“Trabalhar com as meninas e mulheres é um investimento no desenvolvimento sustentável do país; são elas a maior parte da população guineense que é também quem mais sofre (…).”
- Data de publicação 26 maio 2020
Equipa de Animadores/as Comunitários e Coordenação de Programas do CNAPN*
P&D: Como têm acompanhado a evolução da Covid-19 na Guiné-Bissau e como definem o impacto que tem no quotidiano das pessoas?
EAC: Temos acompanhado a evolução da Covid-19 através das rádios, TV, redes sociais e informação da Comissão Interministerial que acompanha a propagação do vírus SARS-CoV-2 na Guiné-Bissau. Devido ao incumprimento das medidas sanitárias e restrições impostas, nomeadamente pelo Ministério de Interior, percebemos que muitas pessoas não acreditam na existência da pandemia/flagelo, há muitas fake news e pouca informação acessível à população, logo existe resistência quanto às medidas de confinamento.
Foi restringida a entrada e saída das pessoas do país, com as fronteiras terrestres e aéreas fechadas. Mas, a Guiné-Bissau possui vários caminhos terrestres clandestinos onde, pelo que sabemos, nas linhas de fronteira as pessoas estão a entrar e sair para o interior e para a capital, Bissau. Este facto poderá levar a uma propagação descontrolada do vírus da Covid-19 pelas diferentes regiões, sem conhecimento das autoridades de saúde. Na nossa opinião, a situação vai ser muito mais difícil de controlar e de se conhecer as cadeias de transmissão nas regiões. A comunicação está a chegar com dificuldade por não ter em conta a diversidade das línguas locais.
A Covid-19 tem impacto negativo na vida das pessoas, sobretudo das meninas e das mulheres. Muitas famílias vivem das atividades económicas informais das mães bideiras, sendo que, neste momento, muitas estão em situação de vulnerabiliblidade, porque não conseguem vender como antes por causa de horário estabelecido para circulação das pessoas e, consequentemente, da comercialização. Sendo assim, o pequeno negócio que fazem mal serve para a sobrevivência familiar e não gera lucros.
Ninguém consegue circular livremente devido às restrições de circulação de pessoas, ausência de transportes públicos e de alternativas à circulação de pessoas e bens - as pessoas percorrem muitos quilómetros a pé até chegarem aos seus destinos, como acontece com as bideiras.
Há uma grande exposição das pessoas nos espaços públicos por falta de máscaras, mas também porque muitas pessoas não têm condições financeiras para comprar as máscaras cirúrgicas, disponíveis no mercado e em farmácias.
Assistimos diariamente a uma tentativa de subida dos preços dos produtos de primeira necessidade, facto que já foi referido pela Associação de Consumidores de Bens e Serviços da Guiné-Bissau.
Hoje, na Guiné-Bissau, há muita preocupação e apreensão devido ao fraco sistema nacional de saúde, aliado à instauração de novas autoridades e um contexto político de incerteza. No dia-a-dia a situação é negativa e preocupante. É necessário assegurar a proteção da saúde e a vida das pessoas, mas também garantir a sobrevivência de todas as pessoas que estão em situação de especial vulnerabilidade e pobreza.
P&D: De que modo a Covid-19 alterou as vossas vidas pessoal e profissional?
EAC: A Covid-19 trouxe muitos desafios e alterações à vida pessoal e profissional de cada um de nós, com impacto na vida das nossas famílias e comunidades, começando pelo facto de não haver liberdade e condições para circular a todas as horas como acontecia antes do estado de emergência.
Do ponto de vista pessoal, as rezas em conjunto, cerimónias familiares, visitas familiares e amigos foram suspensas. As universidades, espaços académicos e de lazer estão encerrados. As viagens para as regiões fora de Bissau e outros países estão limitadas.
Não conseguimos realizar eventos presencias de formação e informação, nem juntar as pessoas nas diferentes comunidades para abordar ativamente os temas dos nossos trabalhos, como as práticas nefastas, a saúde sexual e reprodutiva, a educação das meninas, etc.
O foco e condições do nosso trabalho mudaram drasticamente para incluir a prevenção e o combate à Covid-19.
As portas estão todas fechadas e sem alternativas nas escolas públicas, nas privadas e até nas universidades.
A prática do distanciamento físico nos trabalhos com colegas e comunidades nem sempre é possível, pois identificámos novos focos de intervenção onde ninguém estava a chegar e hoje há a necessidade de constante atualização sobre a Covid-19, as formas de prevenção e os cuidados de saúde específicos.
Hoje, no nosso trabalho, usamos sempre equipamentos de proteção individual, máscara e, em algumas situações, luvas e temos que lavar as mãos com muito maior frequência e cuidados.
Podemos afirmar que temos hoje uma atenção reforçada às necessidades das pessoas, aos direitos fundamentais e aos recursos disponíveis.
P&D: Quais as principais alterações no trabalho que desenvolvem junto do CNAPN?
EAC: As sessões de animação comunitária estão suspensas porque não é possível reunir as pessoas. Não temos como ir às comunidades ao final da tarde devido a falta de transportes e horário de recolher obrigatório imposto pela situação de emergência em Bissau.
O nosso atual modelo de intervenção passa pelas sensibilizações que realizamos porta-a-porta, junto dos agregados familiares, nos centros de saúde e também nos diferentes mercados.
Também as reuniões com as instituições e de planeamento de atividades estão muito limitadas.
Neste momento em que é importante um maior uso das tecnologias de informação, o acesso à Internet é difícil e muito caro na Guiné-Bissau, pelo que usamos mais os grupos de whatsapp entre as equipas e também com as coordenações, aumentando assim o nosso acesso à informação e à formação de qualidade.
P&D: Quanto à Violência baseada no Género (VbG), incluindo a Violência Doméstica e as Práticas Nefastas, têm observado algumas alterações no trabalho de terreno?
EAC: As estatísticas sobre as várias formas de VbG são sempre difíceis e, neste momento, não é possível ter números. Mas a VbG é uma realidade no nosso país, com efeitos dramáticos na vida das meninas, das jovens e das mulheres e não é de estranhar que sejam agravadas pelas situações de confinamento e pobreza.
As meninas e as jovens deixaram de ir às escolas, as mulheres deixaram de vender e muitos serviços estão fechados, o isolamento das comunidades, as discriminações e a pouca informação deixam as meninas e as mulheres mais isoladas e desprotegidas pelos próprios sistemas e mecanismos de controlo e apoio social que estão agora focados no Covid-19 e em garantir o cumprimento do estado de emergência.
Não seria de estranhar que nas próximas estatísticas se observassem maiores números de Casamentos Precoces e Forçados, de Mutilação Genital Feminina, de violência, abuso e exploração sexual, de crianças vítimas de exploração laboral e maus tratos ou de violência sobre as empregadas domésticas.
Não obstante o nosso trabalho tenha agora um foco importante no combate à Covid-19, nas comunidades abordamos frequentemente e em simultâneo as mensagens fundamentais e os apoios sobre Violência Baseada no Género, Mutilação Genital Feminina, Violência Doméstica, Casamentos Infantis, Precoces e Forçados, Direitos Humanos das meninas e mulheres, Gravidez e parto seguro.
P&D: Quais os maiores desafios que se colocam ao trabalho que desenvolvem actualmente e à Igualdade de todas as Meninas e Mulheres?
EAC: Trabalhar sobre estes temas é difícil, atendendo aos factores socioculturais e religiosos dominantes na nossa sociedade e que acabam por naturalizar ou normalizar o acto da violência contra mulher (em todas as idades), sendo que isto constitui um grande braço de ferro para trabalhar as componentes de género.
Todas as tentativas de empoderar as mulheres encontram sempre questionamentos sobre a importância das tradições e da religião. Esta é uma realidade desafiadora no nosso trabalho - não ficamos passivos e indiferentes, pois sabemos que assentam em relações históricas de opressão.
Precisamos sempre de dar a mão e apoiar as outras mulheres. Aliás, para nós, o processo de empoderamento visa sempre empoderar-se e empoderar as outras (mulheres) e assim fazer frente comum às práticas que põem causa os seus direitos humanos.
P&D: Partindo da premissa global “Não deixar ninguém para trás” quais as necessidades que, em vossa opinião, importa reforçar como resposta em matéria de direitos e saúde sexual e reprodutiva, educação e igualdade de género?
EAC: Estamos num país onde trabalhar a informação sobre sexo e sexualidade ainda é tabu. É difícil, mas não impossível, e o trabalho do CNAPN é prova disso mesmo.
É necessário que o governo, a sociedade civil e as organizações internacionais reforcem os apoios financeiros e que, conjuntamente, se definam estratégias e metas mensuráveis para os programas de informação sobre saúde sexual e reprodutiva a nível nacional.
Há zonas do país onde mulheres usam ervas para introduzir na vagina em nome de agradar o marido ou pensando que usando isso se tornarão mais jovens (tabába) - pelo contrário estas práticas têm muitas consequências negativas para a sua saúde reprodutiva. Para além da monitorização é necessário um trabalho de formação de animadores e profissionais na sensibilização de proximidade. Este é um trabalho árduo que não pode ser interrompido.
Reforçar as rodas de conversa (Djumbai), sem esquecer as zonas rurais. Também para passar informações às mulheres sobre a sexualidade feminina, a menstruação e o orgasmo feminino, as gravidezes precoces, o planeamento familiar e a saúde reprodutiva, como tratar das crianças, etc;
É urgente arranjar alternativas para o sistema educativo a favor das meninas e das mulheres, evitando atrasos e desistências das meninas e constituindo equipas de peritos, pessoas da academia e transformadores sociais para a identificação das alternativas que são possíveis localmente.
“Não deixar ninguém para trás” é o desafio que vivemos diariamente, e de que damos testemunho no CNAPN, através das redes sociais e da nossa presença junto das pessoas e comunidades, porque não esquecemos ninguém.
Precisamos identificar e envolver pessoas chave e as diferentes lideranças nas comunidades para serem também elas a passar as mensagens e a informar as suas populações através de programas radiofónicos, folhetos, mensagens chaves - recursos sobre estas matérias como os que estão sendo produzidos pelo Projecto CNAPN/P&D Factor e sua distribuição nas comunidades.
P&D: Os efeitos da Pandemia Covid-19, além do impacto económico, são de forte impacto social que, enquanto comunidade global, estamos diariamente a analisar. Como vêm a observância dos direitos humanos no alcançar dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável na Guiné-Bissau?
EAC: A Guiné-Bissau é um país onde não gozamos plenamente dos direitos fundamentais, principalmente as mulheres. Ainda verificamos que as meninas são obrigadas a casar na infância e vítimas dos casamentos precoces e arranjados. A Mutilação Genital Feminina continua a ter lugar com bases religiosas que sabemos não serem verdade. Ainda as mulheres são vistas como somente úteis para maternidade e espaço doméstico.
Por incrível que pareça, na Guiné-Bissau, há muitas leis que suportam os direitos humanos das mulheres, mas que não são aplicadas. As religiões e as tradições ainda se sobrepõem às instâncias judiciárias estatais que também são instituições frágeis.
A educação é, no nosso país, um sistema muito fraco, tal como a saúde e a justiça - lenta, morosa, cheia de cumplicidades e impunidade. Tudo isto vem aumentar os desafios da proteção contra as práticas nefastas perante o aumento da pobreza e da vulnerabilidade às diversas formas de violência e discriminações.
As equipas do CNAPN têm equipamento de protecção individual para o trabalho que desenvolvem. E as pessoas nas comunidades e nos bairros? Há distribuição de material junto das populações?
EAC: Nas equipas de CNAPN temos equipamentos de proteção que, ainda assim, são insuficientes quando olhamos para o quadro estatístico de evolução dos casos no país, com uma tendência de aumento de contaminação.
Apesar de decretado o estado de emergência, não existe assistência adequada para as populações, nem cestas básicas, nem kits de higienização. São pessoas de boa vontade e organizações da sociedade civil que estão a responder com gestos solidários, mas não chegam a toda a gente.
P&D: Quais os maiores desafios que se colocam ao trabalho que desenvolvem, nomeadamente nas respostas em matéria de combate a todas as formas de violência com base no género e os desafios à Igualdade de todas as Meninas e Mulheres?
EAC: A fragilidade do Governo. Os limites à circulação, a ausência de transportes públicos, o encerramento dos serviços, incluindo as escolas e os Centros de Acesso à Justiça (CAJ), a impossibilidade de organizar grupos de trabalho comunitário ao longo do dia por causa das horas de circulação, as grandes dificuldades económicas das famílias que recaem sobre as mulheres e as suas filhas.
É importante lembrar que o desenvolvimento sustentável que se almeja requer a colaboração de todas e todos, lembrando que todas as autoridades e todas as populações, através dos seus comportamentos, têm um papel primordial na prevenção e no combate à Covid-19.
Apesar do trabalho realizado, há muitas pessoas que não acreditam na existência da pandemia, pessoas que não têm condições económicas e familiares para fazer o confinamento, pessoas assintomáticas (sem sintomas, mas portadoras do vírus) e outras que serão potenciais portadores e propagadores do virus.
Na Guiné-Bissau, a Covid-19 veio agravar a insuficiência e a fragilidade da rede escolar e das respostas de saúde pública, a morosidade da justiça, o respeito pela integridade fisíca e moral da pessoa, o respeito pela liberdade de consciência, o igual acesso às oportunidades e a apropriação pelas comunidades das causas de combate a todas as formas de violência com base no género, à igualdade de todas as Meninas e Mulheres e aos esforços empreendidos da defesa e proteção dos direitos humanos.
P&D: Em breves palavras, como descrevem a importância do trabalho do projecto Meninas e Mulheres em tempos de Covid-19?
EAC: Os desafios de proteção contra as práticas nefastas devido ao aumento da pobreza, da vulnerabilidade e às diversas formas de violência e discriminação agravam-se em tempos de Covid-19.
Trabalhar com as Meninas e Mulheres é um investimento no desenvolvimento sustentável do país; são elas a maior parte da população guineense que é também quem mais sofre, por isso o projecto Meninas e Mulheres, com as condições das equipas e dos materiais, que com todos os esforços de apoio, de formação, de informação, de educação e empoderamento, são a contribuição social transformadora que permitirá num futuro (que a Covid-19 põe mais distante e sofrido) ter mais mulheres nos postos de decisão politica e social e nos diálogos de género, mais igualdade e equidade entre as pessoas, maior responsabilidade social coletiva e o abandono das práticas nefastas à saúde e direitos como a MGF/E e os Casamentos Forçados e Precoces e a não escolarização das meninas.
Quem é a Equipa de Animadores/as Comunitários e Coordenação de Programas do CNAPN? |
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Entrevista com Adama Baldé, Aissatu Cali Baldé, Ibraima Djaló, Ibraima Só, Mariama Djaló, Prof. Bubacar Baldé e Udê Camará. Equipa de Animadores/as Comunitários e Coordenação de Programas do CNAPN, parceiro da P&D Factor no Projecto Meninas e Mulheres: Educação-Saúde-Igualdade-Direitos. |