. Rita Leote - “O continente europeu é o que inclui mais países considerados abertos, mas a cada ano há mais sinais preocupantes de deterioração do espaço cívico"

Rita Leote Entrevista a Rita Leote

. P&D Factor: Desenvolvimento

Rita Leote: Num contexto como o atual, em que múltiplas crises assolam o mundo e em particular os países de baixo rendimento e as pessoas mais vulneráveis, a Oxfam estima que este ano mais de 263 milhões de pessoas engrossem os números já avassaladores da pobreza extrema a nível global, devido simultaneamente aos impactos da pandemia, do aumento das desigualdades e da inflação de preços de alimentos e energia, fenómenos em muito agravados pela guerra na Ucrânia. Adicionalmente, a crise ecológica constitui um desafio sem precedentes a nível global com potenciais impactos devastadores, de forma transversal, nas economias mais frágeis e junto das populações que menos contribuíram para a degradação ambiental e para as alterações climáticas que experienciamos neste momento.

Neste quadro, em que os avanços alcançados nos últimos anos rumo ao cumprimento das metas definidas no quadro da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável sofreram fortes reveses, importa mais do que nunca refletir sobre o que se entende por desenvolvimento global. Do meu ponto de vista, esta reflexão deve levar a um reforço do multilateralismo focado em ações concertadas a nível mundial, num clima de reforçada solidariedade entre todos os povos, em que a erradicação da pobreza e o combate às desigualdades, e o desenvolvimento humano e social, sejam prioritários na ação conjunta dos diferentes stakeholders para alcançar este objetivo.

A construção de um mundo em que a igualdade, a justiça global e a inclusão sejam realidades tangíveis em todos os lugares, constitui-se como uma visão comum da maior parte da sociedade civil organizada, cuja ação e papel têm sido reforçados em face dos desafios que enfrentamos. Num período em que se questionam as falhas sistémicas e os ainda persistentes desequilíbrios de poder, também o conceito de Desenvolvimento saído do pós-Segunda Guerra Mundial tem vindo a ser cada vez mais questionado, por padecer de uma vinculação intrínseca a um sistema económico e político que não representa todas as pessoas e os seus contextos a nível global, e que se baseia numa noção de progresso ancorado na ideia de crescimento contínuo que secundariza as pessoas, as comunidades e prejudica o meio ambiente. Alternativamente, conceitos como Buen Vivir, baseado numa conceção de plenitude da vida em harmonia com a natureza preconizada por povos indígenas da América do Sul, ou a ideia de Decrescimento, que questiona a centralidade do crescimento económico e da produtividade na criação de bem-estar para as pessoas, têm sido cada vez mais valorizados nas abordagens atuais ao tema do desenvolvimento.

Embora possamos (e devamos) proceder a uma revisão profunda do conceito de desenvolvimento e adotar novas abordagens, a importância de um processo constante de procura de bem-estar a nível global permanece fulcral, conjugando, como defende o Professor Rogério Roque Amaro, as diferentes dimensões da vida e dos seus processos de mudança e de melhoria, implicando, por exemplo: a articulação entre o económico, o social, o cultural, o político e o ambiental, a quantidade e a qualidade, as várias gerações; a tradição e a modernidade; o endógeno e o exógeno; o local e o global; os vários parceiros e as instituições envolvidas; a investigação e a ação; o ser e o estar, o fazer, o criar, o saber e o ter (as dimensões existenciais do desenvolvimento), o feminino e o masculino, as emoções e a razão”. Assim, quaisquer que sejam os caminhos a adotar para a implementação deste processo, é fundamental a aposta numa abordagem participativa e inclusiva, centrada nas pessoas, de caráter integrado, multidimensional e holístico, em que todas e todos vejam as suas oportunidades alargadas e possam satisfazer as suas necessidades atuais, mas considerando os limites do planeta, de forma a aceder às condições necessárias para tomar as suas próprias decisões e cumprir as suas aspirações, sem comprometer o futuro das gerações vindouras.

Os avanços alcançados nos últimos anos rumo ao cumprimento das metas definidas no quadro da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável sofreram fortes reveses

Entre as dimensões fundamentais ao desenvolvimento, é imperativo incluir as que se encontram consagradas na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente agrupadas nas áreas ambiental, económica e social, mas igualmente robustecer as dimensões da participação cívica e política, da justiça e da paz e da boa governação. Neste sentido, o papel dos Estados deve ser reforçado, para a prestação dos serviços básicos necessários e de qualidade às populações, especialmente as mais vulneráveis, e de garante do acesso por todas as pessoas aos Bens Públicos Globais, combatendo as desigualdades, especialmente a de género, e a exclusão. Não menos relevante, será o fortalecimento global da democracia, de modo a que os direitos humanos sejam plenamente respeitados e cumpridos, com especial enfoque na promoção de uma participação ativa dos cidadãos e das cidadãs em igualdade de circunstâncias e sem discriminação de qualquer natureza.

. P&D Factor: direitos humanos

Rita Leote: Proclamada há cerca de 74 anos, a Declaração Universal dos direitos humanos é mais atual do que nunca e a sua importância deve continuar a ser constantemente reafirmada e celebrada, especialmente num momento como o presente em que muitos dos direitos que considerávamos há muito adquiridos se encontram a ser contestados num quadro de crescente polarização social e política, em especial por forças de tendências autocráticas. A concretização dos direitos consagrados nos artigos 19º, 20º e 21º da Declaração Universal encontram-se entre o leque de direitos humanos em que se verifica uma regressão crescente a nível global. A liberdade de opinião e de expressão, a liberdade de reunião e de associação pacíficas e o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos, representam princípios e enformam valores que são especialmente caros à sociedade civil organizada, constituindo-se como garante da democracia que, no quadro de um aumento de movimentos nacionalistas de extrema-direita, contribuem para uma maior intolerância nas sociedades atuais, e têm vindo a ser restringidos um pouco por todo o mundo.

A exclusão de pessoas em situação particularmente vulnerável foi também uma realidade, incluindo migrantes e refugiados, deslocados internos, comunidades rurais e indígenas, prisioneiros, sem-abrigo e pessoas indocumentadas, sendo ainda mais evidente que a defesa do direito humano à saúde nunca foi tão pertinente.

No seu último relatório sobre a situação dos direitos humanos a nível global, a Amnistia Internacional chama a atenção para três tendências preocupantes na área da promoção e respeito pelos direitos humanos em 154 países: desafios na saúde e desigualdades, espaço cívico e na reação do Norte Global aos movimentos de refugiados e migrantes.

No campo da saúde, não obstante o compromisso assumido por muitos governos de apoiar a cobertura global de vacinação contra a Covid-19, muitos dos países do Norte Global preocuparam-se unicamente em garantir stocks de milhões de doses excedentárias para a sua população, deixando muitos países do Sul Global à espera para poder aceder à primeira vacina. Com uma falha tão flagrante na solidariedade global, o continente africano foi dos mais desfavorecidos, com menos de 18% dos seus habitantes totalmente vacinados, em comparação com uma taxa de vacinação de mais de 70% na UE, sendo o continente com a taxa de vacinação mais baixa do mundo.

A sociedade civil organizada há muito que alertava para a necessidade de concretizar os compromissos assumidos e de contrariar a desigualdade no acesso às vacinas, a qual veio aprofundar a injustiça global já tão enraizada. Multiplicaram-se apelos para o levantamento temporário dos direitos de propriedade intelectual pelas empresas farmacêuticas, as quais, segundo a Amnistia Internacional, priorizaram a venda de vacinas aos países de rendimento elevado e monopolizaram a propriedade intelectual, bloqueando as transferências de tecnologia que permitiriam expandir a produção dessas vacinas, nomeadamente em países do Sul Global.

A exclusão de pessoas em situação particularmente vulnerável foi também uma realidade, incluindo migrantes e refugiados, deslocados internos, comunidades rurais e indígenas, prisioneiros, sem-abrigo e pessoas indocumentadas, sendo ainda mais evidente que a defesa do direito humano à saúde nunca foi tão pertinente. Prevendo-se ainda um impacto muito elevado da recuperação da pandemia Covid-19 no aumento da dívida dos países, tal terá consequências muito negativas nas possibilidades de os países, especialmente de baixo rendimento, investirem em serviços sociais essenciais colocando ainda em causa o direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (artigo 25º).

No que se refere ao espaço cívico, como referido inicialmente, verifica-se uma tendência contínua de muitos governos suprimirem vozes independentes e críticas, com alguns utilizando abusivamente a pandemia como pretexto para restringir ainda mais o espaço cívico. A Amnistia Internacional afirma que vários governos, principalmente em África, Médio Oriente, Norte da África e Ásia, bloquearam ou restringiram fortemente o acesso à internet e redes sociais, tendo aumentado os ataques a jornalistas, críticos e defensores de direitos humanos, incluindo aqueles que defendem os direitos das mulheres e indivíduos LGBTI. A perseguição e ataques a estes/as ativistas um pouco por todo o mundo, materializaram-se, segundo a Amnistia Internacional, num aumento generalizado das detenções arbitrárias e processos injustos, ações judiciais intimidatórias e infundadas, restrições administrativas e outras ameaças, bem como violência, incluindo desaparecimento forçado e tortura. Adicionalmente, as ferramentas tecnológicas colocam cada vez mais desafios pela sua constante instrumentalização para controlo de jornalistas, defensores de direitos humanos, oponentes políticos e outras vozes críticas. Também a sociedade civil organizada e as ONG em particular, viram a sua ação manietada por dificuldades de caráter legal, administrativo ou financeiro, impedindo-as de cumprir as suas atividades e de desempenhar normalmente o seu papel de watchdog dos poderes governamentais e do setor privado lucrativo. Em muitos países, a Amnistia Internacional identificou ainda tendências preocupantes de securitização e militarização excessivas das respostas dos Estados a protestos de cidadãos e cidadãs.

Perante o aumento abissal do número de pessoas deslocadas a nível mundial, decorrente de situações de conflito armado, desastres naturais resultantes da degradação ambiental e alterações climáticas ou violações dos direitos humanos, a posição que tem sido assumida por vários países no Norte Global, especialmente os dominados por governos nacionalistas e autocráticos, releva outra tendência inquietante no que diz respeito ao direito de circulação das pessoas e ao direito de asilo e ao aumento de discursos xenófobos e racistas. Os direitos consagrados nos artigos 13º, 14º, referentes aos direitos de todas as pessoas poderem livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado, assim como de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país, bem como de, em caso de perseguição, procurar e de beneficiar de asilo em outros países, têm sido dos mais limitados, demonstrando mais uma vez a enorme falência na solidariedade internacional existente a nível global. O comportamento de muitos governos para evitar cumprir as suas responsabilidades internacionais de fornecer proteção a pessoas perseguidas, tem contribuído igualmente para aumentar as violações de direitos humanos de refugiados e migrantes, muitas vezes pela utilização de táticas de externalização dos procedimentos nacionais de pedido de asilo e de deportações abusivas e ilegais, sendo um exemplo chocante desta prática a medida preconizada recentemente pelo governo do Reino Unido de deportar massivamente para o Ruanda migrantes chegados à sua fronteira com a França. Estas deportações e gestão externalizada dos movimentos migratórios acontece muitas vezes em países que não cumprem os preceitos e a legislação internacional relacionada com asilo e migração ou ação humanitária e de emergência, deixando as pessoas requerentes de asilo e migrantes ainda mais vulneráveis a abusos dos seus direitos humanos.

Para reverter esta situação, é fundamental que governos e instituições reafirmem a sua solidariedade internacional com ações concretas que permitam o cumprimento das suas promessas, como o reforço do apoio aos países mais vulneráveis na recuperação da pandemia, cancelando e perdoando as suas dívidas, ou aumentando o orçamento da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, num quadro alargado de defesa dos direitos humanos e de promoção da democracia. O papel da sociedade civil organizada deve ser reforçado, pelo cancelamento das medidas restritivas adotadas e do termo de ações persecutórias a ativistas de direitos humanos. O espaço cívico deve ser promovido e respeitado, reativando efetivamente os direitos à liberdade de expressão, associação e reunião pacífica. Os governos devem ainda cumprir sua obrigação de acolher as pessoas que necessitam de proteção internacional, respeitar e salvaguardar os seus direitos e permitir que permaneçam no seu território, em condições dignas.

. P&D Factor: Igualdade

Rita Leote: Segundo o World Inequality Report 2022, as disparidades socioeconómicas aumentaram a nível global e os 10% mais ricos da população mundial recebem atualmente 52% do rendimento global, enquanto a metade mais pobre da população recebe 8,5%. Em média, um indivíduo dos 10% mais ricos ganha € 87.200 por ano, enquanto que um indivíduo da metade mais pobre ganha € 2.800 por ano.

As desigualdades globais de riqueza são ainda mais pronunciadas do que as desigualdades de rendimento. A metade mais pobre da população mundial possui apenas 2% da riqueza total global. Em contraste, os 10% mais ricos da população mundial possuem 76% de toda a riqueza. Sendo flagrante o aumento do fosso entre as pessoas e os países mais ricos e os mais pobres, tanto em termos de acesso à riqueza como a nível de rendimento, as desigualdades assumem diferentes formas, como diferenças regionais, diferenças raciais, diferenças de género e desigualdades em outras dimensões, e podem fortalecer-se umas às outras, muitas vezes devido a normas socialmente construídas que privilegiam certos grupos em detrimento de outros ou num acesso desigual à tomada de decisões políticas, impulsionando ainda mais a discriminação e diminuindo o espaço da sociedade civil.

Garantir a igualdade dentro e entre países é condição essencial para a justiça social e para o Desenvolvimento Sustentável e neste campo a sociedade civil organizada tem um papel crucial a desempenhar, sendo vigilante e propositiva e exigindo mudanças nas políticas a nível nacional e global. A desigualdade nas condições de vida das pessoas é em grande parte determinada pelo local de nascimento, mas a diminuição das desigualdades de rendimento e aumento das oportunidades depende essencialmente de vontade política a nível nacional e global.

De acordo com a World Inequality Database, as desigualdades de rendimento e de riqueza aumentaram em quase todos os lugares desde a década de 1980, após uma série de programas de liberalização que assumiram formas diferentes em diferentes países. O aumento não foi uniforme: alguns países experimentaram aumentos exponenciais na desigualdade (incluindo os EUA, Rússia e Índia), enquanto outros (países europeus e China) experimentaram aumentos relativamente menores. Essas diferenças confirmam que a desigualdade não é inevitável, é uma escolha política.

Segundo o World Inequality Report 2022, os dados demonstram também que a parcela da riqueza detida por atores públicos é próxima de zero ou negativa nos países de rendimento elevado, o que significa que a totalidade da riqueza se encontra em mãos privadas. Esta tendência foi ampliada pela crise Covid-19, durante a qual os governos pediram empréstimos equivalentes a 10-20% do seu PIB, essencialmente ao setor privado. A atual baixa riqueza dos governos tem implicações importantes para as capacidades do Estado no combate às desigualdades no futuro, na prestação de serviços sociais básicos, bem como para responder a um dos principais desafios do século XXI, as alterações climáticas. Num momento em que o aumento dos gastos públicos em serviços essenciais e infraestruturas é vital para responder ao aumento dos preços de alimentos e energia, à crise climática e outras necessidades nacionais, verifica-se uma dificuldade generalizada de muitos países, especialmente os países mais pobres e vulneráveis, em responder a esse desígnio, devido nomeadamente ao aumento exponencial das dívidas soberanas. A exigência do pagamento do serviço da dívida e a ausência de mecanismos eficazes de alívio da dívida estão a forçar os países que experienciam uma crise da dívida a cortar nos gastos públicos, numa altura em que os serviços públicos são mais necessários para a recuperação desses países e diminuição das desigualdades entre a sua população.

Neste sentido, importa concretizar a transição preconizada pelo ODS 10 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, de reduzir as desigualdades, para que a maioria da população mundial possa ter acesso às mesmas oportunidades que a parte mais privilegiada da população e possa ter boas condições de vida. Assim, é fundamental que as políticas públicas apostem efetivamente numa reversão deste cenário, priorizando a redistribuição da riqueza pelo aumento de impostos sobre a riqueza dos multimilionários globais, de forma a gerar receitas para os governos poderem investir em políticas que promovam a inclusão social, económica e política de todos e todas; a garantia de igualdade de oportunidades; a adoção de políticas, especialmente ao nível fiscal, salarial e de proteção social que permitam aumentar a igualdade, através do fortalecimento dos salários e os direitos dos trabalhadores; apostem na reforma do acesso à terra; invistam em capital humano e nos serviços públicos como a educação e a saúde, na transição ecológica, na redistribuição dos impostos, combatendo a discriminação especialmente das pessoas em situação de marginalização e exclusão.

Um dos maiores desafios na promoção da igualdade, centra-se na igualdade entre mulheres e homens. A pandemia contribui muito para acelerar as desigualdades de género em todo o mundo, verificando-se globalmente uma desigualdade transversal neste campo nas áreas política, económica e social. Segundo um estudo realizado pela Plataforma Portuguesa das ONGD, a pobreza, o desemprego e a precariedade laboral são mais elevados entre as mulheres; a disparidade salarial está presente em todas as idades, níveis de escolaridade e profissões no que concerne as mulheres; há uma segregação de género horizontal e vertical no mercado de trabalho; e as mulheres enfrentam maiores desafios na conciliação da vida pessoal e profissional. Em Portugal, por exemplo, a evolução muito significativa dos níveis de escolaridade nas mulheres, não se traduz numa presença proporcional em cargos de chefia e de tomada de decisão a nível nacional.

Assim, é fundamental a implementação prática das medidas adotadas para promover a igualdade de género, a melhoria da complementaridade das ações e da coordenação entre atores, a melhoria dos mecanismos de responsabilização e o sancionamento em caso de incumprimento. É igualmente importante reforçar o diálogo e a participação dos cidadãos (particularmente os grupos mais vulneráveis) e da sociedade civil enquanto parceiro efetivo na definição, implementação e monitorização de programas de reformas, planos e medidas de combate às desigualdades e à pobreza.

Para reduzir as desigualdades, urge, no plano global, entre outros aspetos, apoiar as posições dos países mais frágeis e vulneráveis nos fóruns internacionais e multilaterais; melhorar a regulamentação e monitorização dos mercados e instituições financeiras globais; facilitar a migração e a mobilidade das pessoas de forma ordenada, segura, regular e responsável, inclusive através da implementação de políticas de migração planeadas e bem geridas. Fundamental também é aprofundar a solidariedade global, pelo aumento do nível da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) para cumprir a meta, internacionalmente acordada em 1970 e reafirmada com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, de atribuir 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) para os Países em Desenvolvimento e entre 15 e 20% do RNB para os Países Menos Avançados, em especial para os países africanos, os pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países em desenvolvimento sem litoral, de acordo com seus planos e programas nacionais. Nesta fase em que os países são assolados por múltiplas e interconectadas crises, a cooperação internacional é chave para determinar um futuro sustentável e justo para todas as pessoas.

. P&D Factor: Sociedade Civil

Rita Leote: A sociedade civil organizada constitui um dos sistemas mais importantes de equilíbrio de poderes a nível institucional, sendo garante do estado de direito e da democracia e contribuindo para o aprofundamento dos direitos humanos a nível global.

A sociedade civil é um ator fundamental na implementação da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na resposta à pandemia de Covid-19 e nas estratégias de recuperação, assim como desempenha um papel fundamental na transformação social, através da sua função de vigilância do cumprimento dos deveres pelos Estados, instituições públicas e setor privado, exigindo a sua prestação de contas, transparência e boa governação. Contudo, tem sido cada vez mais evidente, nos últimos anos, um aumento dos desafios que a sociedade civil enfrenta, como a diminuição do espaço cívico, ataques contra os direitos humanos e aumento generalizado de poderes autocráticos um pouco por todo o mundo.

Como denuncia o Civicus Monitor 2022, plataforma de pesquisa online que rastreia as liberdades fundamentais em 197 países e territórios, nove em cada dez pessoas vivem em países onde as liberdades cívicas são severamente restringidas, sendo a detenção de manifestantes a principal violação das liberdades cívicas, e com a pandemia Covid-19 a ser o pretexto mais utilizado para restringir direitos e introduzir mais restrições nas liberdades cívicas em todo o mundo. O Civicus Monitor categoriza as liberdades cívicas em 197 países e territórios como fechadas, reprimidas, obstruídas, estreitadas ou abertas, com base numa metodologia que combina várias fontes de dados sobre as liberdades de associação, reunião pacífica e expressão. Segundo esta fonte, em 2021, o número de pessoas que viviam em países com restrições significativas aos direitos cívicos, incluindo as liberdades de expressão, associação e reunião pacífica, atingia quase 89% da população mundial, com apenas 3,1% da população mundial a viver em países classificados como abertos. Treze países baixaram a sua posição no raking, nomeadamente quatro países europeus, Belarus, Bélgica, República Checa e Polónia. O continente europeu é o que inclui mais países considerados abertos, mas a cada ano há mais sinais preocupantes de deterioração do espaço cívico. Nos outros continentes, a situação não é menos alarmante, com apenas um país, Mongólia, a ter melhorado a sua posição.

O ano de 2021 destacou-se como um ano em que a luta por justiça racial tornou-se global, em que se desafiou a exclusão e se reclamaram direitos, e em que foi exigida mais justiça económica e ambiental. Embora a sociedade civil tenha mantido a sua resiliência e a sua ação, é importante considerar, como organizações da sociedade civil que representamos, as tendências e desafios para o setor apresentadas pela Civicus, relacionadas com os últimos dez anos, procurando aferir o seu impacto e procurando estratégias para : i) a existência de uma repressão sustentada do espaço cívico; ii) a agitação política crescente, uma rejeição das normas em torno da condução da política e democracia em risco; iii) impactos do ultra-capitalismo; iv) alterações climáticas reconhecidas como uma crise; v) sociedade civil a desafiar a exclusão estrutural e a reivindicar a importância da diferença; vi) o aumento da importância das redes sociais e a economia da desinformação; vii) estados desonestos a tornar os seus modelos globais; viii) multilateralismo sitiado; ix) aumento do conflito e da militarização; x) novas mobilizações de pessoas e novas configurações da sociedade civil.

A UE, por seu lado, no seu Relatório de 2021 sobre o Estado de Direito, reconhece a existência generalizada do aumento da pressão sobre o Estado de direito a nível mundial, verificando a necessidade de aferir da capacidade dos Estados Membros de manter o equilíbrio de poderes que preservam o Estado de direito, incluindo o papel dos parlamentos, dos Tribunais Constitucionais e de outros tribunais nacionais, assim como dos provedores de justiça e das instituições nacionais de defesa de direitos humanos, a preservação do papel dos meios de comunicação social e da sociedade civil no exercício do escrutínio público e a forma como as autoridades tomaram medidas para atenuar o impacto da pandemia Covid-19 nestes intervenientes.

De notar que a UE refere na sua análise que foi mais difícil manter a capacidade da sociedade no seu conjunto para participar na formulação de medidas, tendo a consulta pública, o diálogo social institucionalizado e a consulta das partes interessadas sido, em geral, restringidos. A instituição verificou que os meios de comunicação social e a sociedade civil viram o seu trabalho extremamente condicionado pelas restrições relacionadas com a pandemia, em especial devido à falta de transparência e à dificuldade de acesso do público à informação, que constituíram uma preocupação geral e motivaram a sociedade civil e os cidadãos e as cidadãs a contestar várias medidas relacionadas com a pandemia.

Reconhecendo que as organizações da sociedade civil são intervenientes fundamentais para o Estado de direito, o relatório da UE expõe uma realidade desafiante para as organizações da sociedade civil em alguns Estados-Membros. Entre os exemplos mencionados contam-se ameaças deliberadas, nomeadamente através de restrições ou controlos financeiros por parte das autoridades, de proteção inadequada contra ataques físicos ou verbais, decisões arbitrárias e ações judiciais estratégicas contra a participação pública, ou da diminuição do nível de proteção dos direitos fundamentais que garante o trabalho da sociedade civil.

É importante reconhecer que, um pouco por toda a Europa, as organizações da sociedade civil foram bastante afetadas pela pandemia, não só devido aos limites à liberdade de circulação e de reunião, mas também em termos de financiamento. De acordo com a análise apresentada pela UE, a participação da sociedade civil na conceção e aplicação das medidas relativas à Covid-19 foi, de um modo geral, muito limitada.

Neste quadro de desafios, importa reforçar a solidariedade global e a cooperação internacional baseada em regras e em fortes normas de direitos humanos. É necessário lutar contra os ataques aos direitos e defender as conquistas da sociedade civil, nomeadamente dos movimentos orgânicos que surgiram um pouco por todo o mundo exigindo mudanças estruturais e ambiciosas. Os estados devem reforçar as liberdades dos cidadãos e cidadãs e o espaço cívico, para que as pessoas possam continuar a mobilizar-se de forma massiva.

Retomando o tema do “desenvolvimento”, partilho a perspetiva da Civicus apresentada no seu último relatório, de que devemos ter esperança para cumprir a visão de que as pessoas vivam em sociedades mais inclusivas, justas e igualitárias: onde não sejam forçadas a viver com medo, pobreza e insegurança e sejam livres simplesmente para serem elas mesmas; onde as alterações climáticas estejam sob controle; onde as economias funcionem para todos e todas; onde as instituições políticas, nacionais e internacionais, estejam abertas à supervisão e as pessoas tenham várias maneiras de expressar as suas preocupações; e onde os movimentos de pessoas e as organizações da sociedade civil ajam de forma livre.

Não é difícil. É necessária vontade política, perseverança e uma forte aposta na transformação.

. P&D Factor: “Não deixar ninguém para trás”

Rita Leote: A aprovação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, em setembro de 2015, marca o reconhecimento formal do princípio “Não Deixar Ninguém para Trás”, que é basilar para garantir que todas as pessoas usufruem do Desenvolvimento Sustentável nas suas múltiplas dimensões e que os direitos humanos se concretizam para todos e todas em todos os lugares.

Como explicita o United Nations Sustainable Development Group, a Agenda 2030 traça uma visão de desenvolvimento sustentável baseada em padrões internacionais de direitos humanos, colocando a igualdade, especialmente a igualdade de género, e a não discriminação no centro de seus esforços e abrangendo não apenas os direitos económicos e sociais, mas também os direitos civis, políticos e culturais, e o direito ao desenvolvimento. Estes valores são fundamentais para garantir que a Agenda é transformadora e que coloca a pessoa e a sua dignidade no centro dos esforços de desenvolvimento, capacitando todas as pessoas a tornarem-se parceiras ativas nesse esforço.

Assim, entre os valores universais da Agenda 2030 conta-se o princípio “Não Deixar Ninguém para Trás” que permite destacar a questão do combate à desigualdade como central para o desenvolvimento e para a erradicação da pobreza, num compromisso de responder primeiro às pessoas e países que se encontram em maior situação de pobreza e marginalização.

A centralidade deste princípio relaciona-se com o facto de representar o compromisso inequívoco de todos os Estados Membros da ONU para erradicar a pobreza em todas as suas formas, acabar com a discriminação e a exclusão e reduzir as desigualdades e vulnerabilidades que deixam as pessoas para trás e comprometem o seu potencial e da humanidade como um todo. Este princípio permite a chamada de atenção para o combate à discriminação e as crescentes desigualdades dentro e entre países, e as suas causas profundas.

Uma das formas mais evidentes e perniciosas de discriminação é a discriminação de género, que deixa as mulheres, suas famílias e comunidades marginalizadas e excluídas. Pela expressão e dimensão das desigualdades e exclusão de que sofrem mulheres, raparigas e meninas um pouco por todo o mundo, também um dos princípios base da Agenda é a igualdade de género e o empoderamento das mulheres.

Para aferir do contributo dos países e stakeholders para o princípio de “Não Deixar Ninguém para Trás”, é fundamental que seja harmonizada uma abordagem ou metodologia sistemática para identificar situações que traduzam os compromissos internacionais em políticas nacionais. O foco neste princípio implica, assim, uma análise nacional em termos geográficos, de discriminação, de governação, de estatuto socioeconómico, risco de choques e fragilidade e, mais importante, interseccionalidade entre estes fatores. No entanto, existem muitas dificuldades na obtenção de dados desagregados fidedignos (versando questões de rendimento, género, idade, etnia, situação migratória, deficiência e localização geográfica), uma vez que as realidades das pessoas em situação de marginalização são muito complexas e as informações são escassas. Apostar na recolha de dados credíveis e na sua sistematização é por isso fundamental para poder garantir que o princípio é respeitado e concretizado.

Também é crucial que possam ser compreendidas as múltiplas camadas que se sobrepõem de discriminação e como estas exacerbam a marginalização, para que possamos melhor lidar com a desigualdade. Neste campo, a ONU dispõe de uma abordagem recomendada: https://unsdg.un.org/resources/leaving-no-one-behind-unsdg-operational-guide-un-country-teams-interim-draft, que importa considerar.

Para o combate às desigualdades e a priorização do apoio aos países e pessoas em situação de maior vulnerabilidade, destaca-se o papel central que a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) tem, na medida em que é o único mecanismo que permite priorizar a cooperação com os países onde vivem 75% das pessoas mais pobres do mundo (os Países Menos Avançados). Os Estados doadores, como Portugal, devem, no entanto, garantir que a APD se concentra na redução da pobreza e da desigualdade e que se direciona maioritariamente para a igualdade de género e para serviços e setores como saúde pública, educação, sistemas de proteção social, água e saneamento e agricultura em pequena escala, fortalecimento das instituições estatais e apoio a reformas para criação de sistemas tributários mais redistributivos e igualitários. Adicionalmente, deve apostar-se no apoio à mobilização de recursos domésticos e a investimentos do setor privado que demonstrem adicionalidade de resultados de desenvolvimento e adesão aos princípios internacionais de respeito pelos direitos humanos, igualdade de género e normas ambientais.

A Sociedade civil tem um papel fundamental a desempenhar na monitorização das ações dos Estados, para garantir que atuam de acordo com os princípios consagrados na Agenda 2030 e as prioridades mencionadas para garantir que “ninguém fica para trás” e que contribuem para uma maior responsabilização dos governos.

Quem é Rita Leote?

Rita Leote

Mestre em Estudos de Desenvolvimento, pós-graduada em Economia Social e Solidária pelo ISCTE e licenciada em Relações Internacionais pelo ISCSP, é desde 2017 a Diretora Executiva da Plataforma Portuguesa das Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD).

Entre 2004 e início de 2014 dedicou-se à área do Desenvolvimento e da Cooperação Internacional, tendo colaborado com várias ONGD portuguesas nesta área. Durante dois anos, trabalhou na Guiné-Bissau, num projeto implementado pela Fundação Fé e Cooperação, na área da promoção da educação básica, a partir do desenvolvimento de ações de animação e dinamização comunitária. Nesta área coordenou ainda, entre 2009 e 2013, o Gabinete de Cooperação para o Desenvolvimento do Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária (ISU – ONGD Portuguesa), tendo sido responsável por projetos de cooperação para o desenvolvimento em Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau.

Tem considerável experiência na área do Voluntariado, quer a título pessoal, como voluntária desde os 17 anos em áreas tão diversas como os direitos humanos, o apoio social a populações vulneráveis e a formação, quer como profissional, tendo coordenado várias equipas de voluntários nacionais e internacionais. Nesta área foi gestora de programas da Confederação Portuguesa do Voluntariado entre 2014 e 2017.

Rita Leote

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