“A pesquisa foi a partilha de memórias. A nossa história tem sido essa, a memória coletiva e a oralidade. E isso também é produzir conhecimento.“
- Data de publicação 17 julho 2020
Patrícia Moreira, Autora*
P&D: Como surge a ideia e o processo de escrita d’As Novas Identidades Portuguesas?
PM: Eu nunca pensei em escrever um livro. O interesse surge, em 2019, da vontade de abordar o racismo em Portugal. Expor os episódios de racismo a que nós, os negros, estamos diariamente sujeitos. No trabalho e na universidade, por exemplo. Fazer as pessoas compreenderem que, por vivermos numa sociedade racista, o racismo manifesta-se muitas vezes de forma inconsciente. Pedir aos falantes que parem e reflitam sobre a mensagem oculta em expressões como “Eu devo ser a preta.” Questionarem-se se uma preta deve por obrigação trabalhar mais do que uma branca. Existe trabalhos para pretos e para brancos? Convido as pessoas a recuarem no tempo, à época escravatura, e a perguntarem-se quem era a preta. Não podemos normalizar expressões que diminuem um determinado grupo. Com este livro, eu quis trazer os registos orais para a literatura. Só assim conseguiria expor tudo sem me sentir desconfortável. Essa exposição não é fácil. Nós não queremos nem desejamos esse lugar que muitos chamam de vitimização. Contudo, entendemos que o silêncio não gera mudança. Para além do tema racismo, apresento a identidade cultural cabo-verdiana. O tema identidade surge no livro quando começo a escrever sobre a discrepância entre negritude e portugalidade. Percebi que teria de falar sobre os dois temas. Quanto ao processo de escrita, foi tudo bastante fluído. Quando comecei a escrever, tinha um objetivo e conhecia as histórias. Foi passar tudo para o papel e criar uma história que se encaixasse com o propósito da escrita. No meio do processo, mais ou menos, surgiu uma inquietação, o estilo de escrita. Mas isso durou pouco tempo. O tempo suficiente para perceber que eu deveria ir ao encontro da minha singularidade.
P&D: Quais são estas novas identidades e como estão presentes no tecido cultural português?
PM: Apesar do livro abordar as novas identidades a partir das experiências da comunidade negra residente em Portugal, estas novas identidades são todos aqueles que se identificam com a identidade portuguesa. Nem eu nem ninguém se encontra apto para falar sobre a identidade do outro, por ser algo que se manifesta no seu íntimo. É aquilo que a pessoa é, a sua essência. Não falo de direitos de jus soli ou jus sanguinis. É preciso diferenciar nacionalidade e identidade. Quando falo de identidade, falo dos sentimentos de identificação e de pertença a um determinado grupo. Vou dar um exemplo para esclarecer. Há pessoas que, como eu, nasceram e cresceram em Portugal e apresentam-se como portugueses de origem cabo-verdiana. Há outros que se encontram no mesmo contexto e apresentam-se como cabo-verdianos nascidos em Portugal. Pode parecer a mesma coisa dita por outras palavras, mas a nível sentimental será a mesma coisa? Quanto à sua segunda questão, a identidade desses indivíduos não tem de estar necessariamente presente no tecido cultural português. É no íntimo desses indivíduos que essas duas identidades, ou mais, coabitam e manifestam-se. São indissociáveis da sua subjetividade. Baseando-me apenas no tema do meu livro, acho que encontramos traços da nossa africanidade em Portugal na língua, na música e na dança, por exemplo.
P&D: De que modo a questão de Género se manifesta na construção destas identidades?
PM: As construções identitárias funcionam como uma cédula, é algo individual. Cada pessoa tem o seu histórico. Vivemos numa sociedade que foi construída a partir da lente do homem. Vivemos numa sociedade patriarcal, que seja aqui em Portugal ou em Cabo Verde. Os papéis de género encontram-se bem distribuídos. Basta irmos a uma loja de brinquedos para comprovarmos isso. Há culturas onde as mulheres têm uma participação mais ativa na sociedade, têm conseguido aos poucos derrubar os modelos de organização e conquistado os seus espaços. Há outras culturas onde as mulheres para além de não terem essa liberdade, não conhecem uma outra realidade diferente daquela em que se encontram. Ainda, há outras que vivem com essas duas realidades. Acho que a nossa reflexão crítica sobre a questão de género depende muito, não só, daquilo que nos vai servir de referência, daquilo que nos rodeia. As referências que vamos tendo ao longo da vida. Nós não nascemos mulheres, aprendemos a ser mulheres. O sexo é biológico, o género é social. As referências não são apenas em casa e na família. É na escola, na televisão, no espaço em que nos encontramos. Para mim, a questão de género manifestou-se na adolescência. Em alguns casos eu questionava a resposta “porque és menina.” Não era uma resposta aceitável para mim. Contudo, inconscientemente, eu já tinha construído alguns pensamentos e julgamentos machistas. É contraditório, eu sei. A reflexão crítica sobre a questão de género surge na idade adulta. Todos os dias é um aprendizado e uma desconstrução.
P&D: Qual é na sua opinião a base da construção de racismo, xenofobia e discriminação?
PM: O racismo é uma forma sistemática de discriminação com bases históricas. Encontra-se enraizado na ideologia da superioridade branca, e a inferioridade inata dos restantes povos. A ideia de raça surgiu para legitimar a escravatura e hierarquizar os diferentes grupos. Como o colonizador justificaria a exploração e a violência física e psicológica contra o seu semelhante, contra os corpos negros, a uma sociedade com valores éticos e moralistas? Como justificaria a desigualdade social? Através de ideologias racistas. Como por exemplo, o negro não é humano ou o negro não consegue governar-se sozinho. Quando falamos de racismo, falamos de privilégios sociais construídos no passado, pela classe opressora, e que têm sido hereditários. E essas crenças permanecem no inconsciente das pessoas. Quando as pessoas justificam a situação social em África, ser culpa exclusivamente nossa, por exemplo. Como se tudo fosse falta de organização nossa. A Europa ergueu-se em quarenta e cinco anos? Depois de séculos de exploração dos seus territórios e povos? Depois de terem apagado a sua história e encontrarem um mundo construído a partir do olhar do negro? Não estou a apontar culpados e inocentes. Nem estou apta para isso. Apenas dizer que é preciso ter uma reflexão crítica do que foi o passado. O branco sempre foi a classe dominante. Socialmente, encontra-se em vantagem. Esses privilégios sociais construídos no passado têm sido hereditários. Dificilmente, ganho uma corrida de cem metros, se o meu adversário já vai com setenta metros de avanço. Por essa razão, descarto a ideia do racismo reverso. É impossível uma pessoa branca sofrer racismo. Para isso acontecer, teríamos de reescrever a história. Uma pessoa branca pode sofrer preconceito racial, mas não racismo. O racismo não se resume a um insulto. É uma opressão histórica, sistemática e ligada às relações de poder. A xenofobia, por sua vez, é a antipatia, o medo, o ódio pelo estrangeiro, por culturas desconhecidas. A xenofobia pode manifestar-se contra pessoas negras ou brancas que sejam estrangeiras. A discriminação é o tratamento desigual, inferiorizado a uma pessoa ou a um grupo por natureza diversa: género, orientação sexual, racial, ideologia, etc. O racismo e a xenofobia têm como base a discriminação. A discriminação, eu diria, que tem como base a normatividade do espaço e do tempo em que nos encontramos. Não só, mas sobretudo. Todos aqueles que não são homem, branco e hétero estão propícios a sofrer algum tipo de discriminação. O mesmo acontece com os padrões de beleza. Isso deve-se muito ao discurso universal que muitas vezes é adotado.
P&D: É frequente associar ou colocar na mesma abordagem e soluções, as pessoas afrodescendentes e as pessoas migrantes. O que acha ser necessário para a mudança deste paradigma?
PM: Em Portugal, a ideia de identidade nacional está muito ligada à cor da pele, à pele branca. Por essa razão, os portugueses que não apresentam esse fenótipo são percebidos, muitas vezes, como estrangeiros. Acontece, por exemplo, eu ir tratar de um papel e pedirem-me o cartão de residência ou o passaporte. Não tenho uma resposta para essa pergunta. Acho que mais importante do que isso é encontrar soluções para um tratamento digno para os dois grupos. Sem restrições ou privilégios. Quando lutamos contra o racismo e a xenofobia, estamos a lutar a favor dos direitos humanos. Não interessa a que grupo eu ou aquela pessoa pertence. Assim como não interessa o género, a orientação sexual, a cor, a religião e a ideologia.
P&D: Este romance parte também de muitas histórias e episódios que viveu, presenciou ou lhe foram contadas por outras pessoas. Qual a importância que atribui a esta vivência e à pesquisa que foi fazendo para a construção da narrativa?
PM: Essas vivências foram essenciais para a construção da obra. O romance foi criado para dar espaço a essas narrativas. Para trazer os relatos orais de racismo para a literatura. Mostrar que as nossas histórias de vida importam sim e merecem ser contadas. A pesquisa foi a partilha de memórias. A nossa história tem sido essa, a memória coletiva e a oralidade. E isso também é produzir conhecimento.
P&D: A Patrícia é portuguesa e embora tenha sempre estudado em Portugal, concluiu a licenciatura em França. Como foi este caminho e o regresso a Portugal?
PM: Foi um caminho longo e enriquecedor, tanto a nível profissional quanto a pessoal. Amadureci bastante ao longo desses anos. Teve coisas boas e más, como tudo na vida. Mas no final, voltei feliz com tudo o que vive. O mais fascinante é que o processo de emigração me colocou diante de questões que nunca me tinha feito. Entender quem eu sou. Parece tolice, mas é uma profunda autodescoberta. Com esse entendimento, vem a necessidade de me afirmar. Eu sempre me apresentei como uma mulher portuguesa de origem cabo-verdiana. Mas o que é ser mulher? Disseram que eu era menina antes de nascer, através da leitura do meu sexo. Sou a mulher que a sociedade espera que eu seja? O que é ser portuguesa? De acordo com a extrema-direita: “Portugal é branco.” O que é ser mulher negra, cabo-verdiana? Dizem que a mulher negra ou a cabo-verdiana é forte. Eu não sou sempre forte. Sou complexa e tenho as minhas fraquezas. O que é ser uma mulher negra de origem cabo-verdiana nascida em Portugal, imigrante na França? A emigração permitiu-me compreender o lugar que querem que eu ocupe, o papel que não é esperado de mim. Atualmente, apresento-me como mulher luso-cabo-verdiana. Talvez viesse a colocar-me essas questões com a maturidade, não sei. Foi uma alegria conseguir voltar. Sei de muitos que têm esse desejo, mas não conseguem por diversas razões.
P&D: As Novas Identidades Portuguesas é também uma narrativa de ativismo?
PM: De uma certa forma sim. O livro solta discursos individuais que fazem parte do coletivo. Contém histórias que leitores negros facilmente se identificam. Não podemos continuar a falar sobre os episódios de racismo em Portugal como casos isolados. O racismo é um facto social, não é opinião. O livro é mais uma forma de denúncia, de manifestação e de sensibilização.
P&D: Qual tem sido o acolhimento dos diferentes públicos ao seu livro e quais são os próximos desafios?
PM: De modo geral, as pessoas têm acolhido bem o romance. Há leitores que se identificaram com as histórias, o que me faz acreditar que esta obra poderia ser bem mais rica se eu tivesse partilhado desde o início o meu trabalho. Há leitores dispostos a ler os nossos relatos sem armadura. O livro não é um ataque, é a partilha da nossa realidade e das nossas vivências. Todos os episódios de racismo relatados no livro são reais. Até à data as críticas têm sido positivas. Obviamente, sei que é um romance que não vai agradar a todos. O que eu desejo é que através da leitura as pessoas tenham uma reflexão crítica dos seus atos e percebam que o racismo é um problema social. Ainda não sei quais serão os próximos desafios. Tenho projetos, mas ainda é tudo incerto. Espero até ao final do ano ter as respostas para esses projetos.
P&D: Onde, ou com quem, gostaria de apresentar e debater As Novas Identidades Portuguesas?
PM: Com todos aqueles que estariam dispostos a fazê-lo. Em qualquer lugar.
Quem é Patrícia Moreira? |
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Patrícia Moreira nasceu em Lisboa, em 1988. Filha e neta de imigrantes cabo-verdianos. Licenciou-se em Ciências da Linguagem na Universidade d’Aix-Marseille, França. Realizou o seu mestrado em Português Língua não Materna na Universidade do Minho. O livro As Novas Identidades Portuguesas é a sua primeira obra. |