Marta Ramos - “A educação é chave para a mudança"
- Data de publicação 30 maio 2022
Entrevista a Marta Ramos
P&D Factor: Igualdade
Marta Ramos: A igualdade (a todos os níveis, mas em particular a igualdade de género) é hoje a minha máxima de vida.
Nem sempre tive consciência da sua necessidade e importância, tenho aliás noção de que durante a minha adolescência tive momentos e comportamentos promotores de desigualdade – muitas vezes instigados por ou com conivência de pessoas adultas -, mas desde que me interessei pelos Direitos Humanos que percebi que o acesso à igualdade e a uma vida digna e plena são a verdadeira mudança social.
Luto todos os dias para que tenha plena consciência dos meus privilégios, e escolhendo fazer deles uso então que seja para abrir portas para que outras pessoas e comunidades sub-representadas possam ter direito a todos os seus direitos e a uma vida em igualdade.
Não sei se nasci ativista, embora tenha sempre gostado de um bom desafio, mas a igualdade tornou-me assumidamente ativista.
E é um ativismo diário, muitas vezes desgastante porque remamos contra várias marés e às vezes contra todas ao mesmo tempo, mas que é absolutamente essencial para a sociedade onde desejo viver.
P&D Factor: direitos humanos
Marta Ramos: São a minha grande paixão.
Depois de um curso de Direito tirado a ferros, onde detestei tudo – o ambiente universitário, o formalismo, o método de ensino, etc – tive a felicidade de ter uma cadeira optativa de direitos humanos dada por um professor estrangeiro e vi literalmente a luz ao fundo do túnel. Não tive mais dúvidas do que quereria fazer e tenho tido muita sorte no meu percurso profissional porque tenho trabalhado sempre em prol de direitos humanos.
Aprendi a navegar os contextos jurídicos e institucionais no Conselho da Europa, no Gabinete do Comissário para os direitos humanos, na altura ocupado pelo Thomas Hammarberg. Foi uma experiência de trabalho incrível, acima de tudo pela enorme disponibilidade para diálogo entre a equipa sobre prioridades e métodos de abordagem de algumas das maiores atrocidades de direitos humanos que conheci.
Aliás, toda a atual situação na Ucrânia tem-me feito pensar muito nessa altura da minha vida e como a voz do Conselho da Europa deveria ser amplificada a valorizada.
Trabalhei 10 anos na Associação ILGA Portugal, 6 dos quais enquanto Diretora Executiva, onde todos os dias eram e são dias de fazer as sociedades entenderem que quando estamos a falar de questões específicas das populações lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo (LGBTI+) estamos sempre a falar de direitos humanos e de igualdade de género.
A falta de literacia para os direitos humanos é atroz em Portugal. E tem, claro, implicações no civismo, vida em sociedade, integração de pessoas especialmente vulneráveis, etc. Que pessoas andamos a formar se não sabem os seus direitos, não sabem promover o acesso a direitos para outras pessoas ou não se sabem defender das agressões institucionais e institucionalizadas (tantas vezes “invisíveis”)?
Este desinvestimento na educação da e para a cidadania tem consequências diretas no conformismo generalizado das pessoas, apatia da sociedade civil e das políticas públicas.
Lutar pela salvaguarda e reconhecimento de direitos humanos tem de ser intrínseco às gerações e à nossa sociedade.
P&D Factor: Inspiração
Marta Ramos: A minha maior inspiração (que na verdade é também um desafio) é acreditar no futuro e no futuro que quero para os meus filhos.
Lembro-me de que quando decidi que queria ser mãe o que queria era ter o potencial de criar uma pessoa menos preconceituosa (digo menos porque todas as pessoas têm preconceitos), mais ciente da importância de se questionar e de questionar o que lhe dizem ser normal, tradicional, cultural, o “foi sempre assim”, mais empoderada e empoderadora.
Não quero que os meus filhos sintam o peso da mudança social às suas costas, mas quero que saibam que independentemente das suas características pessoais fazem parte dessa mudança e devem dela querer fazer parte.
A igualdade, os direitos humanos são responsabilidade de todas as pessoas, todos os dias e em todos os contextos.
P&D Factor: Violência e Discriminação
Marta Ramos: Não sou uma pessoa que goste de conflitos e que esteja confortável perante injustiças e desigualdades, nunca fui. Pessoalizo muito as coisas e tendo a envolver-me “demasiado” (enquanto escrevo estou a questionar o que é isto de demasiado...).
Acho que este desassossego foi o que me fez persistir no curso de Direito e foi também o que me levou a querer sair da minha zona de conforto – atrás de uma secretária – para estar no terreno. E estar no terreno é estar constantemente exposta a situações de violência e discriminação, que tanto acontecem de forma ostensiva como de forma velada e que quem trabalha em direitos humanos tem de aprender a gerir.
Para mim é sempre algo caricato que de todas as áreas em que me poderia ter hiperespecializado, a que mais investi e onde ganhei algum reconhecimento foi na identificação, combate e prevenção de crimes de ódio e incidentes motivados pelo ódio contra pessoas LGBTI+. É uma área de violência e discriminação pura e dura, com um enorme desgaste emocional e psicológico – principalmente pela generalizada falta de perceção de se estar perante uma situação motivada pelo ódio.
E oiço constantemente que ódio é uma palavra muito forte em português, que a nossa criminalidade nem é assim tão violenta e eu só penso nas centenas de vítimas que acompanhei e dezenas de conversas institucionais que tive e como o que ouvi foram relatos de enorme violência, alguma física, mas sobretudo verbal e psicológica onde o ódio era palpável.
Acho que a maior falácia em Portugal, e que continuamos a reiterar, é a de que somos um país de brandos costumes com um povo tolerante. Até a escolha destas palavras, todas com um desvalor subjacente à sua etimologia, é de uma enorme violência e discriminação contra pessoas particularmente vulneráveis e comunidades específicas.
Viver desfasada da realidade e sem empatia é uma escolha, e as pessoas estão sempre a tempo de mudar, de se engajarem, de quebrarem ciclos e comportamentos de violência, discriminação e opressão de identidades e vivências.
P&D Factor: Famílias
Marta Ramos: O que faz uma família é o amor.
Parece óbvio e universal, mas continuamos a negar a enorme diversidade de famílias que existem.
Trabalhei arduamente - claro que com o apoio de inúmeras outras pessoas e movimentos - pelo reconhecimento de direitos de parentalidade, em particular, para as pessoas LGBTI+ e infelizmente ainda não estão acessíveis a todas as pessoas e casais – por ex: a gestação de substituição não equaciona ainda ser um método acessível para pessoas solteiras ou casais de homens.
Mas confesso que nestes últimos anos tenho vivido inquieta com a crescente valorização de conceitos mais conservadores de família e de autodeterminação de corpos. Podia dizer que tem sido um processo silencioso, mas estaria a mentir. Eu própria fui algo ingénua sobre a adesão em Portugal a estes movimentos anti-género, mas vi-os crescer à distância, e quando dei por mim havia todo um discurso e métodos importado que tem ganho adesão, principalmente em esferas institucionais.
Estas narrativas deturpadas recordam-me da minha incredulidade jurídica, durante a estratégia de advocacia para o reconhecimento da co-adoção, ao perceber que o conceito de Superior Interesse da Criança é tão facilmente manipulado para ser tudo menos no interesse daquela criança ou das crianças em geral. Tão perigoso este exercício...
E, portanto, regresso à questão da (i)literacia para os direitos humanos, porque só assim me faz sentido que existam tantas pessoas a “cair na esparrela”. Sem que se apercebam que estão a promover discursos perniciosos que colocarão em causa as suas próprias famílias, os seus próprios corpos e as suas identidades.
P&D Factor: O que falta fazer?
Marta Ramos: Dá vontade de dizer que tudo, tal é o volume do caderno de encargos. Mas também sinto que isso seria injusto para o que já foi e tem sido feito.
Acho que acima de tudo falta investir na educação a todos os níveis, desde a creche até formação ao longo da vida.
A compreensão e standards de direitos humanos evoluem e é fundamental que consigamos acompanhar as evoluções terminológicas, sociais e técnicas.
Muito do estigma, preconceito e discriminação está enraizado em desinformação e estereótipos.
A educação é chave para a mudança.
Quem é Marta Ramos? |
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Marta Ramos Licenciou-se em Direito e especializou-se em direitos humanos e Democratização. Tem o privilégio de ter trabalhado no Conselho da Europa, Parlamento Europeu, Comissão para a Cidadania e a igualdade de género e de ter tido 10 anos de trabalho na incrível Associação ILGA Portugal. Consultora independente em direitos humanos, igualdade de género e Direitos LGBTI+ Activista em direitos humanos |