Joana Mortágua - “Educação Sexual Compreensiva? (…) Para um crescimento saudável e livre de estigmas e preconceitos"
- Data de publicação 26 outubro 2022
Entrevista a Joana Mortágua
“(…) Para um crescimento saudável e livre de estigmas e preconceitos, as crianças e os jovens precisam de ver assegurado o acesso, através da Escola, a conceitos como direito ao seu próprio corpo, consentimento, diversidade. A Educação Sexual é, além do mais, insubstituível no combate ao abuso e assédio de menores.”
P&D Factor: “Não deixar ninguém para trás”
Joana Mortágua (JM): Nos tempos de crise a expressão “não deixar ninguém para trás” é um guia imprescindível para encontrar saídas. Esse guia deve servir-nos também para os momentos de aparente progresso geral. Por exemplo, os moradores do Bairro do Segundo Torrão, em Almada, estão vulneráveis há muito tempo, a falta de apoio ao seu direito à habitação é antiga.
As trabalhadoras e os trabalhadores que diariamente se deslocam em transportes públicos insuficientes ou degradados também ficaram para trás durante muito tempo, independentemente do crescimento do PIB.
A democracia tem o dever de pagar uma dívida social que foi acumulada com uma grande fatia da nossa população, cujos direitos à habitação, aos transportes, à saúde e à educação são sempre adiados.
P&D Factor: Fake news /desinformação
JM: As notícias falsas são um perigo para a democracia. Em vez de discutirmos as soluções para a nossa vida, andamos a desmentir absurdos. Um exemplo recente é o caso do Chile, onde em vez de se discutir o conteúdo verdadeiro da nova proposta de Constituição, para substituir a Constituição herdada do regime de Pinochet, foi necessário andar a desmentir coisas como uma suposta “legalização do aborto aos nove meses”, o que quer que isso seja.
Como nos defendemos do absurdo?
A escola tem, seguramente, um papel importante no fomento do espírito crítico.
Uma grande ajuda também seria dar mais força a uma imprensa responsável que não se alimente da polarizações fúteis e não torça a verdade para a tornar mais clicável. Na era digital, para que a imprensa seja independente e de qualidade, precisa de ter um corpo mais estável de profissionais e um financiamento que o garanta.
É nosso papel enquanto sociedade encontrar soluções para a existência de informação de qualidade.
P&D Factor: Igualdade de Género
JM: Em todas as crises, são as mulheres, as pessoas racializadas e as pessoas LGBTI+ de diferentes classes sociais as primeiras a ser afetadas, a verem as suas condições de vida recuar e são também as últimas a recuperar quando a situação social melhora.
A desigualdade salarial entre homens e mulheres é um dos exemplos de como essa injustiça não é um problema do passado que se vai resolvendo com o tempo. A diferença tende a aumentar com as crises económicas, reforçando a feminização da precariedade, do desemprego e dos baixos salários.
Também o aumento dos preços e a degradação dos serviços públicos colocam sobre as mulheres um fardo ainda maior da distribuição do trabalho doméstico e familiar.
Ao mesmo tempo, independentemente dos ciclos económicos, a desigualdade de género é também um problema de segurança, porque, apesar do avanço legislativo, continua a haver sentenças machistas nos tribunais, continuam a escassear apoios sociais para as vítimas e faltam funcionários judiciais nas Secções Especializadas de Violência Doméstica.
P&D Factor: Saúde Sexual e Reprodutiva
JM: A primeira campanha que fiz foi pelo Sim no referendo ao aborto. Há décadas que as mulheres lutavam pelo direito a não serem presas por uma decisão que só pode ser sua: interromper uma gravidez indesejada.
Quando olhamos para o retrocesso nos Estados Unidos e na Polónia e para os avanços na Argentina e na Colômbia, percebemos que o direito ao aborto como tantos outros é uma conquista permanente, que esta não é uma história linear.
Precisamos batalhar por avanços no acesso à saúde sexual e reprodutiva. As ativistas pelos direitos no parto trouxeram para a praça pública uma violência que antes não tinha nome, mas que milhões de mulheres conhecem: a violência obstétrica. Educar e consciencializar a sociedade e os profissionais para os direitos no parto é imprescindível.
Sendo também urgente resolver as falhas que a degradação do Serviço Nacional de Saúde já acusa ao nível da saúde materno-infantil. Precisamos de um forte investimento na saúde e na educação para defender a saúde sexual e reprodutiva.
P&D Factor: Educação Sexual Compreensiva
JM: O direito à educação sexual é considerado por lei como uma “componente do direito fundamental à educação” desde 1984. No entanto, a história da sua implementação foi muito atribulada e com muitos adiamentos. Atualmente a implementação da educação sexual, cujos conteúdos definidos por lei são os adequados a cada nível etário, depende demasiado do plano educativo de cada Escola, não é uma área curricular autónoma nem há garantias de que é ministrada por profissionais com formação adequada.
Para um crescimento saudável e livre de estigmas e preconceitos, as crianças e os jovens precisam de ver assegurado o acesso, através da Escola, a conceitos como direito ao seu próprio corpo, consentimento, diversidade. A Educação Sexual é, além do mais, insubstituível no combate ao abuso e assédio de menores.
P&D Factor: Desafios
JM: A geração mais jovem colocou na agenda um dos principais desafios do nosso tempo, a crise climática lembra-nos que “não há planeta b”. O desafio climático vem também a par da crise do trabalho e dos direitos sociais.
Num tempo em que temos uma capacidade de produzir acima das nossas necessidades, não é aceitável que nos digam que o futuro será necessariamente pior.
A narrativa dominante diz a todas as gerações que o trabalho com direitos, a segurança social ou o acesso à saúde são coisas do passado, das quais teremos de abdicar total ou parcialmente. Esta crise social e ambiental, a que se somam as guerras, é terreno fértil para a política do ódio.
O futuro que nós merecemos precisa de democracias mais fortes em direitos sociais e em liberdades e de economias mais responsáveis do ponto de vista social e ecológico. Essa é também a dura e bela lição que nos estão a dar as mulheres iranianas.
Quem é Joana Mortágua? |
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Natural de Alvito, distrito de Beja com Licenciatura em Relações Internacionais e especialização em América Latina, e frequência de Mestrado em Estudos Brasileiros. Desde 2016 escreve para o Jornal i as crónicas “No país dos Matraquilhos”. Eleita deputada à Assembleia da República em 2015, 2019 e 2022 pelo círculo eleitoral de Setúbal. É vereadora eleita na Câmara Municipal de Almada desde 2013. Membro da Comissão Política e Secretariado do Bloco de Esquerda (BE). Na presente legislatura é Vice-Presidente e Coordenadora do Grupo Parlamentar na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência, Juventude e Desporto. Coordenadora do Grupo Parlamentar do BE nas Comissões Parlamentares de “Defesa Nacional” e “Educação e Ciência” e “Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação”. |