentos e as pensões. Estamos, entre outros, a desenvolver projetos dirigidos às camadas mais jovens que contrariam as representações estereotipadas das áreas de estudos e das profissões, e apostamos também na promoção das competências digitais das raparigas, fomentando a sua participação plena no progresso digital.

Outra área fundamental é a prevenção e eliminação de todas as formas de violência contra as mulheres e raparigas. O fenómeno da violência no namoro tem ganho visibilidade e atinge números preocupantes. Segundo um estudo recente da UMAR, 69% dos/as jovens inquiridos/as legitima, pelo menos, uma forma de violência no namoro, como o controlo, a perseguição e a violência sexual. Vamos priorizar a consolidação da intervenção e trabalhar ao nível da informação, da literacia de direitos e da proteção, mas também da prevenção e desenvolvimento de competências interpessoais. Apoiámos diretamente com verbas dos jogos sociais três projetos, um da Plano i, outro da UMAR e outro da Corações com Coroa; acabamos também de aprovar projetos de prevenção e combate à violência no namoro no âmbito do POISE. A partir daqui é fundamental sistematizar a informação produzida por estas intervenções e construir de forma mais articulada sistemas de prevenção primária e secundária. Também neste âmbito, e alinhando plenamente com a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), a nova estratégia reforça as políticas ao nível da prevenção e abandono da prática da mutilação genital feminina e alarga a intervenção aos casamentos infantis, precoces e forçados, formando e capacitando profissionais e desenvolvendo um trabalho próximo das comunidades, entre outras medidas.

A igualdade de género parece que está a entrar, finalmente, na agenda dos media e, de forma transversal, em várias agendas de política. Em seu entender, a que se deve esta mudança e é ela estrutural?

A transversalização da promoção da igualdade entre mulheres e homens a vários setores e áreas de política pública é fundamental a qualquer intervenção que se queira transformativa e sustentável. O Governo aposta de forma empenhada nesta transversalização, que assume como um dos objetivos da nova estratégia. Esta é uma tendência que se verifica a nível global, o que tem naturalmente impactos muito positivos na definição de agendas alinhadas e que concorrem para compromissos partilhados. A Agenda 2030 é exemplo claro disso, criando um objetivo específico, nesta matéria, mas transversalizando-o, simultaneamente, ao nível dos outros objetivos de desenvolvimento sustentável. Também a União Europeia tem feito um longo caminho na afirmação do gender mainstreaming enquanto princípio subjacente e transversal à definição das várias políticas europeias. Importa, no entanto, garantir que a noção de mainstreaming é acompanhada da definição de objetivos claros em termos de resultados e de impactos.

E como é que isso se garante, para que não seja mais do que uma mera inscrição do princípio em declarações políticas?

Criando condições que se traduzam em medidas e ações concretas geradoras de mudança.

A igualdade entre mulheres e homens nunca teve tanto destaque na agenda mediática e penso que isto se deve a duas razões fundamentais. Por um lado, às controvérsias globais em torno de movimentos como o #metoo. Os media despertaram para a evidência das discriminações que impendem sobre as mulheres, como sejam as diversas formas de violência contra as raparigas e as mulheres; paralelamente temos hoje uma nova geração de jornalistas bem mais consciente e conhecedora das questões de género. Por outro lado, este boom mediático é potenciado pelos novos media, em particular pelas redes sociais, devido ao modo como estes fazem despertar os ativismos criando agendas próprias, mesmo quando os meios tradicionais não ecoam os assuntos.

Em Portugal, uma das valências onde é clara a desigualdade entre homens e mulheres, em prejuízo das mulheres, é no trabalho: as mulheres ganham menos e ocupam menos lugares de decisão, incluindo no Parlamento, quer na política quer nas empresas. O Parlamento aprovou em Junho a nova lei que se destina “às empresas públicas e às empresas cotadas em bolsa” e pretende que a partir de 2018 estas fiquem obrigadas a cumprir uma quota mínima do género menos representado nos conselhos de administração e nos órgãos de fiscalização. Assim, pelo menos 33,3% dos cargos terão de ser ocupados por mulheres. Para as cotadas, esse mínimo é de 20% e sobe para os 33,3% em 2020.” Como está o processo?

A lei que refere foi uma iniciativa enquadrada na Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas que o Governo vem desenvolvendo desde 2015. Esta agenda é reflexo da abordagem estrutural a que aludi, priorizando a intervenção em cinco áreas centrais: a segregação sexual das profissões, a parentalidade, a conciliação da vida profissional, familiar e pessoal, a tomada de decisão e a igualdade salarial. Os limiares mínimos de representação equilibrada já estão, de facto, em vigor para as empresas públicas e cotadas e que devem cumpri-los desde 1 de janeiro deste ano. Também assim, ao abrigo desta lei, as empresas estão a elaborar planos anuais para a igualdade que promovem áreas como a igualdade salarial e a conciliação.

Ainda no ano passado, o Governo aprovou uma proposta de lei de promoção da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual e de igual valor. Esta proposta promove a transparência ao nível dos salários, a definição de salários com base na avaliação objetiva das componentes das funções, e cria mecanismos que visam garantir o cumprimento efetivo do princípio da igualdade salarial. O diploma foi apresentado no Parlamento em novembro e aguarda discussão na especialidade na primeira Comissão da Assembleia da República.

Reforçando a promoção da participação equilibrada na tomada de decisão, importa referir que, também no passado dia 8 de março, o Governo aprovou duas propostas de lei que visam garantir um limiar mínimo de 40% de mulheres e de homens nos cargos de direção superior da Administração Pública, nos órgãos colegiais de direção das instituições de ensino superior públicas e das associações públicas, bem como nos órgãos de decisão políticos, neste último caso propondo-se a alteração da designada Lei da Paridade. Estas iniciativas mais recentes integram já a nova Estratégia que define medidas concretas nas várias áreas da Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas a desenvolver nos próximos quatro anos, articulando-as com outras áreas como a educação, o desenvolvimento científico e tecnológico, a saúde, a governança, e a exclusão social, assim fomentando uma intervenção integrada e sustentável.

Nos últimos anos os dados são mais frequentes e acessíveis ao grande público. Para isso, muito têm contribuído a investigação académica, os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas (iniciativa da UMAR) ou as mais recentes publicações da CIG, como por exemplo o relatório igualdade de género em Portugal: indicadores-chave 2017. Enquanto investigadora em matéria de igualdade de género (IG), com especial atenção às questões do mercado de trabalho e cidadania, quais são, em sua opinião, os desafios e as discriminações que precisamos de enfrentar para que a IG seja uma realidade em Portugal. O que podemos saber em matéria das avaliações que têm sido desenvolvidas?

São inegáveis os progressos que têm sido alcançados na promoção da cidadania e da igualdade de género, mas persistem problemas cuja resolução constitui um desafio às políticas públicas. Entre as questões a merecer uma atenção especial conta-se o da promoção do equilíbrio de género na tomada de decisão, já que quer na esfera política, quer no domínio económico, existem ainda muitos indicadores que revelam uma fraca participação das mulheres, que não reflete o investimento das mulheres (e do País) na sua maior preparação académica, que justificaria o seu acesso a lugares de topo. Nesse sentido, e como há pouco referi, no passado dia 8 de março, foram aprovadas em Conselho de Ministros duas propostas de lei que visam garantir um limiar mínimo de 40% de mulheres e de homens nos cargos de direção superior da Administração Pública, nos órgãos colegiais de direção das instituições de ensino superior públicas e das associações públicas, bem como nos órgãos de decisão políticos, neste último caso propondo-se a alteração da designada Lei da Paridade.

No domínio da economia, a representação de mulheres em lugares de decisão económica, nomeadamente em grandes empresas, é também muito reduzida (em 2017, as mulheres eram apenas 15,5% dos membros dos conselhos de administração das empresas do PSI 20)...

Para combater esta desigualdade foi aprovada, em 2017, uma Lei que estabelece limiares para a proporção de pessoas de cada sexo nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial (33,3 %, a partir de 1 de janeiro de 2018) e das empresas cotadas em bolsa (20 %, a partir da primeira assembleia geral eletiva após 1 de janeiro de 2018, e 33,3 %, a partir da primeira assembleia geral eletiva após 1 de janeiro de 2020).

Outro tema que merece uma atenção especial é o da igualdade no mercado de trabalho. Embora a participação das mulheres no mercado de trabalho seja elevada, nomeadamente quando comparada com a de outros países europeus, essa participação é muito marcada pela marca dos estereótipos e papeis sexuais, evidenciando uma segregação sexual do mercado de trabalho, quer em termos das profissões e áreas de atividade (desigualmente valorizadas), em que mulheres e homens se concentram, quer pela sua desigual distribuição nos diversos níveis da hierarquia profissional. A título de exemplo, refira-se que o seu melhor estatuto académico faz com que as mulheres sejam altamente maioritárias na profissão de “especialistas das atividades intelectuais e científicas” (60%), mas em contraste são apenas 33% da categoria profissional “representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, dirigentes, diretores/as e gestores/as executivos/as”.

É igualmente motivo de preocupação a desigualdade salarial entre homens e mulheres, que em 2015 era de 16,7% em desfavor das mulheres. É urgente conhecer de forma mais profunda e rigorosa este problema, especialmente dos mecanismos subtis e invisíveis que determinam estas desigualdades e discriminações nos sistemas de classificação das funções e respetivas remunerações. É também fundamental garantir uma maior literacia de direitos por parte das mulheres e mais competências de negociação salarial, como temos previsto na Estratégia Portugal + Igual.

No âmbito das políticas públicas, que atenção está a merecer a questão das assimetrias nos usos do tempo entre homens e mulheres?

Está a merecer uma atenção especial. As assimetrias nos usos do tempo entre homens e mulheres são reflexo dos papéis sexuais convencionais que temos de combater, desde logo na educação das crianças. É certo que o papel assumido pelos homens tem apresentado algumas evoluções, muito pela indução a partir das políticas públicas de promoção de paternidade mais ativas, mas muito há ainda para fazer. Para combater a persistência destes fenómenos tem sido desenvolvido um trabalho constante junto de docentes, nas últimas décadas, promovendo a integração da dimensão de género nas práticas educativas formais e nas dinâmicas organizacionais das instituições educativas. Pretende-se, assim, contribuir para tornar efetiva a educação para a cidadania, garantindo que se configure e estruture a partir, entre outros, do eixo das relações sociais de género, visando uma verdadeira liberdade de escolha dos percursos académicos e profissionais e dos projetos de vida por parte quer de raparigas, quer de rapazes.

Num retrato sobre a igualdade de género não pode ainda deixar de referir-se o problema da violência contra as mulheres e de género, que continua a afetar a sociedade portuguesa, como aliás a generalidade das sociedades.

Expressão máxima da desigualdade de género é a violência contra as mulheres. A violência doméstica continua a ter nas mulheres as maiores vítimas e a violência no namoro é cada vez mais preocupante. As famílias e as escolas, enquanto espaços protetores, são questionáveis, temos assistido ao reforço do investimento no apoio às vitimas mas a prevenção estrutural e contínua em matéria de igualdade e direitos humanos, para a não violência e não discriminação, está há muito esquecida. Existem campanhas, mas não chega. Parece claro que falta investir na educação dos rapazes e raparigas, inclusive na educação para a igualdade e não discriminação, mas também para a vivência da intimidade sem violência. Tem prevista alguma intervenção neste sentido?

A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), divulgada em 2017, numa articulação entre a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade e a Secretaria de Estado da Educação, e que tive o prazer de coordenar, determina a implementação da componente curricular (disciplina) de Cidadania e Desenvolvimento em todos os níveis de educação e ensino (da Educação pré-escolar até ao final da escolaridade obrigatória), reconhecendo que compete à escola proporcionar às crianças e jovens processos educativos que promovam o aprofundamento de conhecimentos e competências de participação plural e responsável de todas e todos na construção de si como cidadãs/ãos e de sociedades mais justas e inclusivas, no quadro da democracia, da diversidade e da defesa dos direitos humanos. Entre os domínios (áreas temáticas) de educação para a cidadania definidos como não opcionais, encontram-se a igualdade de género e a Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva). Acredito no caráter transformador da educação formal, mas também da educação não formal, pelo que temos de garantir que esta nova abordagem de política educativa tenha sucesso.

É fundamental não esquecer o papel que a CIG tem tido desde há mais de duas décadas numa educação livre de estereótipos sexistas, quer através da publicação de Guiões fundamentais para o pessoal docente, quer através da formação e capacitação de muitos e muitas profissionais que são o garante de que o conhecimento e a desconstrução chega às crianças e jovens de forma correta. É, porém, fundamental reconhecer que temos hoje de usar de toda a criatividade e inovação para chegar aos grupos mais jovens numa linguagem e meio que entendam e apropriem. De facto, as campanhas não bastam. Temos o LabX do Governo a desenvolver trabalho neste sentido e queremos trabalhar com os projetos e ONG que estão no terreno com o nosso apoio para reforçarmos as estratégias de prevenção.

Há muito que se fala nas vantagens de uma disciplina de educação para a cidadania nas escolas, mas é um projeto que vai sendo adiado ano após ano. Será no seu mandato que este “projeto” verá finalmente a luz do dia? Essa disciplina, no seu entender, abordaria também as práticas nefastas contra as raparigas e mulheres, como a Mutilação Genital Feminina, os casamentos infantis, precoces e forçados?

No presente ano letivo a ENEC está a ser implementada pelas 235 escolas envolvidas no programa piloto da Autonomia e Flexibilização Curricular. Pessoal docente e não docente destas escolas teve acesso a uma formação online com orientações pedagógicas para implementar a Estratégia. No próximo ano letivo, o Ministério da Educação prevê a generalização da implementação da ENEC a todos os estabelecimentos de ensino. Estamos a trabalhar no sentido de reforçar as competências de profissionais de ensino e das escolas para o fazerem. É de salientar, e esse foi o nosso ponto de partida no Grupo de Trabalho que coordenei e que apresentou proposta de ENEC, que existe um conjunto muito diverso e interessante de projetos e ferramentas de educação para a cidadania que é importante potenciar, escalar e disseminar.

As práticas nefastas contra as raparigas e mulheres, como a Mutilação Genital Feminina e os casamentos infantis, precoces e forçados serão abordados nessa “disciplina”?

As práticas nefastas contra as raparigas e mulheres (Mutilação Genital Feminina, casamentos infantis, precoces e forçados, etc.) são assuntos a abordar nos domínios (áreas temáticas) de igualdade de género, Sexualidade, direitos humanos, por exemplo.

Uma das estratégias que parece ser necessário repensar são os planos municipais e inter-municipais na área da igualdade e cidadania (porque os atuais são confusos e não têm referencial de ação), para assegurar a continuidade nas respostas de apoio às vítimas quando os fundos comunitários acabam ou estão em transição. Esta estratégia mantém-se? Como prevê a sua operacionalização?

A territorialização das políticas de igualdade e cidadania é uma estratégia deste Governo que se manterá. A nova Estratégia para a Igualdade e Não-Discriminação (Portugal + Igual) apresenta como um eixo estratégico a territorialização das políticas e das medidas definidas nos três Planos de Ação que a integram, adquirindo uma dimensão transversal em toda a estratégia. O sucesso da territorialização das políticas públicas resulta, necessariamente, da capacidade de envolvimento e de apropriação por parte das autarquias dessas mesmas políticas e medidas, pelo que os Planos Municipais e Intermunicipais constituem instrumentos de compromisso para a planificação e ação territorial, participada e em rede, fundamentais no combate a problemas estruturais e de natureza multidimensional. Neste momento importa avaliar o desempenho destes instrumentos e introduzir as melhorias necessárias ao seu desenvolvimento equilibrado no território e em diálogo com a Estratégia Nacional.

Esteve recentemente no Brasil (reunião da CPLP) e no Egipto, dois países com as mais altas taxas de casamentos infantis (Brasil) e MGF (Egipto). Estes são temas abordados nas reuniões ou contactos entre os seus pares? O que pensa fazer junto das famílias praticantes destas práticas nefastas em Portugal e junto dos seus pares e instituições internacionais?

É comum que em reuniões ou eventos internacionais sobre os Direitos das Mulheres, como o que sucedeu no Egipto, ou igualdade de género, como o que sucedeu no Brasil, as questões da violência de género seja um dos temas abordados, designadamente no que diz respeito à prática de comportamentos que tipificam aquela que é a verdadeira violência de género contra as mulheres: a Mutilação Genital Feminina, ou, ainda, os casamentos infantis, precoces ou forçados, designadamente entre os/as representantes dos países onde essas práticas têm maior incidência ou impacto. Por isso, decretámos o ano de 2018 como o Ano da CPLP para uma Vida Livre de Violência.

O que pensa fazer junto das famílias praticantes destas práticas nefastas em Portugal e junto dos seus pares e instituições internacionais?

No âmbito do Plano de Ação para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica (2018-2021), a nova Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação – Portugal + Igual (2018-2030) prevê um objetivo estratégico que visa, precisamente, prevenir e combater as práticas tradicionais nefastas, nomeadamente a Mutilação Genital Feminina (MGF) e os casamentos infantis, precoces e forçados. Ou seja, iremos aprofundar o conhecimento sobre os contextos socioculturais e as práticas tradicionais nefastas em Portugal, vamos também desenvolver ações de sensibilização junto das comunidades de risco, envolvendo representantes dessas comunidades e interlocutores/as privilegiadas de redes locais, e queremos qualificar a intervenção e promover projetos de cooperação que visem a prevenção e a erradicação de todas as práticas tradicionais nefastas.

Que papel atribuiu a campanhas como as que têm sido desenvolvidas em Portugal, algumas de iniciativa ou apoiadas pelo governo com organizações da sociedade civil, como a “O Direito a viver sem MGF”, #Nem mais um minuto de Silêncio, ou a mais recente Sim Igualdade que a P&D Factor está a desenvolver nas redes sociais com os rostos e as mensagens de 50 mulheres portugueses e da Guiné Bissau?

As campanhas são um excelente veículo para que a informação chegue a um público mais alargado de forma a sensibilizar, de forma eficaz, todos e todas para uma determinada questão. O “Direito a Viver sem Mutilação Genital Feminina” foi o mote da campanha lançada, a 20 de julho de 2016, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Esta iniciativa, que decorreu até setembro nos aeroportos nacionais, teve como objetivo prestar informação sobre as consequências e os riscos da MGF. De igual modo, a campanha do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, com o mote #NemMais1MinutodeSilêncio, teve como objetivo sublinhar que práticas desta natureza constituem um crime grave. A campanha “Sim Igualdade” tem como objetivo a prevenção da MGF, entre outras formas de violência e de discriminação contra mulheres e raparigas, promovendo a sua capacitação e empoderamento para o fim e abandono de práticas nefastas, à escolarização e à plena realização dos seus direitos.

Penso que qualquer uma destas três campanhas foi muito importante na consciencialização e visibilidade destas práticas, destacando o particular impacto desta última pelo facto de ser promovida em parceria com uma ONG da Guiné Bissau, e de arrolar personalidades notáveis nos mais diversos setores da sociedade. A P&D Factor está, por isso, de parabéns! Todas estas campanhas contribuíram e contribuem para a promoção dos direitos humanos, dos Direitos das Mulheres e para a igualdade de facto entre mulheres e homens.

Como é que avalia, qual a sua percepção sobre o trabalho das ONG e ONGD portuguesas que trabalham no domínio direitos humanos?

As ONG portuguesas são campeãs de persistência e competência na promoção dos direitos humanos face a um Estado que, em diversas das áreas que tutelo, por exemplo, foi rápido a legislar no contexto de modernização pós abril de 1974, mas que tem sido lento na implementação e efetividade das políticas. Num contexto de alguma incapacidade do Estado, mas também de grande indiferença social generalizada face à condição de desigualdade e discriminação de certas categorias sociais, o papel das ONG foi decisivo, embora difícil. Dar voz a quem não tem, identificar e descrever as várias manifestações de desigualdade e discriminação, criar rede, conquistar financiamentos para o trabalho substantivo, mas também para a própria sobrevivência da estrutura, continuam a ser grandes desafios para as ONG.

Nas áreas da igualdade entre mulheres e homens, as ONG têm sido parceiras na construção das políticas que hoje temos, sem que isso signifique a perda da sua abordagem crítica e a sua independência. Desde a década de 1970 que assim é. Hoje em dia, assistimos à emergência de uma nova geração de organizações, mais intersecionais, abordando e trazendo reivindicações novas, com novas metodologias e novos meios. Considero que estamos num momento particularmente interessante do ponto de vista da premência dos ativermos, num contexto de grandes potencialidades de expansão e comunicação de mensagens e alianças, designadamente através das redes sociais, mas também num contexto global de reemergência de populismo e de sinais de retrocessos. A luta pela promoção dos direitos humanos das mulheres, das pessoas LGBTI, das pessoas afrodescendentes, das pessoas migrantes, das pessoas ciganas, dos grupos mais desfavorecidos e vulneráveis da sociedade enfrenta hoje cada vez mais resistências, pelo que o papel das ONG é ainda mais vital.

Os apoios para a área da defesa dos direitos humanos e da igualdade de género não são tão fortes como noutras áreas, nem do ponto de vista financeiro, nem das regras para a atribuição desses apoios (verifica-se que o sistema, sobretudo quando falamos de programas operacionais, tem uma visão standart das ONG, com candidaturas altamente complexas do ponto de vista técnico-financeiro, tratando todas por igual, sem olhar à sua diversidade, sem criar espaço de oportunidades para as novas organizações e o que se passa é que as grandes, com maiores recursos, acabam por conseguir maiores apoios). O que pensa, ou pode fazer, para passar a haver uma distribuição mais equitativa dos apoios, com maior espaço para novos actores também na inovação de abordagem?

As regras de atribuição de financiamento comunitário por parte dos Programas Operacionais, nomeadamente do ponto de vista técnico financeiro, decorrem de legislação europeia, bem como de orientações emanadas pela Comissão Europeia, com caráter de obrigatoriedade, para cumprimento dos Estados Membros. Este é um constrangimento tecnocrático forte, mas que não é novo. O atual Governo encontrou um PT2020, em 2015, completamente paralisado, tendo sido necessária uma intervenção profunda e complexa para desobstruir os impasses burocráticos encontrados. O futuro quadro comunitário encontra-se ainda num estado embrionário, no entanto, é expectativa do Governo poder contribuir numa ótica de simplificação e modernização administrativa nos âmbitos de atuação das autoridades de gestão e dos beneficiários, sem desconsiderar o necessário cumprimento da legislação nacional e europeia, que define as regras transversais e que se cruza com as próprias regras dos quadros comunitários.

Quem é Rosa Lopes Monteiro?

rosa monteiro 220x220Rosa Lopes Monteiro nasceu em Coimbra a 20 de dezembro de 1972 e é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no Núcleo de Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades.

Licenciada em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, fez mestrado em Famílias e Sistemas Sociais no Instituto Miguel Torga, também em Coimbra. Monteiro é doutorada em Sociologia do Estado, Direito e Administração, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com uma dissertação intitulada «Feminismo de Estado em Portugal: mecanismos, estratégias, políticas e metamorfoses».

Além disso, é perita em igualdade de género e estudos sobre as mulheres, reconhecida pelo Instituto Europeu para a igualdade de género, e foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres entre 2012 e 2015.

Fez parte das equipas de investigação que avaliaram políticas públicas no domínio da igualdade, designadamente, o II e o III Planos Nacionais para a Igualdade, e a integração da perspetiva da igualdade de género nos Fundos Estruturais no anterior quadro comunitário (QREN 2007-2013). Tem desenvolvido projetos de investigação e de investigação-ação no domínio das políticas locais de igualdade, dos mecanismos oficiais para a igualdade, e das migrações.

No campo político, Rosa Lopes Monteiro foi vereadora na Câmara Municipal de Viseu de 2013 a 2017 e foi técnica especialista para a área da igualdade de género e cidadania no Gabinete do Ministro Adjunto desde 2015 até outubro de 2017.

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